Por Thamyres Alves de Resende[1]
“Para navegar contra corrente são necessárias condições raras: espírito de aventura, coragem, perseverança e paixão” (Nise)[2].
No que tange à conjuntura constitucional e legislativa brasileira atual, é possível destacar a Constituição de 1988, norma suprema do ordenamento jurídico brasileiro, salvaguardando um meio social justo, livre e solidário, o qual emana direitos fundamentais e humanos indispensáveis à ordem democrática. No entanto, é possível ressaltar o cerceamento de direitos, fomentado historicamente, das pessoas com doenças intelectuais. Sendo identificada a mudança paradigmática somente a partir da luta antimanicomial[3].
Partindo do Direito Achado na Rua, o qual se mobiliza nas lutas populares, com o fito de denunciar violências, opressões e violações de direitos, sendo de suma importância para a transformação social e para a democracia brasileira, é possível identificar a relevância dos movimentos sociais na mudança no tratamento antimanicomial no Brasil, o qual somente demonstra mudança legislativa, em razão de ação popular.
- O Direito Achado na Rua e os movimentos sociais
Nesse cenário, Roberta Lyra Filho, responsável pela criação do Direito Achado na Rua, resgata o direito com dimensão emancipatória, o qual nasce da mobilização dos direitos sociais, tecendo críticas à corrente positivista formalista. Dessa forma, cria juntamente com o professor José Geraldo de Sousa Junior, a Nova Escola Jurídica Brasileira com a força libertária e a reiteração da crítica marxista quanto ao direito. A Nova Escola rejeita o formalismo e encontra o direito e a democracia a partir das lutas dos movimentos sociais, ao compreender o direito como “expressão de uma legítima organização social da liberdade”[4].
Sendo assim, o Direito Achado na Rua estabelece novas categorias jurídicas a partir de relações sociais solidárias, reconhecendo a importância da participação social na consolidação democrática, sendo essa militância relevante para a legalidade sem perdas de direitos fundamentais e humanos. Por isso, reitera que o direito deve nascer na rua, por meio de mobilizações sociais, debates públicos e setores organizados da sociedade, para que seja possível abordar a legalidade democrática[5].
Por meio dessa corrente crítica, é possível refletir acerca da atuação jurídica dos movimentos sociais, tendo como direcionamento as experiências populares no processo de criação do direito, explorando o espaço das práticas sociais na formulação jurídica, com o protagonismo do sujeito coletivo, o qual elabora um projeto político de transformação social[6].
Nesse sentido de legitimidade jurídica advinda da rua e do clamor social, o movimento social tem uma atuação extremamente significativa para a transformação do campo da institucionalidade, com o intuito de democratizar os espaços políticos e sociais, ao trazer denúncias, reflexões e questionamentos, como ocorreu no movimento da luta antimanicomial.
Para além da atuação institucional, é válido pontuar a atuação na esfera cultural, com o intuito de romper com o status quo de discriminações e opressões disseminadas, haja vista que o meio social reverbera um alto grau de discriminação e controle sobre os corpos. Desse modo, os campos culturais são alimentados por preconceitos acerca do louco e da loucura, arraigados pelo positivismo científico.
Portanto, os movimentos sociais são, conforme Melucci, profetas do presente, anunciando então uma possibilidade de mudança que alcança o hodierno, confere visibilidade ao poder e externaliza a linguagem para alcançar a todos.Assim, evidencia uma abordagem profunda acerca dos atores, das relações objetivas e subjetivas e do agir coletivo[7].
- A influência do positivismo científico
No que concerne ao sujeito com doenças intelectuais, observa-se, no campo social, o controle e a exclusão, destacando a influência do positivismo científico que, por consequência, fomenta o positivismo jurídico, gerando tratamentos estigmatizantes que retiram da pessoa a sua dignidade humana.
Tal circunstância se acentua em virtude da corrente científica europeia que embasava as esferas do poder e do saber brasileiras, já que são tecidas conotações acerca da fisionomia humana para determinar quais eram os corpos inferiores. Dessa forma, as ciências biológicas vão determinar como raças inferiores, pessoas que não faziam parte da burguesia e não compartilhavam de características morais e religiosas dos burgueses[8].
Partindo desta distinção, inicia-se o discurso de raças degeneradas, quando a origem do ser humano passa a ser o centro do discurso e o homem branco burguês é compreendido como o perfil de humanidade. Assim, todos os indivíduos que fossem diferentes, eram tratados como animais e, consequentemente, eram-lhes assimilados problemas, sejam eles morais, filosóficos ou biológicos8.
Nesse cenário, as ciências biológicas encaminharam para a defesa do racismo científico, ao determinar, por meio de estudos eugênicos, características tidas como negativas que deveriam ser eliminadas, como a debilidade mental. Assim, a Medicina vai assimilar o corpo que fugia ao padrão de normalidade burguesa a delinquentes e loucos, sendo encaminhado o tratamento de controle, haja vista que a delinquência era relacionada à loucura e à doença mental, o que levou a construção de hospitais com arquiteturas de prisões8.
- Os movimentos sociais e a lei antimanicomial
Dessa maneira, o ambiente do manicômio explana a lógica de exclusão, controle e violências, sejam elas físicas ou simbólicas, os muros são utilizados para depósito humano, seguindo a estrutura de prisões para hospitais psiquiátricos. Sendo assim, a luta antimanicomial não se contenta apenas com o fechamento dos manicômios, mas com uma mudança paradigmática no cenário social e político, de modo a olhar a cidadania de uma forma ativa, com a inserção destes atores sociais.
Nessa conjuntura, os movimentos sociais no setor da saúde foram essenciais para a mudança no tratamento das pessoas com doenças intelectuais, eles ganharam destaque durante o período militar. É possível evidenciar o Movimento de Renovação Médica que elabora espaços de discussão e produção do pensamento crítico na área, cenário em que surge o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental, esta organização vai ser fundamental para denunciar e acusar o governo ditatorial quanto ao sistema nacional de assistência psiquiátrica, ressaltando as práticas de tortura, fraudes e corrupção, uso de eletrochoques e a necessiade de assistência à população e a humanização no tratamento assistencial, gerando uma greve em 1978 7.
É válido pontuar que o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental vai ser fulcral para a reforma psiquiátrica, pois se dedicou intensamente a promover uma reflexão crítica quanto ao modelo da psiquiatria no Brasil. Tal mobilização direciona para o surgimento de uma nova política, a Associação Brasileira de Psiquiatria.
O ano de 1978 vai ser relevante, dado que ocorre o V Congresso Brasileiro de Psiquiatria, momento de discussão tanto sobre o regime político como acerca da saúde mental. Nesse momento, a figura de Franco Basaglia já se denota presente na história brasileira, médico psiquiátrico italiano pioneiro na luta antimanicomial, ele conferiu visibilidade ao tema da loucura e foi o responsável pela lei que aboliu os hospitais psiquiátricos na Itália7.
Em 1979 ocorre, em São Paulo, o I Encontro Nacional do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental e, assim, vai expandindo a luta e ampliando a atuação de diversos atores que buscavam um fim comum, qual seja, a luta pela transformação das políticas psiquiátricas. Os movimentos passam a atuar cada vez mais próximos da comunidade, levantando o lema: por uma sociedade sem manicômios. Com essa rede entre os movimentos e os familiares, cria-se o Manifesto de Bauru, documento de fundação do movimento antimanicomial, assim evidencia a relação social de profissionais e da sociedade avançando no tratamento das doenças mentais7.
O Manifesto viabiliza o surgimento da Articulação Nacional da Luta Antimanicomial, expandindo nacionalmente, com a palavra de ordem de se ter uma sociedade sem manicômios. O movimento promove uma radical transformação nas relações sociais acerca do louco e da loucura, convergente com a Reforma Psiquiátrica.
Nesse cenário, a luta se expande a nível nacional, no movimento há uma divisão em três segmentos, são eles usuários, familiares e profissionais. Sendo assim, o Movimento de Luta Antimanicomial é um movimento social engajado na transformação das condições acerca da saúde mental. Logo, a mobilização social foi fundamental para a aprovação da lei da Reforma Psiquiátrica, nº 10.216, em 2001[9], legislação antimanicomial que discorre acerca da proteção e dos direitos das pessoas com doenças intelectuais, evidenciando o modelo assistencial em saúde mental.
Essa legislação promoveu a modificação social, cultural, política e sanitária clamada pelos movimentos sociais, haja vista redirecionou a estrutura assistencial ao preconizar o fechamento dos manicômios, prezando pelo tratamento em liberdade, acrescentando ao Sistema Único de Saúde (SUS), a Psiquiatria Democrática, defendida por Basaglia, com tratamento comunitário e com os Centros de Atenção Psicossocial, ou CAPS, inovação advinda com a lei, para substituir a lógica opressora e desumana dos hospitais psiquiátricos e estabelecer um tratamento territorializado, comunitário e livre, atuando de forma integralizada com outros profissionais da área da saúde[10].
Portanto, ao analisar a contribuição dos movimentos sociais para a mudança paradigmática alcançada na política antimanicomial brasileira, é possível compreender o nascimento do direito de forma transformadora e libertadora, quando por meio da luta social se tem conquistas democráticas.
[1] Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília, Brasília/DF, Brasil. Membro do Programa de Educação Tutorial do curso de Direito da Universidade de Brasília e da Assessoria Jurídica Universitária Popular Roberto Lyra Filho (AJUP-RLF).
Referências
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[2] Conti, Josie. 18 frases Nise da Silveira que são exemplos de sua genialidade, 2018. Conti Outra. Disponível em: https://www.contioutra.com/18-frases-nise-da-silveira-que-sao-exemplos-de-sua-genialidade/#goog_rewarded. Acesso em 13 jul. 2024.
[3] BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990.
[4] De Carvalho Netto, Menelick. A contribuição do direito achado na rua para um constitucionalismo democrático. In: O Direito Achado na Rua: introdução crítica ao direito como liberdade: Volume 10. Universidade de Brasília, 2021. p. 231-232.
[5] Sousa Junior, José Geraldo de. Concepção e prática do o direito achado na rua: plataforma para um direito emancipatório. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário, Brasília, v. 6, n. 1, p. 145-158, jan./mar. 2017.
[6] VIEIRA, Renata Carolina Corrêa; FILHO, Antonio Escrivão. O DIREITO ACHADO NA RUA E A RELAÇÃO ‘DIREITO E MOVIMENTOS SOCIAIS’ NA TEORIA DO DIREITO BRASILEIRO. Direito.UnB – Revista de Direito da Universidade de Brasília, [S. l.], v. 6, n. 2, p. 67–92, 2022. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/revistadedireitounb/article/view/44789. Acesso em: 14 jul. 2024.
[7] Lüchmann, Lígia Helena Hahn e Rodrigues, Jefferson. O movimento antimanicomial no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2007, v. 12, n. 2 [Acessado 14 Julho 2024], pp. 399-407. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S1413-81232007000200016>. Epub 09 Maio 2007. ISSN 1678-4561. https://doi.org/10.1590/S1413-81232007000200016.
[8] Anitua, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Tradução Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan; Instituto Carioca de Criminologia, 2008.
[9] BRASIL. Lei no 10.216, de 6 de abril de 2001. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm
[10] FIOCRUZ. 35 anos da luta antimanicomial e o avanço da contrarreforma psiquiátrica. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio. 2022. Acesso em: https://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/reportagem/35-anos-da-luta-antimanicomial-e-o-avanco-da-contrarreforma-psiquiatrica