Por que gênero e raça devem ser critérios de escolha para Ministros do STF?

Por Anderson Henrique Vieira*, Lívia Oliveira Almeida** e Pedro Lucas Formiga de Almeida***

A aposentadoria de dois Ministros do Supremo Tribunal Federal (Ricardo Lewandowski e Rosa Weber) no ano de 2023, seguida das indicações de figuras masculinas, reabriu a discussão sobre os critérios de escolha para as vagas do STF e a demanda por representação das diversas camadas sociais na instituição jurídica responsável por exercer a instância máxima do Poder Judiciário no Brasil, além de atuar como guardião da Constituição Federal. É neste contexto que surge a questão: Por que gênero e raça deveriam ser critérios de escolha para Ministros do STF?

Cabe evidenciar que para ser membro do Supremo Tribunal Federal, é necessário preencher alguns requisitos dispostos na Constituição Federal de 1988. De forma expressa, o diploma determina que a escolha deve ocorrer dentre os “cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de setenta anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada” (Brasil, 1988). O critério etário explica-se pela possibilidade constitucionalmente prevista no art. 80 de ministros do STF ocuparem o cargo de Presidente da República e, por isso, é necessário harmonizar os critérios de idade para ocupar os dois cargos. Ademais, o termo “cidadão” indica o pleno gozo dos direitos políticos e, conforme o art. 12, § 3°, IV, da CF/88, ser ministro do STF é um dos cargos privativos de brasileiro nato.

Além da livre escolha pelo Presidente da República com base nos critérios citados, ainda é necessário que o nome escolhido passe por uma sabatina no Senado Federal em que, se aprovado por maioria absoluta (41 votos dos 81 senadores), passa a compor o STF. Esses critérios discricionários aos quais se recorre para a composição do tribunal evidenciam forte caráter político na nomeação e impõe a necessidade de reflexão sobre a hegemonia histórica branca e masculina na composição do tribunal.

Esse cenário fica nítido ao se constatar que em 132 anos de existência da corte, apenas 3 mulheres (Ellen Gracie, Cármen Lúcia e Rosa Weber) foram indicadas, em contrapartida, no mesmo período, o STF teve 171 ministros. Quando se analisa as nomeações femininas pelo recorte de raça, nota-se que nenhuma das ministras é preta. Desse modo, é possível afirmar que a composição do STF não reflete a diversidade racial e cultural que constitui o Brasil, tendo em vista que a população negra representa 56% do total de brasileiros (IBGE, 2022), sendo as mulheres negras ou pardas equivalentes a 28% da população (IBGE, 2019). 

Os números apontados podem indicar que a aproximação institucional e/ou social do pretenso ministro do STF com o chefe do executivo é fator essencial à sua nomeação (Schwartz e Dezorzi, 2010, p. 189) que objetiva o “predomínio de uma única tendência política na composição da corte”, tendo em vista a “homogeneidade do seu posicionamento com o do governo” e o consequente comprometimento do tribunal no que tange ao seu exercício jurisdicional de controle. Essa configuração hegemônica alinhada à elite masculina e branca pode colocar em xeque a própria noção de justiça ao negar a reunião de condições objetivas e subjetivas para garantir a redistribuição e o reconhecimento (Fraser, 2003), responsáveis por refletir a pluralidade étnico-racial, cultural e de gênero do Brasil. 

Diante desse cenário, parcela significativa da população brasileira não se vê representada no perfil étnico e de gênero da Suprema Corte, o que impacta diretamente na forma como o Estado (e o Direito) enxerga e planeja políticas públicas e atos normativos que continuam, em larga medida, a marginalizar esses setores da sociedade ao negar sua existência político-social, representando sua morte jurídico-subjetiva em que pese a vida do corpo biológico, como desenvolvido em Foucault (2008). Não por outro motivo, o Estado Democrático de Direito, amparado constitucionalmente, representa um verdadeiro Estado de exceção (Agamben, 2004) para tal parcela social, pois ao não garantir expressamente a diversidade étnico-racial e de gênero na composição do STF (e de outras instituições que alicerçam a base da democracia brasileira) legitima sua exclusão amparada na hegemonia masculina e branca. 

Esse arranjo institucional nitidamente desigual e violento não só reflete a sociedade brasileira, como o próprio Direito, que legitima juridicamente a negação do espaço público às mulheres negras, em face de construções normativas guiadas majoritariamente por homens e da operacionalidade do Direito que se fundamenta na seletividade, representando o silenciamento de grupos em vulnerabilidade social.

Assim, a presença de ministras negras na composição do STF se constitui como necessária e urgente, pois representa parcela populacional vítima de racismo estrutural com rebatimentos em diferentes setores (jurídicos, políticos, econômicos, sociais, por exemplo). De modo concomitante, há um silenciamento das demandas dessa população, uma vez que as políticas planejadas e implementadas se estruturam sob uma ótica branca, neoliberal, patriarcal e europeizada, o que por óbvio não condiz com a pluralidade étnica racial e gênero da população brasileira, em específico aquela que se identifica como preta ou parda. 

Nesse sentido, importa citar que a heterogeneidade político-partidária, de gênero e até mesmo de ideologia política dos atores que, ao longo dos anos, tiveram a competência constitucional para realizar as nomeações ao STF não é condição suficiente para garantir diversidade, justamente porque, em geral, as indicações representam interesses políticos. Isso porque, em um Estado que detém elementos de racismo e misoginia tão bem enraizados e institucionalizados, os avanços, de fato, só serão admitidos a partir da implementação de estratégias tais como as cotas de gênero e raça na composição das instituições do país. Em âmbito internacional, cabe citar a Lei 1.173/2010, da Bolívia, a qual prevê que 50% dos membros dos Tribunais de Justiça departamentais, escolhidos por uma espécie de Supremo Tribunal de Justiça, correspondam a mulheres, o que pode servir de parâmetro de discussão para medidas semelhantes no Brasil.

Urge pontuar que já há debates no país que contemplam propostas de alteração da forma de indicação a vagas no STF, a exemplo das Propostas de Emenda à Constituição Federal (PEC), n° 16/2019 e n° 225/2019. A primeira se dispõe a fixar em oitos anos o mandato dos ministros do STF, sem direito à recondução, assim como objetiva dar celeridade ao estipular o prazo de um mês para a escolha do Executivo e de 120 dias para a análise do Senado. Contudo, reduzir o tempo do mandato dos ministros não altera substancialmente a problemática da inserção feminina e negra, já que as motivações para a indicação não seriam alteradas e não haveria ações afirmativas nesse sentido. Além disso, oferecer celeridade ao processo, muito embora necessário, pode corresponder a um crivo ainda mais superficial das sabatinas.

Já a PEC 225/2019 tem como objetivo que as indicações sejam feitas também pelo Legislativo e Judiciário; a inclusão de critérios técnicos (juiz de segunda instância ou advogado com pelo menos 10 anos de prática e mestrado na área jurídica), além do mandato no cargo passar a ser de 12 anos, sem aposentadoria compulsória. Muito embora a referida proposta apresente uma configuração mais democrática entre os três poderes e possa representar contributo na minimização das indicações meramente pautadas em interesses político-partidários, observa-se, mais uma vez, a ausência de critérios democratizantes do ponto de vista racial e de gênero.

Nesse sentido, a importância da presença de uma mulher negra na Suprema Corte Brasileira, além de compor elemento crucial de reparação histórica, reflete a democratização do acesso à justiça, reforça a pluralidade existente no Brasil e oferece um espaço importante para que temáticas que impactam esta população, sejam discutidas sob novos olhares, narrativas e perspectivas que compõem a história deste povo. Esta forma de representatividade contribui para um dos objetivos fundamentais da Constituição, a promoção do bem de todos, sem preconceito nem discriminação de nenhuma natureza, especialmente racial e de gênero. 

Diante desse cenário, é preciso refletir acerca da inserção de cotas de gênero na composição do STF, em conformidade à alteração aprovada pelo CNJ no que tange à paridade de gênero nos tribunais de segunda instância no sentido de oferecer voz às demandas, problemáticas e perspectivas de um grupo social que permanece silenciado e violentado após mais de duzentos anos da formação do Estado brasileiro.

* Doutorando em Direito pela UFPB, mestre em Planejamento e Dinâmicas Territoriais no Semiárido (Uern), bacharel em Direito (UFCG) e professor substituto UFCG.

** Graduanda em Direito pela UFCG.

*** Graduando em Direito pela UFCG.


Referências

AGAMBEN, G. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 25 set. 2023.

FOUCAULT, M.. O Nascimento da Biopolítica. São Paulo, Martins Fontes, 2008.

FRASER, N. Social Justice in the age of identity politics: Redistribution, Recognition, and Participation. In: FRASER, N; HONNETH, A. Redistribution or Recognition. A political Philosophical exchange. Londres/Nova York: Verso, 2003. p. 07-109.

IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estudos e pesquisas. Informação Demográfica e Socioeconômica, n. 41. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2019.

IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. PNAD Contínua – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: características gerais dos domicílios e dos moradores, 2022. Rio de Janeiro: IBGE, 2022.

SCHWARTZ, G; DEZORZI, D. A (in)adequação do sistema de composição e da vitaliciedade dos Ministros do Supremo Tribunal Federal e a proteção dos direitos fundamentais. Revista Brasileira De Direitos Fundamentais & Justiça, 4(10), 180–199, 2010. Disponível em: https://doi.org/10.30899/dfj.v4i10.451. Acesso em: 25 abr. 2023.

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