O Movimento Dos Trabalhadores Sem Terra como potência humanitária na região Sudeste

por AJUP Roberto Lyra Filho

Por Hanna Luíza Souza PereiraLuara Martins Pessôa**,

O Seminário Formação Comunitária em Direitos Humanos foi uma iniciativa promovida pela Universidade de Brasília, pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, e pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos, com o apoio do Governo Federal e do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, contando com a participação ativa da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos – CONAQ, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB e das Assessorias Jurídicas Universitárias Populares – AJUPs da Universidade de Brasília e do Rio de Janeiro

Dos dias 27 a 29 de maio, essas entidades ocuparam a Escola Nacional Florestan Fernandes, em Guararema – São Paulo, para debater o cenário de criminalização dos movimentos sociais e demais temas relevantes para as articulações de Direitos Humanos, contando com uma Mesa de Abertura, uma conferência inaugural com o tema “Direitos Humanos na atualidade”, que recebeu a ilustre presença do professor José Geraldo de Sousa Júnior.

1. Formação teórica cultural do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra

Durante a cooperação que se formou entre Assessorias Jurídicas Populares e o Setor de Direitos Humanos do Movimento de Trabalhadores Sem Terra, e se cristalizou no projeto que promoveu o seminário objeto desse artigo, foi possível contemplar a atuação histórica e política da luta popular pelo usufruto da terra, elucidando os procedimentos e mobilizações desempenhados pelo MST. É destaque na mesa protagonizada pelo professor José Geraldo Souza Júnior, como ressignificação dos espaços geográficos manifesta-se na luta política por meio da ocupação e da contemplação dos indivíduos que o habitam, fenômeno este que é observado na ocupação da terra. É destaque para esse artigo, considerar o longo processo de regulamentação que a luta pela ocupação fundiária perpassa, na qual o movimento social primeiramente se assenta frente a um fato político, refugiando e alocando uma plenitude de famílias. Somente posterior a esse trabalho de base, que o assentamento após árdua disputa recebe a validação normativa jurisdicional e torna-se um acampamento, sendo objeto de maiores coordenações e encaminhamentos para suprir suas demandas. As considerações levantadas no presente trabalho tem como objeto os acampamentos do Movimento de Trabalhadores Sem Terra, em sua qualidade de estabilidade e projeto histórico, inseridas em seu respectivo contexto político.

Nesse contexto, é fundamental observar como os pilares que regem a atuação do movimento dialogam com a efetivação dos Direitos Humanos e dos interesses populares. Os rendimentos necessários para a subsistência nos números representados pelos acampamentos são demonstrativos do horizonte político proposto pelo movimento social de soberania alimentar, em que a produção quando orientada pelo bem estar social, e não desvirtuada pela expropriação do trabalho direcionada para o lucro do setor privado, pode ser capaz de suprir problemáticas de distribuição em combate a fome e a miséria. A proposta de reforma agrária, incide diretamente e dialoga com pressupostos fundamentais da política fundiária, potencializando a produção nacional.

É célebre o diálogo da missão proposta com o uso e a ocupação do espaço por sujeitos de direitos, transformando-o em um campo de proposição política e ideológica, principalmente no que se refere à prática das marchas. Louvada pelo discurso do professor, as marchas do MST representam a organização popular acompanhada do efetivo desempenho político, promovendo o crescimento e a estruturação do movimento pelo território nacional, enquanto simultaneamente desempenha a ação humanitária por onde passam, evidenciando uma conscientização social transformadora para a reivindicação de direitos e melhores condições sociais de dignidade humana.

Esse projeto tem um escopo pedagógico crucial, nos moldes educativos propostos por Paulo Freire em que a revolução se encontra indissociável da educação, em seu papel transformador da realidade, a qual espelha diretamente o espaço em que os seminários tomaram forma. A Escola Nacional Florestan Fernandes, atuando como base formativa cultural e educacional do movimento, perpetua-se como um monumento ao papel da educação transformadora.

2. Atuação do MST na região Sudeste do Brasil

No âmbito nacional, mais de 50 massacres ocorreram no campo de 1985 a 2019, mesmo após a promulgação de uma Constituição considerada Cidadã, dentre eles, algumas semelhanças referentes às formas de violência e ataque destacam-se aos olhos. Durante as mesas de debate, foi possível perceber que os acampamentos da região sudeste possuem características que os diferenciam, mas também objetivos e questões que os unem. 

Um problema comum enfrentado em todos os estados são as consequências advindas da tentativa de criminalizar os movimentos sociais, que ocorre tanto através do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas Estaduais, no próprio Poder Judiciário, além das articulações de grupos formados por fazendeiros, milicianos, seguranças privados etc. Caracteriza-se uma união firmada entre esses indivíduos na tentativa de barrar a atuação legítima do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, de forma a demonizar os militantes, tentar de todos os modos barrar as ocupações e até mesmo invadir áreas que já estavam conquistadas.

Durante o Seminário, uma pontuação importantíssima foi elencada, qual seja, a dualidade criada pelo capitalismo de que ser humano e natureza são coisas distintas e até rivais. Essa ideia é respaldada pela mídia, que transmite essa dicotomia como algo normal, uma vez que a natureza é vista como objeto a ser explorado. Nesse contexto, os países “desenvolvidos” se ancoram nessa ideia para prosseguir com seu acúmulo permanente de capital, através da exploração de riquezas de países subalternos, amparados pelo Direito, pela violência estatal e pelas classes dominantes. Esse abuso dos recursos naturais é tamanho que até as áreas preservadas são atingidas, em um movimento conhecido como “frente de expansão”.

O sistema de justiça acaba servindo como um perpetuador dessa lógica proprietária-patrimonialista hegemônica burguesa, principalmente nos massacres agrários de integrantes do movimento. Isso se mostra na tentativa de silenciamento constante presente nos autos processuais, que desaparecem ou são difíceis de localizar, o tratamento das vítimas como se criminosas fossem e completamente desumanizadas, uma clara parcialidade dos juízes, a impunidade, o corporativismo que protege aqueles que fazem parte do sistema, a morosidade e a própria precariedade do Poder Judiciário, que resulta em diligências e perícias mal feitas ou sequer realizadas, gerando a nulidade do processo.

Na região de Aracruz, no litoral do Espírito Santo, há dois acampamentos do MST, mesmo município em que se localiza a aldeia Tekoá Mirim, da qual os indígenas tupiniquins são descendentes diretos do povo que presenciou a chegada dos portugueses ao Brasil pela primeira vez¹. A demarcação de suas terras ocorreu somente em 2007, após muita mobilização e manifestação dos povos originários, que ocuparam o complexo agro-industrial da empresa Aracruz Celulose, a maior empresa de celulose de eucalipto do mundo, que invadiu as suas terras, respaldada pela demora do Governo Federal de demarcar o seu território²

Não obstante, a sua permanência foi ameaçada pelo Projeto de Lei nº 490/07, que visava alterar o Estatuto do Índio e estabelecer que as terras indígenas fossem demarcadas a partir da Lei. O PL em questão originou a Lei Ordinária nº 14.701/2023, também conhecida como Marco Temporal.

As polêmicas da empresa não param por aí, no mesmo ano, cerca de 80 ex-trabalhadores da empresa de celulose que foram mutilados durante o exercício de suas funções ocuparam a sede do Instituto Nacional de Seguridade Social – INSS em São Mateus³. Percebe-se a semelhança das lutas do povo indígena da aldeia Tekoá Mirim, dos trabalhadores acidentados e do Movimento dos Sem Terra – MST. Assim, com uma mobilização ampla desses três grupos e luta unificada, seria possível maior pressão perante o governo federal.

3. Considerações finais

Ante o exposto, é possível vislumbrar o cenário de enfrentamentos e perspectivas disputadas não só pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, como também por todos movimentos sociais e populares. Enquanto é nítido o papel humanitário da atuação dos sem-terra, abastecendo por meio de sua prática agrária dezenas de acampamentos e promovendo a dignidade e a cidadania para milhares mais de acampados, as violências experimentadas por estes retratam um embate político e ideológico de escala nacional. A instrumentalização da violência contra os movimentos sociais no campo, objeto de debate nas mesas que tomaram forma durante a formação em questão, é representativa de uma disputa entre a herança nacionalista neoliberal identitária brasileira, ilustrada pelos interesses da elite latifundiária, em repressão a mobilização popular e democrática que promove a integração devida dos direitos humanos.

 É particularmente discernível o plano em que se dá o conflito de interesses entre concretização do projeto democrático e da efetivação dos direitos humanos contra os interesses econômicos da elite ao destrinchar a reivindicação da soberania alimentar. Em um paralelo com a Declaração de Nyéléni, ocorrida na cidade de Sélingué, no país do continente africano de Mali, a qual reuniu representantes de mais de 80 outros países, em sua grande maioria produtores e agricultores para a promulgação de seu manifesto, é reconhecível um retrato que se espelha em todo sul global, inclusive na ilustração do cenário político e histórico brasileiro da região sudeste estudada.“Todos nós somos produtores de comida, prontos, capazes e dispostos para alimentar pessoas de todo mundo” (NYÉLÉNI) foi a colocação que protagoniza o Fórum Internacional de Soberania Alimentar, o qual segue em destrinchar esta como um direito fundamental à saúde e ao apropriado cultivo de alimentos em metodologia sustentável e culturalmente fundamentada. Mas não sem ressaltar os mesmos enfrentamentos experimentados em solo brasileiro, um combate em que a concretização e o reconhecimento deste direito fundamental se vê impedido pela atuação das transnacionais, pela dinâmica imperialista mercadológica, pelas práticas neoliberais que sobrepujam a produção em prol da economia global, das governanças que se opõe aos interesses do povo e suas reivindicações de saúde e sustentabilidade preterindo-os em nome do lucro.

Em vista a reprodução deste prejuízo que antagoniza a mobilização popular, e em sua manifestação atravanca a implementação de políticas públicas efetivantes de garantias fundamentais, desmistifica-se a violência supracitada. A perseguição política por figuras públicas, o neo-coronelismo praticado por latifundiários, concatenado pelas forças armadas policiais e por seguranças privadas, a instrumentalização do sistema de justiça em sua criminalização dos movimentos sociais, todas estas agressões perpetuam uma logística mercadológica inobservante aos interesses do povo. 

É então, nesse cenário combativo, que a atuação da mobilização popular e dos movimentos sociais amplifica sua potência humanitária, em representação da voz das demandas populares. A formação estudada neste presente artigo tem sua potência na relação da proposta pedagógica popular com a combinação de distintas frentes de enfrentamento ao panorama imperialista dominante. Ao organizar diferentes movimentos sociais, cada qual com sua proposta e dinâmica, dentre os destaques presentes a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos – CONAQ e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB , organiza-se o combate ideológico proposto em uma propulsão às reivindicações de legitimidade popular, fortalecendo a causa por meio da troca de estratégias, vivências e demandas de cada movimento. Nos termos de Benito Fernández Fernández no artigo “La Educación Popular en las luchas por los derechos humanos en América Latina”, “A luta por Direitos Humanos na América Latina é uma luta inacabada que está ligada à luta de liberações dos nossos países e nossos povos. O que podemos dizer é que ao trocar contextos, as lutas assumem formas diferentes – e também as estratégias educativas” em um destaque da proeminência e da importância desse diálogo. Desse modo, celebra-se em conclusão a importância e o vigor do projeto de formação que orientou o seminário, em um projeto pedagógico que contempla desde os presentes até o próprio solo e instituição que acolheu o evento e contribui de maneira ilustre para o avanço da constante luta pelos interesses populares, pela efetivação da dignidade e das garantias fundamentais. Esta organização fundamental dos movimentos populares à esquerda da predominância neolibral, promovida pelo projeto, é representativa da mobilização necessária para a predominância das pautas populares, e demonstrativo de uma conjuntura vindoura expansiva e democrática.

* Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília. Antes de adentrar o mundo jurídico, cursou Ciência Política também na UnB, mas não concluiu. Nesses 22 anos, sempre se interessou pela concretização de direitos, atuação dos movimentos sociais e as articulações políticas que acontecem todos os dias na capital do país.

** Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília, cursando o 8° período letivo. Participante de projetos de extensão como a Assessoria Jurídica Universitária Popular – Roberto Lyra Filho, direciona seu estudo para o Direito como ferramenta de efetivação democrática, particularmente no que se refere ao diálogo entre movimentos populares e a luta para a institucionalização das suas reivindicações.


[1] SOUZA, 2020.

[2] AMARAL, 2005.

[3] Ibid.


Referências

AMARAL, Gloria Regina A. C. Governo Federal promete agilizar demarcação das terras indígenas em Aracruz, no Espírito Santo. FASE: Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional, 2005. Disponível em: <https://fase.org.br/pt/noticias/governo-federal-promete-agilizar-demarcacao-das-terras-indigenas-em-aracruz-no-espirito-santo/>. Acesso em 14 jun. 2024.

FERNÁNDEZ, B.: «La educación popular y los desafíos de la diversidad cultural», Cenprotac, La Paz, 1999. Disponível em: https://www.dvv-international.de/es/educacion-de-adultos-y-desarrollo/ediciones/ead-722009/contribuciones/la-educacion-popular-en-las-luchas-por-los-derechos-humanos-en-america-latina#:~:text=La%20lucha%20por%20los%20derechos,diferentes%20%E2%80%93%20tambi%C3%A9n%20las%20estrategias%20educativas.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005, 42.

NYÉLÉNI. Declaration of Nyéléni: Forum for Food Sovereignty. 2007. Disponível em: http://ernaehrungsdenkwerkstatt.de/fileadmin/user_upload/EDWText/TextElemente/PHN-Texte/Nutrition_Policy/Recht_auf_Nahrung_Declaration_of_Nyeleni_2007.pdf. Acesso em: 29 jun. 2024.

SOUZA, Matheus. Indígenas Tupiniquim de Aracruz (ES) são descendentes diretos de povo que viu a chegada dos portugueses. Jornal da USP, 2020. Disponível em <https://jornal.usp.br/ciencias/ciencias-biologicas/indigenas-tupiniquim-de-aracruz-es-sao-descendentes-diretos-de-povo-que-viu-chegada-dos-portugueses/>. Acesso em 14 jun. 2024.

SUDRÉ, Lu. Conheça a Escola Nacional Florestan Fernandes, há 15 anos formando militantes. MST, 2020. Disponível em: https://mst.org.br/2020/01/24/conheca-a-escola-nacional-florestan-fernandes-ha-15-anos-formando-militantes/. Acesso em 14 jun. 2024.

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