O que o Brasil tem a aprender da maior democracia do mundo? Análise do constitucionalismo norueguês

Por: Josemaría Dias de Paula Freitas Portella

A Noruega possui um sistema democrático exemplar, além de ser o país mais desenvolvido do mundo. O sucesso dessa full democracy pode ser analisado sob a perspectiva do constitucionalismo, considerando que os noruegueses são regidos pela segunda constituição mais longeva do mundo. Analisar-se-á o papel do constitucionalismo norueguês na estabilidade democrática do país e o que tem a ensinar ao Brasil.

Analisando-se, primeiramente, o design constitucional, nota-se que a constituinte de Eidsvoll, a que elaborou a Constituição de 1814, reuniu três fatores, que Elkins, Ginsburg e Melton apontam como determinantes na durabilidade da constituição: inclusão, flexibilidade e especificidade.[1]

Quanto ao primeiro fator, a constituinte norueguesa reuniu representantes eleitos das mais diversas localidades do país, além de representantes de vários grupos sociais: autoridades públicas, comerciantes e até camponeses.[2] Como, portanto, a quase totalidade dos grupos sociais foi representada no texto constitucional, mais facilmente as normas foram cumpridas e houve maior esforço para que a lei se mantivesse estável. 

A flexibilidade, por seu turno, é igualmente uma característica da Grundlov, Constituição do país, que se mostra determinante na sua estabilidade. Nesse ponto, considera-se que o sistema norueguês é semi-rígido no que se refere ao processo de emenda constitucional.[3] Essa característica permitiu que sucessivas emendas se concretizassem desde 1814, adequando a Carta às constantes mudanças sociais: sufrágio universal, separação entre religião e Estado e o direito ao desenvolvimento sustentável,[4] por exemplo, sem que se ferisse o “espírito da Constituição”. Com tal capacidade de adaptação às novas necessidades, não se mostrou necessária uma nova constituinte.

A especificidade, outrossim, faz-se presente no documento desde sua edição: das 37 constituições nacionais editadas em 1814, somente 3 eram mais longas que a Grundlov; 19 dos 120 artigos contidos em seu texto inicial, de maio de 1814, eram dedicados às questões específicas de sucessão e regência; a versão de maio de 1814 assegurava 14 direitos, enquanto a média de direitos contidos em cartas constitucionais da época era de 10.[5] O alto nível de detalhamento e o grande número de tópicos, como se nota, revelam que os grupos que formaram a constituinte souberam fazer um bom acordo, caso contrário o texto seria mais abstrato, e tal característica permitiu que com mais clareza o documento guiasse o país em momentos de crise.

A partir dessas considerações, poder-se-ia pensar que variáveis ambientais poderiam ter favorecido o caso norueguês, mas isso não procede: sua constituinte é seguida, no mesmo ano de 1814, de dominação da Suécia e, mesmo assim a constituição se manteve firme; em 1905, quando o país se tornou independente, igualmente se manteve a mesma constituição, inclusive observada no que tangia à escolha do novo monarca, por exemplo.[6]

De fato, como se observou, os noruegueses votaram em qual rei teriam, fato que, atípico e curioso, revela a importância da monarquia na estabilidade democrática do país. É importante explicitar, portanto, que a Noruega é, enquanto sistema de governo, uma monarquia parlamentarista hereditária.[7]

Esse sistema se mostra um grande aliado da democracia quando se percebe que o monarca, além de ser símbolo da cultura centenária do país, auxiliando na preservação da herança cultural e constitucional,[8] é um ator político, contribuindo para um controle horizontal mais eficiente e dificultando a instalação de crises democráticas.[9] Exemplo desse papel se dá na formação de um novo Governo: geralmente o rei segue os conselhos do Primeiro Ministro que renunciou acerca de um novo nome para chefiar o Governo, normalmente líderes do Storting, Parlamento,[10] mas a escolha do Chefe de Estado não é rigorosamente vinculada às indicações, principalmente quando a situação da Casa legislativa é incerta,[11] ou quando há indícios de retrocesso democrático na Casa, sendo um exemplo prático de combate à “racionalidade do medo”, tal como abordada por Barry Weingast.[12]

Outro elemento que, igualmente, exerce importante papel no controle horizontal e, logo, na prevenção de degradações democráticas, é o Judiciário norueguês, principalmente na figura da Suprema Corte do país. Isso se deve à sua atribuição de realizar controle concentrado e abstrato de constitucionalidade de leis aprovadas pelo Storting.[13] Esse controle, porém, somente se encaixa no primeiro princípio de estabilidade constitucional exarado por Weingast,[14] já que não passa de uma mera observância da divisão formal de atribuições e poderes pela Constituição. Isso porque a Suprema Corte da Noruega não tem capacidade de fazer controle de emendas,[15] havendo a possibilidade de o Parlamento revogar ou restringir a função do Judiciário de supervisionar o Legislativo e o Executivo a partir de uma emenda constitucional.[16]

Nota-se, no entanto, que a possibilidade de que ocorra uma degradação democrática no país é remota, caso contrário a Noruega não seria a democracia mais estável do mundo. São fatores que protegem a democracia: emendas constitucionais devem ser aprovadas por 2/3 dos parlamentares[17]; há pluripartidarismo – Partido Conservador, Partido Democrático Cristão, Partido do Progresso, Partido de Centro, Partido Trabalhista, Partido Socialista de Esquerda, Partido Vermelho e Partido Verde-[18]; e o alto grau de especificidade do texto constitucional, como citado anteriormente, dificultando manobras políticas inconstitucionais.

A partir do que foi exposto, alfim, busca-se depreender o que o regime democrático do país nórdico tem a nos ensinar. Para tal, é preciso fazer, primeiramente, esta consideração central: a Noruega é um país rico e desenvolvido, enquanto  que o Brasil é um país de renda média. Essa variável ambiental determina, em grande medida, a saúde democrática do país, já que, nos países pobres e nos de renda média, um texto constitucional garantidor de direitos não muda a realidade e tampouco sustenta uma democracia, porque os problemas sociais são mais fortes.[19] Nessa chave, medidas econômicas e educacionais, que fogem à seara do constitucionalismo, deveriam ser tomadas em nosso país, para que, com variáveis ambientais mais favoráveis, a estabilidade democrática tivesse maiores chances de êxito.

            Por outro lado, um fator que se poderia pensar em importar, ou melhor restaurar, unicamente neste país, é o sistema de monarquia parlamentarista. Essa sustentação pode parecer loucura para muitos, mas nada proíbe que se estude essa possibilidade em constitucionalismo comparado, sobretudo quando há fortes evidências que esse regime respondeu por grandes progressos no nosso constitucionalismo.

O fato de a Constituição de 1824 ser a mais longeva de nossa história, tendo perdurado em meio a guerras, Período Regencial, sucessão, crises econômicas e mudanças sociais de peso, como a abolição da escravatura, leva a estudar essa possibilidade. Essa estabilidade não se justifica somente no caráter liberal da Constituição, mas em algo mais profundo, que a Noruega tem e que o Brasil perdeu em grande medida a partir do golpe republicano: amor às suas raízes culturais. A Constituição de 1824 era estável, porque era muito mais do que um texto, era fruto de uma luta árdua de todos os brasileiros contra o autoritarismo das Cortes portuguesas: das pessoas simples, que depositavam sua confiança no Imperador e sobretudo na Imperatriz D. Leopoldina, das grandes personalidades das províncias e dos três grandes heróis nacionais: D. Leopoldina, D. Pedro I e José Bonifácio de Andrada.[20] Dessa forma, a monarquia cumpriria um papel tal como cumpriu no passado brasileiro e cumpre na Noruega contemporânea: confere sustentação histórica, cultural e identitária à democracia, sendo mais um valor que contribui para que uma insurreição contra a constituição não valha a pena, como aborda Przeworski.[21]

Além de conferir sustentação à democracia e à constituição, o regime diluiria mais os poderes, remediando um clássico problema brasileiro: um Executivo forte. Nesse ponto, provavelmente não haveria mais o Poder Moderador, como no passado, mas um sistema semelhante ao norueguês: o governo se forma realmente a partir do Parlamento, que por sua vez é elegido pelo povo. Esse modelo, por proporcionar uma dissolução mais fácil de governos, torna remotíssima a chance de se desenvolverem degradações democráticas, e tais dissoluções são menos sofridas e vergonhosas para a nação como os processos de Impeachment de Presidentes da República.

É preciso mencionar, no entanto, que a implementação de uma monarquia parlamentarista no Brasil atual careceria de aceitação popular, valor imprescindível para a democracia. Como se atesta a partir do plebiscito de 1993, o regime republicano, malgrado sua carência de relação com as origens da nação brasileira e sua imposição brutal e impopular, tornou-se o mais aceito pelas gerações seguintes, muito pela propaganda que um regime faz de si mesmo.

Com essas considerações, não se pretende afirmar categoricamente que a adoção de um regime monárquico semelhante ao norueguês se adaptaria perfeitamente ao Brasil ou que nossa democracia passaria por um desenvolvimento considerável. O que se depreende, por outro lado, é que, possuindo semelhanças quanto à ação do Judiciário no controle horizontal e do Legislativo na sua função legiferante, as grandes diferenças jazem: nas atribuições do Chefe do Executivo, na formação do Governo e na relação que o regime e a constituição guardam com a cultura e a história da nação.


Josemaría Dias de Paula Freitas Portella é graduando em Direito pela Universidade de Brasília, UnB. Monitor da disciplina de Teoria Geral do Estado, da Faculdade de Direito da UnB. Ex-membro do Veredicto, projeto de extensão da Faculdade de Direito da UnB.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

[1] ELKINS, Z.; GINSBURG, T.; MELTON, J. The Endurance of National Constitutions. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2009, p. 8.

[2] INTERNATIONAL IDEA INSTITUTE FOR DEMOCRACY AND ELECTORAL ASSISTANCE. NORWAY’S ENDURING CONSTITUTION: IMPLICATIONS FOR COUNTRIES IN TRANSITION, 2014, p. 4. Disponível em: <http://comparativeconstitutionsproject.org/files/Norways_Enduring_Constitution.pdf?6c8912>. Acesso em 17 mai. 2021.

[3] Ibid. p. 6-7.

[4] Ibid. p. 8-9.

[5] Ibid. p. 5.

[6] Ibid. p. 2-4.

[7] NORUEGA. The Constitution, as laid down on 17 May 1814 by the Constituent Assembly at Eidsvoll, subsequently amended, art. 1º. Disponível em: <https://lovdata.no/dokument/NLE/lov/1814-05-17?q=grunnloven#KAPITTEL_3>. Acesso em: 15 mai. 2021.

[8] Ibid. arts. 4,17.

[9]  Ibid. arts. 21-26.

[10] GOVERNMENT. Change of Government in Norway, 2013. Disponível em: <https://www.regjeringen.no/en/the-government/the-government-at-work1/change-of-government/id270340/>. Acesso em: 19 mai. 2021.

[11] The Royal House of Norway. Change of government, 2015.Disponível em: <https://www.royalcourt.no/artikkel.html?tid=30067&sek=30055>. Acesso em 19 mai. 2021.

[12] WEINGAST, Barry R. Designing Constitutional Stability. In: Congleton, Roger D., and Swedenborg, Birgitta. Democratic Constitutional Design and Public Policy: Analysis and Evidence. Cambridge, US: MIT Press, 2014, p. 345.

[13] SUPREME COURT OF NORWAY. The control of the legislative and the executive power by Norwegian courts, 2014. Disponível em: <https://www.domstol.no/en/enkelt-domstol/supremecourt/articles/tonder/the-control-of-the-legislative-and-the-executive-power-by-norwegian-courts/>. Acesso em: 19 mai. 2021.

[14] Op. cit. p. 345.

[15] Op. cit. SUPREME COURT OF NORWAY.

[16] Ibid.

[17] Op. cit. INTERNATIONAL IDEA INSTITUTE FOR DEMOCRACY AND ELECTORAL ASSISTANCE. p. 6-7.

[18] STORTINGET. Current Members of Parliament, 2020. Disponível em: <https://www.stortinget.no/en/In-English/Members-of-the-Storting/current-members-of-parliament/>. Acesso em 20 mai. 2021.

[19] PRZEWORSKI, Adam. Why Democracy Survives in Affluent Societies?, 2001, p. 1.

[20] REZZUTTI, Paulo. D. Pedro A história não contada. 1. ed. São Paulo: LeYa, 2015.

[21] Op. cit.

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