Por João Pedro Vasconcellos*
Em 12/12/2022, foi publicado o acórdão que resolveu o mérito da repercussão geral suscitada pelo ARE 843.989[1], debatendo eventual (ir)retroatividade das disposições da Lei 14.230/2021[2] (que alterou a Lei 8.429/1992 – Lei de Improbidade Administrativa[3]) quanto à necessidade de dolo para configuração da improbidade administrativa e à aplicação do novo regime prescricional.
A tese (Tema 1199) foi fixada para impor que a Lei 14.230/2021: (i) é irretroativa com relação aos processos já transitados em julgado; (ii) é retroativa com relação aos processos em andamento que tratem de atos ímprobos em modalidade culposa; e (iii) é irretroativa quanto aos prazos gerais ou intercorrentes.
Trata-se de controvérsia relativa à definição da natureza do ato de improbidade administrativa e da relação entre o Direito Administrativo Sancionador e o Direito Penal. Os debates se desenvolvem em torno da possibilidade de se aplicar o regime jurídico de Direito Penal ao Direito Administrativo Sancionador.
Alguns ministros entenderam que há analogia entre tais ramos do Direito por ambos tratarem do poder punitivo do Estado. A analogia permitiria a aplicação, por simetria, do regime jurídico de Direito Penal ao Direito Administrativo Sancionador e, consequentemente, a incidência do princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica para, no caso concreto, fazer retroagir dispositivos da Lei 14.230/2021.
Outros ministros entenderam que tal analogia não procede e distinguiram o jus puniendi judicial do jus puniendi administrativo. Esse raciocínio levou à conclusão pela impossibilidade de aplicação simétrica do regime jurídico de Direito Penal ao Direito Administrativo Sancionador e, no caso concreto, pela irretroatividade da Lei 14.230/2021.
Trata-se, na origem, de ação civil pública ajuizada pelo INSS em 2006 para condenar Rosmêry Terezinha Córdova ao ressarcimento de prejuízos ao erário (Lei 8.429/1992, art. 10) por atuação culposa como procuradora do INSS, entre 1994 e 1999.
As alterações da Lei 14.230/2021 na Lei 8.429/1992 tiveram relevância para o litígio: a Lei 14.230/2021 excluiu a modalidade culposa de improbidade administrativa e ampliou de 5 para 8 anos o prazo de prescrição da pretensão punitiva do Estado. Em vista disso, passou-se a questionar se a ré poderia ser julgada por ato praticado em modalidade que não mais existe e se o novo prazo prescricional poderia substituir o anterior, devendo ser reconhecida, portanto, a prescrição no caso concreto.
Diante do conflito de leis no tempo, promoveu-se debate no STF quanto à possibilidade de aplicação do regime jurídico de Direito Penal ao Direito Administrativo Sancionador e à natureza do ato de improbidade administrativa.
Os ministros Nunes Marques, Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli e Gilmar Mendes aplicaram, por simetria, o regime jurídico de Direito Penal ao Direito Administrativo Sancionador, atribuindo caráter penal aos atos de improbidade administrativa.
Eles entenderam que, por se tratar de uma pretensão punitiva do Estado, seja no âmbito penal, seja no âmbito administrativo, o regime jurídico aplicável é o de Direito Penal.
No caso concreto, esse entendimento implica o reconhecimento do princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, permitindo que as alterações da Lei 14.230/2021, mais brandas, favoreçam aos réus que respondam por atos praticados sob a vigência da lei anterior, absolvendo aqueles que cometeram atos de improbidade administrativa em modalidade culposa.
No ordenamento jurídico brasileiro, o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica é tratado como exceção ao princípio da legalidade quando há conflito de leis no tempo. No regime jurídico de Direito Penal, em regra, uma lei nova desfavorável ao réu não pode retroagir para condutas anteriores à sua vigência. Em respeito ao art. 5º, XL, da Constituição Federal, a lei nova só retroage quando for favorável ao réu, dado o entendimento doutrinário de que a sociedade não mais atribui à conduta do indivíduo a lesividade que outrora continha. Assim, admite a retroatividade, como garantia do indivíduo contra eventuais excessos do Estado no exercício de seu poder punitivo.
Os ministros Alexandre de Moraes (então relator), Rosa Weber e Carmen Lúcia distinguiram o jus puniendi judicial e o jus puniendi administrativo para recusar tanto a aplicação analógica do Direito Penal ao Direito Administrativo Sancionador, quanto à incidência do princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica.
Durante a sessão de julgamento, o ministro Alexandre de Moraes esclareceu que o Direito Administrativo Sancionador é voltado para a proteção da Administração Pública, enquanto que o Direito Penal é voltado para a tutela da liberdade do criminoso. Haveria, portanto, diversidade da gravidade das sanções instituídas pelo Direito Penal e pelo Direito Administrativo Sancionador, o que impossibilitaria qualquer aplicação analógica.
Vale destacar ainda que o ministro Edson Fachin não se posicionou especificamente sobre o Direito Administrativo Sancionador, mas decidiu não adotar qualquer relação entre os mencionados ramos do Direito por entender que os atos de improbidade administrativo são eivados de natureza civil, sob a justificativa que a Constituição, no art. 37, § 4º, distingue o Direito Administrativo Sancionador dos princípios aplicados ao Direito Penal. Edson Fachin, portanto, pode ser identificado como membro dessa segunda corrente e votou pela irretroatividade da Lei 14.230/2021.
Os ministros André Mendonça, Luís Roberto Barroso e Luiz Fux chegaram a reconhecer certa compatibilidade entre Direito Penal e Direito Administrativo Sancionador, mas recusaram a aplicação irrestrita da simetria.
O ministro André Mendonça reconheceu que, apesar de evidente zona de interseção, há autonomia e independência entre os dois ramos do Direito, o que impossibilitaria a aplicação irrestrita, sem adaptações, de um a outro. No caso concreto, ele votou pela retroatividade da Lei 14.230/2021 para todos os casos de improbidade administrativa em modalidade culposa.
O ministro Luís Roberto Barroso argumentou de forma parecida ao ministro André Mendonça, mas não reconheceu a incidência do princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica e votou pela irretroatividade da Lei 14.230/2021.
Finalmente, o Ministro Luiz Fux também argumentou de forma parecida ao ministro André Mendonça, mas, a exemplo do ministro Barroso, chegou a uma diferente conclusão: votou pela retroatividade da Lei 14.230/2021 nos atos ímprobos cometidos em modalidade culposa, somente nos casos ainda não transitados em julgado.
No final, prevaleceu a proposta do Ministro Relator Alexandre de Moraes, que adotou posicionamento médio, denominado por ele de “irretroatividade parcial”, com fundamentos nos princípios da não ultra-atividade e do tempus regit actum.
Tal proposta se converteu na tese da repercussão geral, que determinou que a Lei 14.230/2021: (i) não retroage para casos transitados em julgado; (ii) retroage para casos não transitados em julgado quando tratem da improbidade administrativa em modalidade culposa; e (iii) não retroage quanto aos prazos prescricionais gerais e intercorrentes.
Quanto ao caso concreto, deu-se provimento ao ARE 843.989, para reconhecer a prescrição em cinco anos dos ilícitos culposos (Tema 897), de forma a negar as pretensões do INSS.
*Graduando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Membro da Revista de Estudantes de Direito da UnB (RED|UnB) e membro do Grupo de Estudos em Direito Empresarial e Arbitragem da UnB (GEA/UnB).
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[1] BRASIL. Superior Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com Agravo, ARE 843.989/PR. Plenário. Relator: Alexandre de Moraes. Julgamento: 18/08/2022. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15355258369&ext=.pdf>. Acesso em: 16 jun. 2023.
[2] BRASIL. Lei 14.230, de 25 de Outubro de 2021. Altera a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, que dispõe sobre improbidade administrativa. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14230.htm>. Acesso em: 16 jun. 2023.
[3] BRASIL. Lei 8.429, de 2 de Junho de 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis em virtude da prática de atos de improbidade administrativa, de que trata o § 4º do art. 37 da Constituição Federal; e dá outras providências. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8429.htm>. Acesso em: 16 jun. 2023.