Por Thamyres Alves de Resende*
Ao analisar o direito é preciso trazer para campo de investigação os fatores históricos, uma vez que o direito é um objeto produzido pelo ser humano em um dado espaço de tempo, assim como destaca Batista (2001) acerca de compreender o direito como produção artificial e, não natural, quando ele fala: “o direito não cai do céu, ele é feito por homens” (Batista, 2001)¹. Desse modo, não diferente, o direito penal surge para a sociedade, enquanto produção social de uma determinada época e realizado por certos indivíduos. Sendo assim, Batista (2001) defende que não é possível conhecer um direito a-histórico, porquanto esse objeto de investigação está intrinsecamente relacionado aos aspectos estruturais da sociedade.
Nessa conjuntura, o direito penal se caracteriza como sendo um conjunto de normas jurídicas e mecanismos normativos. Além disso, o sistema penal se norteia pela realização desse conjunto de normas com a instituição policial, a instituição judiciária e a instituição penitenciária. Embora o direito penal seja justificado enquanto normas jurídicas que possibilitam o convívio social ao assegurar a proteção dos bens jurídicos relevantes e viabilizar a existência de um meio social harmônico, e ainda que seja rotulado como justo e igualitário em sua sistemática, o que se observa é o seu caráter seletivo, o qual age conforme os interesses dos grupos sociais dominantes.
Esse cenário do direito penal segue a influência positivista, a qual determina ser necessário separar o ser do dever-ser, dessa maneira, o direito penal seria tomado alheio à realidade. A criminologia convergente a essa vertente, faz uma análise estrita considerando apenas a causa e a explicação do crime, tal fato se faz benéfico aos interesses da classe dominante, pois fomenta a sua manutenção.
Dessa maneira, o caráter seletivo do direito penal é ratificado, pois a organização da estrutura penal não tutela os interesses comuns de toda a sociedade, mas de indivíduos de grupos dominantes e privilegiados. Isso destaca os aspectos material e ideológico das relações de poder que imperam no sistema penal, o que vai perpetuar no processo de criminalização de determinadas classes, quais sejam, classes populares e grupos sociais vulneráveis.
Nesse cenário, a criminologia crítica surge como uma revolução no estudo para contrapor a criminologia tradicional. Desse modo, a vertente crítica é um estudo amplo preocupado em abarcar elementos que foram negligenciados pela vertente positivista. Ela vai questionar o Código Penal, o sistema penal, e vai traçar uma investigação que traz o recorte social, o recorte material e o recorte histórico, combatendo a análise distorcida da realidade e a manutenção de interesses de grupos privilegiados. Assim, como destaca Carvalho:
A criminologia crítica se fundamenta em uma concepção conflitiva, na qual as agências de controle penal atuam de forma seletiva e excludente(desigual) para reforçar a autoridade e manter vigência dos interesses(valores) de determinados grupos privilegiados (Carvalho, 2022).
Vale destacar, assim como ressalta Carvalho (2022) “não existe a criminologia, mas criminologias”, no sentido de que existem diversos desdobramentos com estruturas distintas, contudo o que se faz relevante em criminologias críticas é a compreensão de que serão estudadas as diversas violências, como a estrutural, institucional e simbólica.
Consoante a construção histórica do pensamento criminológico, é possível evidenciar a influência das ciências biológicas na criminologia e na determinação do perfil do criminoso. Nesse cenário, a Medicina ganha destaque enquanto área do saber a desenvolver práticas de correção e de controle social. Nesse sentido, o século XIX vai ser marcado por discursos de higienismo que favoreciam a classe dominante, a burguesia, haja vista que os médicos ganhavam legitimidade para dizer quais eram os indivíduos perigosos para o meio social (Anitua, 2008)².
Sendo assim, o diagnóstico de perigoso dizia respeito ao risco de tal indivíduo contagiar a normalidade do meio social, sendo identificado como uma célula cancerígena dentre o organismo e, assim, nasce a justificativa para o higienismo com estruturas de limpeza, uma vez que a cidade era interpretada como um campo patológico a ser tratado.
Assim, a Medicina, partindo do controle social, criminalizava tudo que fugia à normalidade burguesa, pois era considerado como perigoso e enfermo e, dessa forma, deveria ser tratado com o modelo médico de cura, por meio de hospitais especiais com desenho arquitetônicos semelhantes a prisões. Logo, a Medicina ganha uma predisposição criminal.
Ainda sobre esse panorama histórico da criminologia, é possível evidenciar a posição da ciência e do positivismo durante o século XIX alinhada ao colonialismo e ao imperialismo europeu ao fomentar o racismo. Nesse âmbito, surgem diversas conotações científicas extremamente negativas para a humanidade, uma vez que a segregação e a discriminação não se limitaram às características apenas sociais ou individuais, mas sim a origem do ser humano. A partir desse momento, começam a ser consideradas raças, pontuando como raças degeneradas aquelas advindas de hibridização.
Assim sendo, as ciências biológicas se tornam extremamente racistas. Tem-se como destaque dois grandes campos: o estudo da frenologia e da fisiognomia, sendo o primeiro um ramo de estudo que buscava comprovar a superioridade da raça branca mediante estudos de crânios e de cabeças. De acordo com tal perspectiva, eram esses fatores biológicos que determinavam os delinquentes, porquanto sustentavam estar presentes nas características desses crânios a comprovação do determinante biológico do fator delitivo, esse ramo foi responsável por instituir o racismo moderno nos Estados Unidos.
Já a fisiognomia analisava o ser humano por meio dos rostos, investigação essa que destacava os preconceitos da burguesia europeia. Por meio do rosto tentavam justificar a inferioridade de raça, eram os negros interpretados enquanto um estado selvagem alheio à civilização, essa teoria racista levou a práticas eugênicas, a genocídios em busca da raça ariana e ao fomento a estereótipos de o indivíduo mal ser o pobre e o de classes baixas.
Logo, levando em conta esse resgate histórico, é possível compreender a relação intrínseca da criminologia e o racismo e do caráter seletivo do direito penal, dado que evidencia a relação desproporcional de classes, que utiliza dos mecanismos de poder e de saber, seja o âmbito criminológico, seja o âmbito do conhecimento médico, para discriminar, para estigmatizar e, sobretudo, para controlar os grupos tidos como indesejáveis, o que destaca Batista (2001) um fim do direito penal, possibilitar às classes dominantes o controle social sobre os indivíduos de classes marginalizadas.
Conforme à análise da criminologia e ao recorte seletivo do direito penal, vale pontuar a perspectiva que Zaffaroni (1997)³ ressalta acerca da relação entre o racismo e a criminologia, ele evidencia que embora o racismo seja uma irracionalidade extrema, carece de uma análise de como refutá-lo e enfrentá-lo, dado que se trata de uma argumentação que ganha eficácia nos campos sociais, os discursos racistas são técnicas de neutralização aplicadas à estrutura de empresas genocidas com a desvalorização da vítima e a hierarquização biológica (Zaffaroni, 1997).
Dessa forma, a hierarquização biológica cria as esferas de inferior e superior que sustentam o discurso racista. Outro elemento que ampara o discurso racista é a cosmovisão conspirativa, a qual evidencia que o mundo é regido por uma intencionalidade que advém de uma consciência humana, assim, não é difícil saber quem é o inimigo e onde encontrá-lo.
Com o discurso de hierarquização biológica é sustentado que os superiores devem governar, orientar ou defender aqueles que decaíram biologicamente, isso porque a ideia de progresso biológico se pauta pela noção de que os superiores alcançaram a evolução em detrimento aos inferiores. Essa ideia de progresso do processo evolutivo direciona ao darwinismo social, o qual parte da ideia racista de que a superioridade era intrínseca ao branco puro.
Desse modo, Zaffaroni (1997) aborda o fato desse discurso racista estar presente nos institutos de criminologia. Assim, o discurso de superioridade ético-estético-espiritual se pauta numa tentativa de cristalização biológica de relações de domínio. Logo, o autor ressalta a importância de não se perder a consciência de que os estudos utilizados se originaram de um capítulo de racismo (Zaffaroni, 1997).
Ao fazer uma análise crítica quanto à operacionalidade do poder punitivo e ao sistema penal, é possível perceber a infeliz convergência de tais mecanismos racistas com o contexto brasileiro, o qual alinha as raízes da escravatura aos elementos criminais e punitivos.
Sendo assim, ao fazer uma síntese histórica, é possível explicitar o projeto de subalternização e estigmatização da população negra no âmbito brasileiro, dados os fatores como os séculos de escravatura, a abolição sem qualquer ação do Estado brasileiro em políticas públicas e em direitos, a marginalização dessa população, os mecanismos legais como a Lei de Vadiagem – os quais visavam por meio do direito criminalizar um determinado grupo – e com o racismo científico fomentado, são relevantes para compreender a seletividade hodierna do direito penal brasileiro.
Evidenciar tais aspectos é compreender a má consciência que Zaffaroni (1997) aborda acerca do direito penal e da criminologia, já que partindo da historicidade, o que se faz sobressalente é um trajeto repleto de desigualdade, de preconceitos e de racismo institucional e estrutural não combatido, mas sim minimizado com a ideia de mito da democracia racial desenvolvido em todo o meio social brasileiro, tal noção disseminada discorria sobre uma relação harmônica entre indivíduos brancos e negros, o que se mostra totalmente prejudicial, uma vez que maquia a sociedade ideal da burguesia e impede uma mudança de conjuntura.
Esse cenário reverbera a condição histórica de escravização e de subalternização colonial do povo negro, o que encaminha para a realidade hostil que tal grupo enfrenta cotidianamente, quando o direito penal e a criminologia moldam perfis de indivíduos considerados criminosos, aplicando seu monopólio de poder punitivo arbitrariamente, sobretudo, ao aplicar a raça como política de controle e exclusão, a qual é utilizada para deliberar quem será punido ou não, quem ocupa o sistema carcerário ou não, quem tem o perfil criminal ou não. Tal circunstância se faz presente nos seguintes versos:
(…) Só pôde ser brincadeira não notar o que eu noto; Meu perfil é criminal, seu perfil é só uma foto; Cinco irmãos do gueto e um Palio é só rajada; O boy que bebe e bate, a PM mata, não dá nada; Cês’ mora tipo em Wakanda, mas finge que é Escandinávia; A sociedade é um leite que azedou, mas sempre que se salva a nata (…) (Voz, 2019)⁴.
Nessa conjuntura, destacam-se as denúncias das classes marginalizadas da sociedade brasileira acerca da aplicação seletiva do poder punitivo, por meio do rap, música de protesto que conta o cotidiano da pele alvo do poder punitivo, como presente nessa estrofe que ressalta o estereótipo perpetuado desde o período da colonização:
(…) Eles querem um preto com arma pra cima; Num clipe na favela, gritando cocaína; Querem que nossa pele seja a pele do crime; Que Pantera Negra só seja um filme (…) (Bluesman, 2018)⁵.
Desse modo, o rap explana quem é de fato o público da instituição policial brasileira, mostrando, pois, a perspectiva seletiva e discriminatória do direito penal e a influência do racismo científico. Sendo esse cenário questionado nos seguintes versos de Nós:
(…) Movimento suspeito, pediram pra encostar; O doc tá no meu nome, é o que te deixa puto; Só pode ser brincadeira; Começa a perguntar; Tem coisa errada na fita; Filhão, cê tá com quem?; Sou eu por eu, doutor; (…) (Nós, 2021)⁶.
Portanto, ao fazer essa análise histórica acerca do direito penal e da criminologia, é possível encontrar as raízes da seletividade e dos preconceitos que perpetuam até os dias hodiernos na aplicação do sistema penal, uma vez que se evidenciam as relações de poder e de classes dominantes que direcionaram ao controle social e à estigmatização dos indivíduos considerados como marginais aos seus interesses.
Por conseguinte, é viável compreender a lógica do direito penal em seu contexto histórico, mas também as suas influências no que tange à relação do poder punitivo e da criminologia com o racismo estrutural e institucional no território brasileiro, haja vista que ao analisar a conjuntura nacional é possível concluir o grupo o qual o direito penal atinge, qual seja, a população negra brasileira (Andrade, 2020)⁷.
* Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília, Brasília/DF, Brasil. Membro do Programa de Educação Tutorial do curso de Direito da Universidade de Brasília e da Assessoria Jurídica Universitária Popular Roberto Lyra Filho (AJUP-RLF).
[1] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.
[2] ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Tradução Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan; Instituto Carioca de Criminologia, 2008.
[3] ZAFFARONI, Eugênio Raul. El discurso racista: eficacia de su estructura. Eguzkilore: Cuaderno del Instituto Vasco de Criminología, n. 11, 1997, p. 259-265
[4] DJONGA. Djonga – Voz pt. Doug Now & Chris MC. Youtube, 2019.
[5] BACO EXU DO BLUES. Bluesman. Youtube, 2018.
[6] DJONGA. Djonga- Nós.Youtube, 2021
[7] ANDRADE, Paula. O encarceramento tem cor, diz especialista. Agência CNJ de Notícias. Conselho Nacional de Justiça, 2020.