Por Hanna Luíza Souza Pereira*
Nos últimos anos, houve um aumento na recorrência da população ao Judiciário para asseverar direitos fundamentais. Esse cenário pode ter diferentes interpretações, mas para Neal Tate e Torbjorn Vallinder, a “judicialização da política” é um processo social que indica a dominação dos tribunais sobre a produção de políticas públicas e a deliberação sobre questões sociais, atitudes anteriormente exercidas por outras instituições governamentais¹.
Nem sempre os ideais de igualdade e democracia guiaram a sociedade, a exemplo da América Latina antes do século 18. A tendência democrática vista como “natural do ser humano” foi produzida através de forças sociais que lutaram por direitos e reconhecimento no decorrer das décadas. A modernidade e a globalização ajudaram nesse progresso ao, teoricamente, destruírem o equilíbrio oligárquico, mas em contrapartida influenciaram os processos políticos que levaram às ditaduras no Sul global².
Depois do ciclo de regimes militares, os países latino-americanos adotaram o arquétipo do Estado de Direito e estão tentando consolidá-lo, seguindo aspirações de cidadania, pluralismo político e dignidade da pessoa humana, reconstruindo suas constituições pós-redemocratização com maior garantia de direitos básicos e observando os tratados internacionais de direitos humanos, todavia, há vários desafios para sua concretização na atualidade³.
Em suma, após duros períodos ditatoriais impulsionados pelo Poder Executivo e auxiliados pelo Poder Legislativo vigente, o Poder Judiciário surge como um ator crucial ulterior a redemocratização latina, guiados pela necessidade de proteger o Estado de Direito vigente para que a República não seja ameaçada e condenada como aconteceu poucos anos atrás. Como o Estado Democrático é a meta das sociedades contemporâneas, os países devem assegurar os princípios citados para alcançar seu objetivo, e um instrumento utilizado pode ser as Cortes Constitucionais⁴.
1. O avanço social do papel do Judiciário
A utilização da justiça e do direito como recursos dos agentes sociais contra o Estado ou em oposição ao poder político não é um caso recente – desde a Terceira República Francesa, os advogados usavam a justiça como uma espécie de arena política⁵. Com a judicialização hodierna, o Poder Judiciário ganha uma nova atuação: a de garantir direitos sociais e fazer que a agenda dos grupos avance⁶, agindo tal como um guardião da Constituição. Se anteriormente a seara judicial era programada para restringir as iniciativas populares⁷, atualmente assume um papel de ferramenta política para os movimentos sociais.
Em verdade, ao Poder Executivo é atribuida a posição de guardião e garantidor do Estado de Bem Estar Social, especialmente após os anos 60 nos Estados Unidos com a reivindicação de direitos civis por populações minorizadas, a exemplo do caso Brown x Board of Education, que abordou o fim da segregação racial entre crianças negras e brancas nas escolas americanas. Sob a perspectiva “se não pode contra eles, junte-se a eles” o governo estadunidense assumiu uma postura mais branda e conciliativa com as camadas inferiorizadas, de forma a defender os seus interesses para evitar uma revolta populacional maior.
O Poder Legislativo, de maneira semelhante, se resguarda como um representante legítimo – pois eleito – da população e visa concretizar seus interesses. Em consequência, o Judiciário também deve acompanhar a tendência de se alinhar às reivindicações populares e assumir o papel de guardião constitucional e garantidor de direitos básicos. Enquanto alguns entendem a judicialização da política ou politização do Judiciário como uma medida extrema e desnecessária, pelo contexto histórico-social é possível dizer que tal atitude seria inevitável, e até mesmo atrasada em relação aos demais Poderes.
No final do século 20, há uma mudança no sistema de direito que surge com um novo padrão jurídico adaptável às necessidades sociais e estatais⁸. Disso decorre o crescimento do controle da constitucionalidade e da política por parte do Judiciário, mediante as denominadas Cortes Constitucionais, objetivando fortalecer a democracia e os direitos humanos. Assim, tais instituições detêm a última palavra em decisões relevantes, podendo revisar os decretos do Executivo e do Legislativo para impedir o avanço de medidas inconstitucionais⁹.
Tal conjuntura chega no continente latino americano ao final dos anos 80, com a queda do autoritarismo e uma onda de reformas constitucionais, focada nos direitos dos cidadãos e prezando por inclusão política e econômica universal, garantindo direitos constitucionais positivos como alimentação, educação e saúde¹⁰. Ou seja, as novas Constituições têm como intuito resguardar direitos desrespeitados durante os regimes militares que assombraram o território.
As transformações das décadas de 90 e 2000 levam a processos de destradicionalização (que conduz a Justiça a um âmbito transnacional), de neoliberalização (englobando a política e suas liberdades) e de democratização (transparência no funcionamento do sistema judiciário para os cidadãos, além de dar-lhes voz ativa). Esses novas categorias influenciam na politização e internacionalização das cortes e orientam a sociedade a uma redefinição da relação entre política e justiça, pois a primeira possui lacunas que a tornam incapaz de solucionar problemas delicados, portanto o corpo social recorre à segunda para estabelecer princípios de convivência¹¹.
O Estado de Direito é estruturado a partir da divisão e independência de poderes, do fracionamento do poder do Estado e da descentralização, logo, viabiliza o acesso à via judiciária em casos de ameaça ou lesão de direitos do cidadão. As garantias constitucionalmente previstas precisam de um maquinário para efetivá-las, se não, não passam de palavras escritas em um papel, e com o enfraquecimento da política as sociedades modernas colocam essa função nas Cortes, situação que permite aos juízes iniciarem, terminarem ou moldarem reformas importantes na cultura política e jurídica¹².
2. O constitucionalismo latino-americano
Ao tomarem uma posição passiva durante períodos tão críticos que aniquilaram a soberania popular e os direitos humanos – vide as ditaduras militares na Argentina, no Brasil e no Chile nas décadas 70 e 80 -, a tarefa dos juízes precisou ser ressignificada para que eles exercessem um impacto mais positivo na sociedade, prezando pela democracia e pelo rule of law¹³.
Javier Couso identificou uma transição democrática coletiva na América Latina na década de 1990. Igualmente, o autor aponta uma expansão generalizada do Poder Judicial, causada pela revisão de constitucionalidade das leis pelos tribunais de acordo com um modelo norte-americano, principalmente na Colômbia e no Brasil¹⁴.
Analisando o advento da constitucionalização dos direitos sociais no continente, percebe-se que posteriormente a Revolução Mexicana de 1910 e a mobilização da classe trabalhadora contra a desigualdade e o autoritarismo que cresciam, a Constituição mexicana de 1917 se atentou aos direitos sociais, influenciando as Cartas vizinhas que passaram a reforçar a classe trabalhadora como ator político e econômico importantíssimo no século 20.
De tal forma, a América Latina se mostrou vanguardista no constitucionalismo social. Vale ressaltar, todavia, que a organização do poder continuou conservadora e restritiva, e na prática os compromissos sociais só foram adicionados à Lei Maior para acalmar os ânimos revolucionários, pois, apesar de alteradas, as constituições mantinham sua matriz original¹⁵. Apesar dos avanços modernizantes, os latinos preservaram e ainda preservam as formas tradicionais do exercício de poder, organização política e relações entre a esfera pública e interesses privados dos grupos dominantes. Isso se deve à herança colonial ibérica da região¹⁶ que normalizou a cultura do patrimonialismo.
Como bem exposto por Aníbal Quijano¹⁷, o processo de colonização dos países americanos se deu de forma violenta e opressiva, através de séculos de controle eurocêntrico sobre os demais povos. Não só isso, o colonialismo baseou a globalização, e por conseguinte esta ainda possui traços da colonialidade do poder e divisão de classes de acordo com raça, gênero, etnia…
Somando-se a essas problemáticas, a independência dos americanos se deu sem uma descolonização da sociedade, sendo uma mera rearticulação da colonialidade em novas bases institucionais, impedindo o desenvolvimento e democratização da sociedade e do Estado. De tal forma, os sistemas latinos tiveram dificuldades em delinear traços próprios de forma a respeitar a pluralidade da região, baseando-se em desigualdade e domínio das elites que atrapalham a participação política proporcional até os dias atuais, e portanto inviabilizam uma democracia do povo e para o povo.
Não é à toa, a maioria desses países adentrou o século 20 com constituições concebidas por acordos políticos entre as forças dominantes da região, os liberais e os conservadores, contexto que bloqueou as iniciativas de questões sociais, omitindo importantes pautas. Assim sendo, as novas Leis apresentavam elementos semelhantes à Magna Carta liberal dos Estados Unidos, mas também da Constituição conservadora do Chile de 1833¹⁸.
Mas com o fortalecimento da classe trabalhadora industrial urbana, houve uma demanda de participação ativa na vida política, e como o velho esquema social excludente se mostrava insustentável, as camadas favorecidas, para não abrir mão de seus privilégios, incluíram as demandas sociais no acordo liberal-conservador para conter a agitação social¹⁹.
3. Considerações Finais
Em uma perspectiva crítica, Boaventura de Sousa Santos aponta o risco dos juízes utilizarem o aumento de sua responsabilidade para conseguirem privilégios ao invés de ajudar no processo de democratização. Da mesma forma, Ran Hirschl indica o perigo de uma “juristocracia” e partidarização das Cortes Superiores por meio da indicação (appointment) dos magistrados e inflexões normativas²⁰.
Similarmente, passar a tomada de decisões dos políticos eleitos para os Tribunais gera problemas de representatividade e produz uma disputa pelas cadeiras do Judiciário devido ao aumento de sua influência. O crescimento da importância desse Poder arrisca uma politização do Judiciário, onde políticos são nomeados para as Cortes visando garantir os interesses do presidente na tomada de decisões²¹.
A partir da problematização do conceito de judicialização, é possível refletir se o Judiciário possui uma função “natural” não-política e se é possível fazer uma separação absoluta entre jurídico e político, fora a tensão gerada entre as áreas pelo aumento do mérito dos tribunais. Andrei Koerner acredita que o sistema judiciário faz parte do sistema político e por vezes ganha destaque em determinados momentos históricos para solucionar conflitos políticos, sendo cético sobre essa possível prevalência do Judiciário sobre os demais poderes²². O direito, então, não é um instrumento neutro, mas possui ramos axiológicos.
Júlio Aurélio Vianna Lopes observa uma diminuição do vigor da política perante as transformações no mundo social e, consequentemente, a ocupação do direito desse lugar. As lutas passam a ser jurídicas e não mais políticas²³. Somando-se a isso, há um descrédito das instituições políticas perante a sociedade civil, principalmente na realidade latina, que ao procurar outro garantidor de suas vontades, se apoia no Judiciário.
Para Luciana Ballestrin²⁴, isso se deve a um projeto neoliberal de esvaziamento da política que gera desdemocratização, refletido no aumento de discursos autoritários, e escancarado na comum ideia de que a razão jurídica é mais nobre que a razão política, pois esta é corrupta e pode favorecer interesses particulares em detrimento da vontade geral, colocando o juiz como regulador das relações sociais²⁵.
A judicialização pode ser interpretada como benéfica ao ampliar as regras liberais do direito, desde que mantida sob controle popular. Mas é relevante se perguntar até que ponto ela reforçaria ou enfraqueceria a democracia, pois ao expropriar o espaço da política, se mostra maléfica por ocupar o lugar de pessoas democraticamente eleitas para representarem a população e tomarem decisões difíceis em nome dos eleitores, o que pode ter graves impactos em um sistema democrático a longo prazo. Adiciona-se outra questão problemática: a globalização e o intercâmbio entre os países enfraquecem as tradições prejudiciais, mas retiram a identidade nacional e as especificidades de cada sociedade.
Outro fato que contribui para essa visão mais pessimista é que, apesar do crescimento da judicialização e das Cortes Constitucionais no mundo, o seu desenvolvimento é consideravelmente decepcionante, visto que a atualidade presencia o retorno do populismo, do neo-autoritarismo e um retrocesso da democracia²⁶. Até que ponto as Cortes cumprem o seu real papel? Apesar da teoria de um órgão que proteja os desejos sociais ser bela, deve-se atentar ao que está acontecendo na prática, observar a relação entre o progresso do Judiciário e da economia em detrimento da política e da democracia representativa, esferas cruciais da sociedade.
* Graduanda em Direito na Universidade de Brasília, aprecia o tripé universitário e o exerce através do Programa de Extensão Tutorial – PET e Programa de Iniciação Científica. Enquanto estagiária no Supremo Tribunal Federal, se interessa pela discussão sobre as Cortes Constitucionais. Já foi monitora de Modelos e Paradigmas da Experiência Jurídica (Direito Constitucional Comparado), Introdução à Ciência Política e Pesquisa Jurídica, experiências que auxiliaram na escrita do texto.
[1] VERONESE, 2009
[2] PÉREZ-PERDOMO; FRIEDMAN, 2003.
[3] BEDIN, 2010.
[4] BEDIN, 2010.
[5] KARPIK, 1995 apud COMMAILLE, 2007.
[6] VERONESE, 2009.
[7] GARGARELLA, 2013.
[8] Ibid.
[9] CHANG, 2019
[10] GARGARELLA, 2013.
[11] COMMAILLE, 2007.
[12] PÉREZ-PERDOMO; FRIEDMAN, 2003.
[13] Ibid.
[14] VERONESE, 2009.
[15] GARGARELLA, 2013.
[16] BOMFIM, 1993 apud BEDIN, 2010, p. 180
[17] QUIJANO, 2000.
[18] GARGARELLA, 2013.
[19] GARGARELLA, 2013.
[20] VERONESE, 2009.
[21] CHANG, 2019.
[22] VERONESE, 2009.
[23] Ibid.
[24] BALLESTRIN, 2018.
[25] COMMAILLE, 2007.
[26] CHANG, 2019.
Referências
BALLESTRIN, Luciana. O debate pós-democrático no século XXI. Revista Sul-americana de Ciência Política, v. 4, n. 2, 2018.
BEDIN, Gilmar Antonio. Estado de Direito e seus Quatro Grandes Desafios na América Latina na Atualidade: uma leitura a partir da realidade brasileira. Sequência, n. 61, p. 171-195, dez. 2010.
CHANG, When-Chen. Back into the political? Rethinking judicial, legal and transnational constitutionalism. ICON, 2019.
COMMAILLE, Jacques. La justice entre détraditionnalisation, néolibéralisme et démocratisation: vers une théorie de sociologie politique de la justice. In: COMMAILLE, Jacques (dir.); KALUSZYNSKI, Martine (dir.). La fonction politique de la justice. Paris: La Découverte, 2007. p. 295-321.
GARGARELLA, Roberto. Constitucionalismo latino-americano: a necessidade prioritária de uma reforma política. In: Constituinte exclusiva: um outro sistema político é possível, 2013, p. 9-19.
PÉREZ-PERDOMO, Rogelio; FRIEDMAN, Lawrence. Latin legal cultures in the age of globalization. In: PÉREZ-PERDOMO, Rogelio; FRIEDMAN, Lawrence. Legal cultures in the age of globalization. Stanford, CA: Stanford University Press, 2003, p. 1-19.
QUIJANO, Aníbal. Coloniality of Power, Eurocentrism, and Latin America. Nepantla: Views from South, Volume 1, Issue 3, 2000, pp. 533-580.
VERONESE, Alexandre. A judicialização da política na América Latina: panorama do debate teórico contemporâneo. Revista Escritos, Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, 2009.