A importância das áreas verdes para a efetivação do direito à cidade no Distrito Federal.

por PET Direito - UnB

 Por Beatriz Stephany Carvalho da Silva e  Ingrid Kammyla Santos Bernardo

O conceito de direito à cidade é introduzido por Henri Lefebvre no livro O direito à cidade. Na obra, o autor francês critica a forma como o processo de industrialização e acúmulo de capital nas cidades transformou-as e, consequentemente, transformou a sociedade que a ocupa. Pela definição de Lefebvre, a sociedade urbana é o point of no return da organização da cidade, de forma que o antagonismo histórico entre cidade-campo perde lugar para a contradição centro-periferia, fator que evidencia o grande impacto dessa nova organização comercial para a organização social dos indivíduos que a cercam.

Nesse sentido, o sociólogo Robert Park define a cidade como a tentativa mais bem-sucedida do homem reconstruir o mundo em que vive segundo os seus desejos, assim, a sociedade urbana, sendo criação humana, é o mundo em que os seres humanos decidiram criar e viver e, indiretamente, também é o próprio ser humano, que ao reconstruir a cidade reconstrói a si mesmo – estabelece como irá viver, qual dinâmica social adotará e de que modo ocupará a cidade.

A partir do conceito de direito à cidade, é essencial analisar a importância da ocupação da cidade para os cidadãos e, para além disso, a forma como as cidades são estruturadas para atender as necessidades básicas desses cidadãos – partindo do princípio que a sociedade urbana projeta nas cidades urbanas a sua própria essência.

No âmbito do Direito, o art. 6º, caput da Constituição Federal elenca os princípios os direitos sociais, que preveem a garantia da saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados. No que se refere ao direito ao lazer, a sua garantia se dá de forma interdependente com a forma com que a sociedade urbana ocupa a cidade.

Há outras formas de garantir o direito ao lazer que não garantindo direito à cidade, entretanto, como parte inerente da sociedade urbana, o direito à cidade se torna o pilar para os demais. Falar sobre direito à cidade significa falar sobre “o direito de mudar a nós mesmos pela mudança da cidade” e, partindo do pressuposto que a urbanização foi um fenômeno de classe, galgada sobre a concentração de produto excedente, extraído de algum lugar ou de alguém para as mãos controladoras de outros poucos, é de se esperar que um parcela da população, de classes sociais mais elevadas, acessem a cidade de forma distinta de outras classes menos privilegiadas. 

Apesar de garantidos pela Constituição, o direito à vida e ao lazer é de fato garantido à uma parcela da população, um exemplo disso é a ausência de áreas verdes em certas regiões das cidades, normalmente regiões periféricas, em comparação com outras regiões. No caso do Distrito Federal, percebe-se que em algumas Regiões Administrativas a proporção de áreas verdes é muito inferior à apresentada em outras como Sudoeste e Lago Sul, por exemplo.

Nesse sentido, a avaliação do bem-estar oferecido pelo ambiente urbano aos cidadãos é retratada no Índice de Bem-Estar Urbano para o Distrito Federal (IBEU-DF), que  examina as condições coletivas de vida com base no espaço geográfico do DF, tendo como objetivo a formação de um panorama geral do bem-estar urbano no DF

O Índice é organizado em cinco eixos centrais que ilustram a situação do território urbano: a mobilidade, as condições ambientais e habitacionais, o atendimento de serviços coletivos urbanos e a infraestrutura. No que tange a condições ambientais, foram utilizados como critérios de análise a arborização no entorno do domicílio; o esgoto a céu aberto em torno do domicílio; e o entulho acumulado em torno do domicílio. 

Seguindo o relatório disponibilizado em janeiro de 2023, as três primeiras Regiões Administrativas com um índice “muito bom” de condições ambientais são: o Sudoeste/Octogonal, o Lago Sul e o Plano Piloto. Por outro lado, com os menores índices – restando na categoria “muito ruim” – estão as regiões do SCIA/Estrutural, Sol Nascente/Pôr do Sol e Itapoã. Esses dados são melhor visualizados na tabela abaixo, em que o quanto mais próximo de 1,0 significa uma melhor condição ambiental: 

Gráfico 1 – Classificação das RAs segundo a Dimensão 1 – Mobilidade

 

 

 

 

 

Fonte: DEPAT/IPEDF Codeplan (2022)

Dentre as múltiplas análises possíveis, esses resultados podem ser relacionados ao baixo indicativo de áreas verdes por habitantes, sendo que a região SCIA/Estrutural possui cerca de 6m2 de área verde por habitante, enquanto a região Sudoeste/Octogonal dispõe de 45 m²/hab. Considerados esses dados, é relevante destacar que as regiões com pior avaliação no referido quesito, em geral, tiveram início marcados pelas chamadas “invasões irregulares”. Estas, por sua vez, são um reflexo da má gestão territorial, ausência de um planejamento urbano e de políticas públicas que incluam as pessoas de baixa renda como verdadeiros participantes da cidade. 

Outro ponto que deve ser considerado é a extensão da desigualdade nos ambientes urbanos, principalmente, no Distrito Federal. A diferença da renda média de um habitante do Sol Nascente e de um morador do Lago Sul é assombrosa. Segundo Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD), o rendimento mensal de 63.5% dos domicílios do Lago Sul é de mais de 20 salários mínimos. Na RA do Sol Nascente, 44,3% dos domicílios vivem com rendimento de um a dois salários mínimos. A diferença de renda mensal por pessoa entre as duas Regiões Administrativas, totaliza o valor de R$ 10.979, um montante bastante significativo. 

Desse modo, é notório que a diferença de renda – em união com os demais fatores previamente elencados – refletem na qualidade de vida da população, uma vez que os moradores das RAs mais carentes sofrem com a falta de elementos básicos para a participação digna desses indivíduos na cidade. A ausência de saneamento básico, do acúmulo de lixo e a presença de moradias em condições precárias são fatores ambientais que influenciam diretamente na experiência urbana dessas pessoas, sendo evidente que, uma vez que não há nem mesmo esses elementos básicos, o acesso dessas pessoas ao lazer e às áreas verdes também é altamente dificultado. 

Tão grave quanto não existir locais destinados ao lazer com cobertura vegetal, é o fato de esses indivíduos não conseguirem nem mesmo acessar esses espaços em outras Regiões Administrativas. Isso porque o transporte público nessas regiões também é precário, obstando as possibilidades de ocupação e utilização dos espaços ecológico-ambientais de lazer disponibilizados para o público. Logo, é possível perceber que questão do acesso ao lazer e às áreas verdes no Distrito Federal é altamente complexa, sendo a situação brilhantemente descrita por Valéria Puglisi nos seguintes termos: 

Com o desrespeito a tantos direitos constitucionalmente garantidos, bem como às condições básicas para que o cidadão usufrua de uma vida com qualidade, a impressão que se tem é de um círculo vicioso negativo, no qual um problema gera outro, que gera mais um, retornando ao problema inicial, sem sabermos ao certo onde e quando tudo começou

Assim, é latente que a falta de espaços de lazer e áreas verdes compromete diretamente o desenvolvimento saudável dos cidadãos urbanos, principalmente das comunidades socialmente vulneráveis, dado que a ausência mencionada se soma aos diversos outros fatores de precarização da vivência humana. Nesse sentido, a ausência de comprometimento e proatividade por parte do Poder Público, em relação à elaboração e implementação de políticas públicas adequadas e pertinentes ao desenvolvimento urbano, contribui para a degradação da qualidade de vida vivenciada por esses cidadãos.

Fica evidente, então, que o direito à cidade não é efetivado nas sociedades urbanas. Apesar da grande importância da interação cotidiana da comunidade urbana com os espaços de lazer e áreas verdes, apenas uma parcela da população tem esse direito assegurado, enquanto para outra parte dos indivíduos a discussão não chega sequer a se estender a esse nível, visto as latentes e mais urgentes questões que os assolam.

 

REFERÊNCIAS 

Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 3 dez. 2023.

Distrito Federal. Companhia de Planejamento do Distrito Federal – CODEPLAN. Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios – PDAD 2021. Brasília, 2021.

 

Distrito Federal. Secretaria de Estado de Planejamento, Orçamento e Administração do Distrito Federal – SEPLAD. Índice de Bem-Estar Urbano para o Distrito Federal – IBEU-DF. Brasília, 2023

 

Harvey, David. O direito à cidade. Tradução:  Jair Pinheiro. Lutas Sociais, São Paulo, n.29, p.73-89, jul./dez. 2012. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/272071/mod_resource/content/1/david-harvey%20direito%20a%20cidade%20.pdf. Acesso em: 3 dez. 2023.

 

Lefebvre, Henri. O Direito à Cidade. Tradução: Rubens Eduardo Frias. São Paulo, 2001. Disponível em: https://monoskop.org/images/f/fc/Lefebvre_Henri_O_direito_a_cidade.pdf. Acesso em: 3 dez. 2023.

 

Londe, Patrícia Ribeiro; Mendes, Paulo Cezar. A influência das áreas verdes na qualidade de vida urbana. Hygeia – Revista Brasileira de Geografia Médica e da Saúde, Uberlândia, v. 10, n. 18, p. 264–272, 2014. DOI: 10.14393/Hygeia1026487. Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/hygeia/article/view/26487. Acesso em: 3 dez. 2023. 

 

Puglisi, Valéria Peccinini. Meio Ambiente Urbano: Desenvolvimento sustentável e qualidade de vida. 2006. 178 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006.

 

Volochko, Danilo. Sociedade Urbana e urbanização da sociedade: Elementos para a discussão sobre problemática da cidade contemporânea. Cidades, São Paulo, v. 5, n. 8, p. 215-242, 2008. DOI: 10.36661.Disponível em: https://periodicos.uffs.edu.br/index.php/cidades/article/view/12296. Acesso em: 3 dez. 2023.

 

Yamaguti, Bruna. Um ‘quadrado’, duas realidades: diferença de renda por pessoa entre Lago Sul e Sol Nascente, no DF, é de mais de R$ 10 mil. G1DF, 18 de março de 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2023/03/18/um-quadrado-duas-realidades-diferenca-de-renda-por-pessoa-entre-lago-sul-e-sol-nascente-no-df-e-de-mais-de-r-10-mil.ghtml. Acesso em: 02 dez. 2023 

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