As teorias feministas do direito como forma de superar o ideário masculino no campo jurídico

Por: Bárbara Borges Carvalho

Diante do crescente debate acerca de relações de gênero, e da posição da mulher na sociedade, é necessário discutir a forma como o direito foi construído em conformidade com ideários que perpassam o universo masculino e a reafirmação disso até os dias atuais na sociedade, tanto em âmbito acadêmico quanto na prática cotidiana do direito. Nessa perspectiva, teorias jurídicas feministas se apresentam hoje como uma possibilidade de combater a visão masculinizante do direito, viabilizando a formação de operadores do direito com senso crítico e consciência da questão de gênero e das consequências que esta questão traz à posição das mulheres na sociedade e no ambiente jurídico, mais especificamente.

Conforme Madeira e Engelmann[1] (2013), o direito é um produto da sociedade, variando de acordo com as teorias, “ora é visto como um mecanismo de dominação e reprodução, ora como um instrumento de legitimidade e pacificação social”. De fato, o direito pode ser visto como os dois, na medida em que estabelece relações de dominação, como o de homens sobre mulheres e reproduz estereótipos e ideários masculinos, assim como pode ser um instrumento de pacificação social e busca de promoção de igualdade entre homens e mulheres.

De acordo com Olsen[2] (1990), desde os tempos de Platão o pensamento ocidental tem se estruturado em torno de dualismos, como racional/irracional, pensamento/sentimento, razão/emoção, os quais dividem as coisas em esferas opostas, são sexualizados e hierarquizados. O direito é identificado com o polo masculino dos dualismos (considerado superior), alicerçado na ideia de que o direito é racional, objetivo, abstrato e universal, concepções estas designadas ao universo dos homens, refletindo, assim, a dominação masculina existente, partindo da estrutura patriarcal da sociedade. As práticas políticas, sociais e intelectuais que consistem no direito foram, durante séculos, conduzidas por homens. Dessa maneira, as mulheres foram afastadas das práticas jurídicas, refletindo ainda hoje na exclusão destas no mundo do direito (OLSEN, 1990, pp. 5-9; 14).

Desde a década de 1970 têm sido desenvolvidas teorias feministas do direito, que tem como uma de suas principais críticas a construção do pensamento científico moderno, alicerçada no dualismo “razão” e “sensibilidade”, o que reflete a oposição entre masculino e feminino. Conforme Harding (1996, apud CAMPOS[3], 2011), a construção social das diferenças entre os gêneros dá-se em três processos distintos: o simbolismo de gênero (atribuição de metáforas dualistas de gênero a diversas dicotomias); a estrutura de gênero (relativo à divisão do trabalho de acordo com o gênero); e a identidade de gênero (referente à construção da subjetividade). O direito atua no simbolismo jurídico e é parte do processo de criação de gênero, questão essa reforçada nas práticas concretas de juristas (CAMPOS, 2011, pp. 2-4). 

Conforme Pimentel, Schritsmeyer e Pandjiarjian[4] (1998), estereótipos, preconceitos e discriminações de gênero estão presentes na nossa cultura e enraizados nas consciências dos indivíduos, e acabam sendo assimilados pelos operadores do direito e refletidos em sua práxis jurídica, atrapalhando o desenvolvimento de suas funções tendo em vista o respeito, a dignidade, a justiça e a efetivação da igualdade. As autoras dão ênfase às práticas de violência contra a mulher, principalmente o crime de estupro, e citam situações concretas com as quais se depararam em suas pesquisas:

“O Código Penal e a própria doutrina explicitam que, no crime de estupro, é a liberdade sexual da mulher que é protegida, independentemente de sua moralidade. A doutrina é uníssona quanto à palavra da vítima constituir o vértice de todas as provas nos crimes contra os costumes. Entretanto, na avaliação das provas, pouco ou nenhum valor têm suas palavras quando não se caracteriza sua “honestidade” (…). No processo judicial, é levada em consideração a conduta da vítima, em especial com relação à sua vida sexual, afetiva e familiar (…). A postura majoritária na magistratura, quanto a isso, é de omissão, nada fazendo para que seja respeitada a dignidade da mulher.” (PIMENTEL; SCHRITSMEYER; PANDJIARJIAN, 1998, p 64).

Assim, percebe-se que na estrutura interna do Poder Judiciário estão presentes construções simbólicas de gênero e que são reproduzidas por operadores do direito. Nesse sentido, é necessário que os agentes jurídicos lidem com os aspectos simbólico-culturais que permeiam as instituições jurídicas e impossibilitam a perspectiva de gênero, de forma a superar a visão estereotipada da sociedade que muitas vezes repercute na atuação dos juristas em suas profissões (SEVERI[5], 2016, p. 82).

No espectro da estrutura de gênero, o fato de o ambiente jurídico ter sido estruturado por homens traz consequências até à contemporaneidade, visto que continua sendo um ambiente desigual, em que prevalece uma ideologia de masculinidade, a qual contribui para a constituição de uma concepção de profissionalismo alicerçada na “neutralidade afetiva, na dedicação integral e na competência para prestar um serviço especializado de qualidade” (BONELLI; BARBALHO, 2008, pp. 275-276). 

Nesse sentido, a ideologia de profissionalismo reafirma construções de gênero, dificultando a entrada das mulheres na esfera profissional e sua progressão na carreira, uma vez que estas precisam provar constantemente que são competentes e que possuem disponibilidade total para o trabalho, enquanto já se pressupõe dos homens essas especificidades. Tal situação demonstra que o discurso de igualdade de oportunidades e neutralidade é uma mera pretensão, posto que por si só já reproduz a visão masculina de mercado de trabalho (BONELLI; BARBALHO[6], 2008, p. 277).

Dessa maneira, a discriminação baseada no sexo influencia o âmbito jurídico de diversas formas, mostrando que o direito é, na realidade, irracional, subjetivo e não universal. A  resolução  desse  problema  perpassa  o  meio  acadêmico  na  medida em que é possível  fugir  da doutrina que  somente elenca  os  direitos  que foram positivados e passar a um estudo nas faculdades de direito preocupado  com  a  perspectiva  de  gênero  e  com  as  teorias feministas (SERAFIM[7], 2010, pp. 330-331).

Para Katherine Barlett, um método de análise feminista do direito requer a manutenção das mulheres no centro do estudo, formulando a questão da mulher (the woman question), com o intuito de perceber as implicações de gênero de uma prática social ou de uma norma jurídica. Esse método possibilita expor a não neutralidade das leis, ou até mesmo a presença de características masculinas nelas, assim como sugerir possibilidades de corrigi-las. Para Isabel Jaramillo, uma análise feminista do direito também pressupõe uma releitura das doutrinas jurídicas tradicionais para entender como as mulheres ficaram marginalizadas e como seria viável sua reincorporação, posto que uma perspectiva feminista de análise deve ter base na experiência feminina e na possibilidade de dar voz às mulheres (CAMPOS, 2011, pp. 7-8).

Até então, as contribuições feministas para a teoria jurídica foram importantes, uma vez que deram visibilidade ao machismo que permeia o direito. Uma teoria feminista do direito pode contribuir para a concretização dos direitos humanos e fundamentais das mulheres no Brasil, os quais são frequentemente violados no país por atos do próprio Estado ou de particulares (SERAFIM, 2010, pp. 332-333). Assim, passar a  ter  uma formação  jurídica  crítica, embasada  pelas  conquistas  teóricas  feministas, abrindo espaço para construtores do direito aptos a entender e combater as atuais discriminações de gênero é passo essencial para promover, dentro do universo jurídico, a igualdade entre homens e mulheres.

É, pois, perceptível que o direito foi ao longo dos séculos construído com alicerces em concepções e ideários referentes ao universo masculino, excluindo-se as mulheres do campo jurídico. Essas situações trouxeram consequências que perduram até hoje na sociedade, seja na reprodução de estereótipo por operadores do direito em suas profissões, seja na construção de uma pretensão de neutralidade de gênero e profissionalismo no mercado de trabalho, ou até mesmo na dificuldade de inclusão de textos acadêmicos feministas, ou a discussão sobre teoria feminista do direito, em referências bibliográficas em disciplinas jurídicas. 

Nesse sentido, o campo do direito continua sendo um desafio para as mulheres. Contudo, através da formação de juristas mais críticos, é possível que esse desafio seja vencido aos poucos. Para tanto, trabalhar teorias jurídicas feministas nas faculdades de direito se configura uma peça chave nesse processo de desconstrução.


Bárbara Borges Carvalho é graduanda em Direito pela Universidade de Brasília. Bolsista CNPq-UnB (Edital Pibic UnB 2020-2021). Membro do Programa de Educação Tutorial (PET) de Direito. Integrante da Empresa Júnior de Direito da UnB – “Advocatta”. Membro do Centro de Pesquisa “Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e Constitucionalismo” . Integrante do Grupo Candango de Criminologia (GCCrim).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

[1] MADEIRA, Lígia Mori; ENGELMANN, Fabiano. Estudos sociojurídicos: apontamentos sobre teorias e temáticas de pesquisa em sociologia jurídica no Brasil. Sociologias, Porto Alegre, ano 15, n. 32, jan./abr. 2013, p. 182-209.

[2] OLSEN, Frances. El sexo del derecho. In: KAIRYS, D. (ed). The Politics of Law.Trad.: Mariela Santoro y Christian Courtis. Nueva York: Pantheon, 1990.

[3] CAMPOS, Carmen Hein de. Razão e sensibilidade: teoria feminista do direito e Lei Maria da Penha. In: ______. (Org.). Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 1-12.

[4] PIMENTEL, Silvia; SCHRITSMEYER, Ana Lucia Pastore; PANDJIARJIAN, Valéria. Estupro: direitos humanos, gênero e justiça. São Paulo: Revista USP, maio 1998.

[5] SEVERI, Fabiana Cristina. O gênero da justiça e a problemática da efetivação dos direitos humanos das mulheres. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Brasil. Revista Direito e Práxis, vol. 7, n. 13, 2016, pp. 80-115.

[6] BONELLI, Maria da Glória; BARBALHO, Rennê Martins. O profissionalismo e a construção do gênero na advocacia paulista. Sociedade e Cultura, v. 11, n. 2, 2008.

[7] SERAFIM, Fabrízia Pessoa. Teorias feministas do Direito: uma necessidade no Brasil. Revista dos estudantes de Direito da Universidade de Brasília, n. 9, vol 2, 2010; pp. 319-333.

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