Por: Caio Pereira Negrão
O Direito Moderno nada mais é do que o Direito produzido pelo Estado Moderno, um modelo pautado no Direito posto pelo Estado. Esse modelo moderno denomina-se de monista, por ter o Estado como única fonte válida do Direito, em oposição ao modelo pluralista, que leva em consideração as abordagens interculturais e pluralistas, desmistificando as relações necessárias estabelecidas entre o Direito e o Estado. O Brasil adota em seu ordenamento a tese positivista de que o Estado é o único legitimado para criação do Direito. Com isso, mesmo com o recente reconhecimento das comunidades indígenas como formas de organizações que devem ser respeitadas e preservadas, a Constituição Federal impede o reconhecimento de que as comunidades indígenas exerçam o autorregulamento com base em sua cultura e tradições[1].
Entretanto, outras opções foram adotadas por constituintes sul-americanos. Por exemplo, a Constituição da Colômbia inovou ao garantir aos povos indígenas o direito de exercerem funções jurisdicionais dentro de seus territórios, em conformidade com suas próprias normas e procedimentos, desde que não fossem contrários à Constituição e às leis do país[2]. Desse modo, as comunidades indígenas conseguem imprimir a sua cultura e modo de vida na sua própria legislação, implicando num maior grau de apropriação do Direito por essas comunidades. Nesse esteio, o artigo 246 da Constituição colombiana inova ao reconhecer a autonomia para que os povos indígenas exerçam funções jurisdicionais dentro de seus territórios, sendo o ponto de partida para a criação da Jurisdição Especial Indígena (JEI), entendida como a faculdade que têm os governantes dos povos indígenas para dirimir conflitos dentro dos marcos dos seus costumes e tradições, em benefício de sua própria comunidade[3].
Desse modo, a Jurisdição Especial Indígena surge como uma tecnologia social que nasce no momento de concretização do pluralismo jurídico como preceito constitucional na Colômbia, sendo pensada para democratizar o acesso à justiça das comunidades indígenas, ganhando uma conotação estratégica no contexto da segurança pública na Colômbia devido aos episódios de violência crônica vivenciados no país desde os anos 80. O Foro Indígena se exerce somente dentro dos limites territoriais indígenas e somente a pessoa pertencente à determinada comunidade pode ser objeto de sua justiça.
Cada comunidade indígena estabelece e define as autoridades competentes para aplicar as sanções judiciais, bem como cada uma tem a prerrogativa de estabelecer o procedimento a ser seguido e adotado em cada caso, de modo que a aplicação de determinadas sanções varia dependendo das diferenças culturais de cada povo. Assim, os costumes e tradições são as bases de todas as ações e definem as classes e formas de castigos e sanções. Este arranjo tem tido um papel especial no reconhecido sucesso da Colômbia em lidar com sua histórica crise de segurança pública, visto que o Código Penal de 2000 reconhece essa jurisdição e aceita o indígena como pertencente a uma comunidade culturalmente diversa e, portanto, destinatário de uma jurisdição especial conforme o direito e tradições do seu povo[4].
A experiência colombiana pode oferecer valorosos métodos para se pensar em novas estratégias e tecnologias sociais para enfrentar a grave situação da criminalidade que o Brasil vivencia, por ser a JEI um caso exemplar de como instituições fundamentadas no pluralismo jurídico podem inspirar tecnologias sociais estratégicas de sucesso para a superação de crises de segurança pública. Desse modo, a previsão da pluralidade jurídica na Colômbia, entendida, na visão de Norberto Bobbio[5], como decorrente da existência de dois ou mais sistemas jurídicos, dotados de eficácia, concomitantemente em um mesmo ambiente espaço-temporal, constitui-se como verdadeira tecnologia social emancipadora da colonialidade, na medida em que se configura como amplificador das perspectivas culturais, políticas e sociais indígenas, permitindo que as comunidades indígenas consigam imprimir sua cultura e modo de vida na sua própria legislação, implicando num maior grau de apropriação do Direito por essas comunidades. Com isso, a legislação indígena se torna importante meio de gestão de segurança pública nas comunidades, visto que o uso do foro indígena, fruto do reconhecimento do pluralismo jurídico na constituição colombiana, enquanto tecnologia social estratégica, possibilita que os povos indígenas façam o controle jurisdicional de seus territórios, atuando ao lado do Estado colombiano no combate à criminalidade e servindo de exemplo aos outros países latino-americanos.
Na pesquisa, pretendeu-se estudar a Jurisdição Especial Indígena sob o enfoque do Projeto Decolonial, que nasce para complementar o sentido de descolonização. Nelson Maldonado-Torres[6] argumenta que os países latino-americanos, no processo de independência de suas potências europeias, iniciaram o processo de descolonização das estruturas do poder colonial, ou seja, os países europeus deixaram de ter controle sobre a administração local, ficando a cargo dos líderes locais. Entretanto, argumenta o autor, esse processo de tomada do poder não veio acompanhado de uma tomada da narrativa, da cultura e do modo de produção do conhecimento, de modo que as potências europeias continuaram a exercer esse papel, tornando-se um modelo a ser seguido pelos países latino-americanos nos campos político, econômico, social, científico, cultural etc.
Nesse sentido, o Projeto Decolonial, segundo Thula Pires[7], trata de uma abordagem que, além de trabalhar as origens do colonialismo, pretende traçar as continuidades das estruturas de dominação econômicas, políticas e culturais fundadas no período colonial e reproduzidas na contemporaneidade. Nesse sentido, a crítica ao eurocentrismo e à sua adoção como modelo de universalidade é crucial para esse projeto. E, complementarmente, há o compromisso de amplificar as perspectivas epistemológicas, culturais, políticas e econômicas silenciadas nos últimos tempos, como aquelas dos povos não europeus que integram as sociedades latino-americanas: os povos indígenas. Portanto, observa-se que o sucesso da JEI está relacionado com esse paradigma decolonial, decorrente do fato de implementar uma nova forma de gerir a justiça que não está ligada à lógica do sistema de justiça ocidental, que veio junto com a colonização europeia e que não é adequada para ser adotada na sua integralidade nos países latino-americanos, devido ao fato de não estarem adaptadas aos costumes e tradições de parte da população, que é a principal vítima dessa violência.
Este projeto de pesquisa investiu em tema que mereceu ser analisado diante da realidade brasileira, principalmente dos avanços legais e jurisprudenciais vivenciados na Colômbia, com reconhecimento de ordens jurídicas estatais e não-estatais, principalmente reconhecendo o sistema normativo comunitário dos povos originários, de forma a determinar a existência de pluralismo jurídico. Desse modo, a pesquisa se justificou na medida em que buscou identificar as ações, arranjos institucionais e tecnologias sociais responsáveis pelo sucesso das Jurisdições Indígenas Especiais enquanto estratégia de gestão de segurança pública na Colômbia, analisando de que maneira o Brasil pode adotar métodos semelhantes no combate à criminalidade nas comunidades indígenas.
Portanto, o presente projeto teve como objetivo analisar de que forma a adoção da Jurisdição Especial Indígena na Colômbia, enquanto tecnologia social estratégica, contribuiu para a gestão da segurança pública no país, visando propor uma nova abordagem para o Brasil adotar. Assim, para se alcançar o objetivo geral proposto, foram traçados os seguintes objetivos específicos: pesquisar sobre o reconhecimento do pluralismo jurídico em relação aos povos indígenas; compreender o campo jurídico, agentes, hierarquias, habitus e capital simbólico da Jurisdição Especial Indígena na Colômbia; identificar e mapear casos exemplares de funcionamento da Jurisdição Especial Indígena enquanto tecnologia social estratégica, bem como resultados nas estatísticas de segurança pública; analisar a efetividade da implementação de uma Jurisdição semelhante no Brasil.
Levando-se em consideração o tema proposto, a pesquisa teve caráter exploratório-descritivo: é exploratória por não haver muita produção científica sobre a temática abordada, e, por meio do estudo exploratório, buscou-se conhecer com maior profundidade o assunto, de modo a torná-lo mais claro. Gil[8] destaca que esse tipo de pesquisa é realizado, sobretudo, quando o tema escolhido é pouco explorado. Além disso, a pesquisa tem caráter descritivo por “[…] identificar e descrever características de determinado fenômeno, estabelecendo relação entre variáveis”[9]. Esse método se mostrou mais adequada para levantar dados e informações sobre a JEI como tecnologia social de segurança pública na Colômbia, com análise interpretativa normativa, jurisprudencial e bibliográfica e com arguição de informações e conhecimentos na Constituição, nas leis ordinárias da Colômbia e nos julgados da Corte Suprema colombiana, além de levantamento e estudo de diferentes materiais bibliográficos já publicados, colocando em diálogo, assim, diferentes dados e autores. Ademais, a pesquisa teve caráter qualitativo por buscar compreender como se dá o fenômeno da jurisdição indígena na Colômbia. Richardson menciona que “os estudos que empregam uma metodologia qualitativa podem descrever a complexidade de determinado problema, analisar a interação de certas variáveis, compreender e classificar processos dinâmicos vividos por grupos sociais”[10].
Caio Pereira Negrão – Bacharelando em Direito na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Bolsista de iniciação científica PIBIC/UFBA – CNPq. Diretor de Direitos Humanos na União dos Estudantes da Bahia (UEB). Membro do Grupo de Pesquisa “Historicidade do Estado, Direito e Direitos Humanos: interações sociedade, comunidades tradicionais e meio ambiente”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
[1] RIZZI, Ester Gammardella. Pluralismo jurídico e justiça indígena nas normas constitucionais e na prática jurisdicional do Brasil, da Colômbia e da Bolívia. Coleção Pensar a América Latina e o Caribe: Estudos Sociais na América Latina: Sociedade, Economia e Política, São Paulo, v. II, p. 35, 2019.
[2] COLÔMBIA. CONSTITUCIÓN POLÍTICA DE COLOMBIA. 1991, artigo 246. Disponível em: https://www.corteconstitucional.gov.co/inicio/Constitucion%20politica%20de%20Colombia.pdf. Acesso em 06 de abril de 2021.
[3] ZULETA ZULETA, A. M., & ROMERO-CÁRDENAS, R. (2020). Coordinación entre la JEP y la JEI: rol de las autoridades indígenas en la justicia aplicada durante el posacuerdo. Opinión Jurídica. p. 167-185. https://doi.org/10.22395/ojum.v19n39a7.
[4] BECERRA, Carmen Andrea Becerra. La jurisdicción especial indígena y el derecho penal en Colombia: Entre el pluralismo jurídico y la autonomía relativa. El Acceso a La Justicia: entre el derecho formal y el derecho alternativo. Bogotá, v. 35, p. 214, dez. 2006. Disponível em: http://www.ilsa.org.co/biblioteca/ElOtroDerecho/Elotroderecho_35/El_otro_derecho_35.pdf.
[5] BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 6 ed. Brasília: EdUNB, 1995, p. 162.
[6] MALDONADO-TORRES, Nelson. La descolonización y el giro des-colonial. Tábula rasa, Bogotá, n. 9. P. 61-72. 2008.
[7] PIRES, Thula. Por um constitucionalismo ladino-amefricano. In: BERNADINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramón. Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. cap. 13, p. 285-303.
[8] GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 5. ed. São Paulo: Atlas, 1999.
[9] RAUPP, Fabiano Maury; BEUREN, Ilse Maria. Metodologia da pesquisa aplicável às ciências sociais. In: BEUREN, Ilse Maria (Org.). Como elaborar trabalhos monográficos em contabilidade: teoria e prática. São Paulo: Atlas, 2003. p. 76-97. Disponível em: https://www.unisc.br/pt/portal/upload/com_arquivo/metodologia_de_pesquisa_aplicavel_as_ciencias_sociais. Acesso em: 18 maio 2021.
[10] RICHARDSON, Roberto Jarry. Pesquisa social: método e técnicas. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1999.