Por Matheus Lopes Dezan[1]
Nos dias 5 e 6 de junho de 2023, a Securities and Exchange Commission (SEC) dos Estados Unidos da América (EUA) propôs duas ações judiciais, uma contra a Binance e outra contra a Coinbase (e contra pessoas físicas e jurídicas relacionadas à Binance e à Coinbase), as duas maiores corretoras de criptomoedas do mundo.
A propositura dessas ações judiciais representa um posicionamento da SEC a favor da promoção da regulação normativo-jurídica tanto das criptomoedas quanto das corretoras de criptomoedas.
Na prática, essas ações judiciais performam como marco da regulação da criptoeconomia nos EUA e no mundo, sobretudo quando considerado o iminente precedente jurisprudencial que será formado em decorrência do julgamento dessas ações judiciais, determinando-se, possivelmente, a natureza jurídica das criptomoedas e as regras para a operação das corretoras de criptomoedas nos EUA.
As criptomoedas são bens econômicos imateriais, ou, a rigor, digitais, que podem ser transacionados diretamente, isto é, sem intermediários, como instituições financeiras. Para transacionar criptomoedas diretamente, basta que ambas as partes das transações, que são validadas descentralizadamente, tenham acesso à rede da criptomoeda[2].
Contudo, há instituições financeiras que reduzem a complexidade da realização de transações de criptomoedas, além de ofertarem outros serviços, como aqueles de plataformas de investimentos em criptomoedas e de contração e de concessão de empréstimos de criptomoedas. Essas instituições são as corretoras de criptomoedas, que, atualmente, são o foco do exercício do Poder Legislativo do Estado para a produção de normas jurídicas que regulam a criptoeconomia.
No passado, a SEC propôs ações judiciais contra protocolos de criptomoedas, como a Ripple Labs Incorporated (XRP), mas, nesse contexto de a regulação da criptoeconomia focar nas corretoras de criptomoedas, tem-se que, no dia 5 de junho de 2023, a SEC propôs ação judicial (a Ação Civil n.º 1:23-cv-01599[3]/[4]) contra a Binance Holding Limited, a maior corretora de criptomoedas do mundo. A ação judicial também foi proposta contra as empresas BAM Trading Services Incorporated e BAM Management US Holding Incorporate, vinculadas à Binance, e contra Changpen Zhao, o chief executive officer (CEO) da Binance.
Nessa ação judicial, a SEC formulou treze alegações de prática de atos ilícitos por parte dos réus. Ademais, a SEC formulou pedido de restrição dos ativos financeiros da Binance e dos demais réus nos EUA, bem como formulou pedidos de repatriação dos ativos dos réus, que também devem ser restringidos, e de exibição e de não destruição de documentos, todos decorrentes de pedido de concessão de tutela de urgência[5]/[6].
Dentre essas alegações, destaca-se aquela de acordo com a qual a segregação das operações da Binance nos EUA e nos demais países é apenas formal, e não material, havendo, na prática, indistinção entre as operações nacionais e internacionais da Binance, o que é ilegal nos EUA.
Além de essas operações se confundirem, de acordo com a SEC, a Binance transferiu os ativos financeiros dos clientes a terceiros (quais sejam as demais pessoas que integram o polo passivo, na condição de réus, da ação judicial proposta pela SEC contra a Binance), que os administraram, expondo-os a riscos, inclusive relacionados a contração e a concessão de empréstimos de criptomoedas, sem o consentimento dos clientes da Binance.
Além disso, alegou-se que a Binance ofertou serviços característicos de corretoras de criptomoedas sem, contudo, registrá-los, bem como ofertou criptomoedas (sobretudo a BNB e a BUSD) por meio do processo de initial coin offering sem registrá-los. Em ambos os casos, conforme as alegações da SEC, a Binance não registrou os serviços de corretora de criptomoedas e as ofertas iniciais de criptomoedas para evadir-se da regulação normativa jurídica da criptoeconomia nos EUA.
Extrajudicialmente, a Binance afirmou que, recentemente, engajou-se em diálogo com a SEC para majorar a inteligibilidade das normas jurídicas que regulam a criptoeconomia nos EUA, que, por serem complexas, são, por vezes, inaplicáveis. A Binance lamentou a decisão da SEC de abandonar a relação de cooperação e propor a ação judicial, prejudicando, inclusive, a preponderância dos EUA como centro de desenvolvimento da criptoeconomia. A Binance também negou que os ativos financeiros dos clientes dela estejam em risco[7].
No dia seguinte à propositura de ação judicial contra a Binance, a SEC também propôs ação judicial (a Ação Civil n.º 1:23-cv-04738[8]) contra a Coinbase (especificamente, contra a Coinbase Incorporated e a Coinbase Global), a segunda maior corretora de criptomoedas do mundo[9].
De acordo com a SEC, a Coinbase, assim como a Binance, prestou serviços característicos de corretoras de criptomoedas sem se registrar e disponibilizou criptomoedas que têm natureza jurídica de valores mobiliários sem registrá-los (especificamente as criptomoedas SOL, ADA, MATIC, FIL, SAND, AXS, CHZ, FLOW, ICP, NEAR, VGX, DASH e NEXO, que, de acordo com a SEC, devem ser analisadas de acordo com o Teste de Howey para que sejam classificadas como valores mobiliários), também para evadir-se da regulação normativo-jurídica nos EUA.
No Brasil, considerando-se a incipiência das normas jurídicas que regulam as criptomoedas e as corretoras de criptomoedas, as ações judiciais propostas pela SEC devem repercutir como referências, de caráter paradigmático, da regulação da criptoeconomia, obrigando-se, no futuro, o registro da oferta inicial de criptomoedas e dos serviços das corretoras de criptomoedas para que elas possam operar no Brasil.
Ainda, como corolário das ações judiciais propostas pela SEC contra a Binance e contra a Coinbase, deve-se positivar a natureza jurídica das criptomoedas, ou, ao menos, os critérios de determinação da natureza jurídica das critpomoedas.
Contemporaneamente, o Banco Central do Brasil se manifestou, por meio dos Comunicados n.° 25.306/2014[10] e 31.379/2017[11], distinguindo moedas fiduciárias de curso forçado das criptomoedas, que não têm natureza jurídica de moeda, mas de ativos financeiros que podem, ou não, ser valores mobiliários. O Banco Central do Brasil também alegou que a propriedade de criptomoedas também é arriscada e que as criptomoedas podem ser instrumentalizadas para a prática de crimes.
A operação das corretoras de criptomoedas também é parcialmente regulada no Brasil. Isso porque a Instrução Normativa n.º 1888/2018 da Receita Federal do Brasil[12] prescreve obrigações para as corretoras de criptomoedas, que, em síntese, devem enviar periodicamente as informações acerca das transações de criptomoedas realizadas pelos clientes dessas corretoras de criptomoedas à Receita Federal do Brasil.
O Ministério da Economia também se manifestou, por meio do Ofício Circular SEI n.º 4081/2020/ME[13], consignando o entendimento de que as criptomoedas não têm natureza jurídica de moeda, mas de bem econômico imaterial, ou, a rigor, digital, que pode ser um ativo mobiliário, sendo permitido realizar atos societários, em sociedades empresárias, com criptomoedas, sem a observância de formalidades por parte das Juntas Comerciais.
A Comissão de Valores Mobiliários (CVM)[14], propondo regulação sofisticada dos tokens criptografados, distingue-os em tokens de pagamento, tokens de utilidade ou tokens referenciados a ativos, sendo que a caracterização desses tokens como valores mobiliários, depende de o token representar um ativo mobiliário, de acordo com o artigo 2.º da Lei n.º 6.385/1976.
Adicionalmente, tem-se que, de acordo com a CVM, os contratos de investimento coletivo em criptomoedas, a despeito de as criptomoedas objeto do investimento coletivo serem ou não serem ativos mobiliários, são ativos mobiliários. A CVM também prescreve o dever das corretoras de criptomoedas de respeitarem os direitos dos clientes, como os direitos à informação, identificando-se e descrevendo as atividades do emissor do token e descrevendo o token, dentre outros.
Dentre as principais preocupações do Estado, quando do exercício do Poder Legislativo para regular normativo-juridicamente as criptomoedas, tem-se a prática de crimes instrumentalizados por criptomoedas.
A esse respeito, a Lei n.º 14.478/2022 tipifica, no artigo 171-A do Código Penal, o crime de fraude com a utilização de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros. Essa Lei também insere referências a criptomoedas e a corretoras de criptomoedas na Lei n.º 7.492/1986, concernente aos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, na Lei n.º 9.613/1998, concernente aos crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores e à prevenção do uso do Sistema Financeiro Nacional para a prática de atos ilícitos, e na Lei n.º 8.078/1990, o Código de Defesa do Consumidor[15].
A Lei também prescreve o dever de as corretoras de criptomoedas, para operarem no Brasil, registrarem-se no Banco Central do Brasil, que também tem competência para as regular, de acordo com o Decreto n.º 11.563/2023[16].
Em suma, as ações judiciais propostas pela SEC devem performar como paradigmas da regulação das criptomoedas e das corretoras de criptomoedas não apenas nos EUA, mas no mundo, e inclusive no Brasil, confirmando-se, ou não, os atos normativos jurídicos do Poder Legislativo, do Banco Central do Brasil, da Receita Federal do Brasil e da CVM, dentre outros.
De todo modo, quando regulada a criptoeconomia, deve-se conceber as criptomoedas como uma expressão dos direitos fundamentais à liberdade e à propriedade, ou, a rigor, da liberdade monetária. As criptomoedas são, em última instância, tecnologias monetárias disruptivas, capazes de transformar as ordens social e econômica, bem como a ordem jurídica, e, por isso, não devem ser associadas tão-somente à prática de atos ilícitos.[17]
Notas de Fim de Página
[1] Bacharelando em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Editor-Chefe e membro do Conselho Diretor da Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília (RED|UnB). Membro do Grupo de Pesquisa em Hermenêutica do Direito Administrativo e Políticas Públicas (HDAPP/UniCeub), certificado pelo CNPq. Foi pesquisador beneficiário de bolsa do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica da Universidade de Brasília no âmbito do Programa de Iniciação Científica do Decanato de Pós-Graduação da Universidade de Brasília (PIBIC/ProIC/UnB), executando o Plano de Trabalho “Implicações da Contraposição das Naturezas Jurídicas das Moedas Fiduciárias de Curso Forçado e das Criptomoedas para o Direito”. Foi membro do Grupo de Estudos em Direito e Economia (GEDE/UnB/IDP), certificado pelo CNPq. Foi membro do Grupo de Pesquisa certificado pelo CNPq Direito, Racionalidade e Inteligência Artificial (DR.IA/UnB). Foi Editor de Artigos e membro do Conselho Diretor da Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília (RED|UnB). Foi membro do Grupo Bioethik: Grupo de Pesquisas em Bioética (UFES) (2018-2021). Foi membro do Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN) (2019-2021). Foi monitor da disciplina “Direito Processual Civil 1”, ministrada pelo docente Marcus Flávio Horta Caldeira na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (FD/UnB). Foi monitor da disciplina “Direito Comercial 1”, ministrada pela docente Amanda Athayde na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (FD/UnB). Interessado em: Direito Administrativo, Direito Econômico, Direito Monetário e das Criptomoedas, Análise Econômica do Direito e Proteção de Dados Pessoais. Estagiário de Direito no escritório Schiefler Advocacia.
[2] NAKAMOTO, Satoshi. Bitcoin: a peer-to-peer electronic cash system. Disponível em: bitcoin.org. Acesso em: 1. jul. 2022.
[3] Ação Civil n.º 1:23-cv-01599, da Securities and Exchange Commission dos Estados Unidos da América contra a Binance Holding Limited, BAM Trading Services Incorporated, BAM Management US Holding Incorporate e Changpen Zhao. Documento n.º 1. https://www.sec.gov/files/litigation/complaints/2023/comp-pr2023-101.pdf. Acesso em: 10. jun. 2023.
[4] U.S. Securities and Exchange Commission. SEC Files 13 Charges Against Binance Entities and Founder Changpeng Zhao. Press Release, 5. jun. 2023. Disponível em: https://www.sec.gov/news/press-release/2023-101. Acesso em: 10. jun. 2023.
[5] Ação Civil n.º 1:23-cv-01599, da Securities and Exchange Commission dos Estados Unidos da América contra a Binance Holding Limited, BAM Trading Services Incorporated, BAM Management US Holding Incorporate e Changpen Zhao. Documento n.º 8-2. https://www.sec.gov/files/litigation/complaints/2023/brief-pr2023-103.pdf. Acesso em: 10. jun. 2023.
[6] U.S. Securities and Exchange Commission. SEC Seeks Emergency Relief to Ensure Binance.US Customers’ Assets are Protected. Press Release, 5. jun. 2023. Disponível em: https://www.sec.gov/news/press-release/2023-103. Acesso em: 10. jun. 2023.
[7] SEC Complaint Aims to Unilaterally Define Crypto Market Structure. Binance Blog, 5. jun. 2023. Disponível em: https://www.binance.com/en/blog/ecosystem/sec-complaint-aims-to-unilaterally-define-crypto-market-structure-8707489117122437402. Acesso em: 15. jun. 2023.
[8] Ação Civil n.º 1:23-cv-04738, da Securities and Exchange Commission dos Estados Unidos da América contra a Coinbase Incorporated e a Coinbase Global. Documento n.º 1. https://www.sec.gov/litigation/complaints/2023/comp-pr2023-102.pdf. Acesso em: 10. jun. 2023.
[9] U.S. Securities and Exchange Commission. SEC Charges Coinbase for Operating as an Unregistered Securities Exchange, Broker, and Clearing Agency. Press Release, 6. jun. 2023. Disponível em: https://www.sec.gov/news/press-release/2023-102. Acesso em: 10. jun. 2023.
[10] BRASIL. Banco Central do Brasil. Comunicado n.° 25.306 de 19/2/2014. Esclarece sobre os riscos decorrentes da aquisição das chamadas “moedas virtuais” ou “moedas criptografadas” e da realização de transações com elas. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=comunicado&numero=25306. Acesso em: 10. jun. 2023.
[11] BRASIL. Banco Central do Brasil. Comunicado n.° 31.379 de 16/11/2017. Alerta sobre os riscos decorrentes de operações de guarda e negociação das denominadas moedas virtuais. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=Comunicado&numero=31379. Acesso em: 10. jun. 2023.
[12] BRASIL. Receita Federal do Brasil. Instrução Normativa RFB n.º 1888, de 03 de maio de 2019. Institui e disciplina a obrigatoriedade de prestação de informações relativas às operações realizadas com criptoativos à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB). Disponível em: http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?visao=anotado&idAto=100592. Acesso em: 10. jun. 2023.
[13] BRASIL. Ministério da Economia. Ofício Circular SEI n.º 4081/2020/ME. Consulta acerca da integralização de capital com criptomoedas ou moedas digitais. Disponível em: https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/drei/legislacao/arquivos/OfcioCircular4081criptomoedas.pdf. Acesso em: 10. jun. 2023.
[14] BRASIL. Comissão de Valores Mobiliários. Parecer de Orientação CVM n.º 40, de 14 de outubro de 2022. Os CriptoAtivos e o Mercado de Valores Mobiliários. Disponível em: https://conteudo.cvm.gov.br/legislacao/pareceres-orientacao/pare040.html. Acesso em: 10. jun. 2023.
[15] BRASIL. Lei n.º 14.478, de 21 de dezembro de 2022. Dispõe sobre diretrizes a serem observadas na prestação de serviços de ativos virtuais e na regulamentação das prestadoras de serviços de ativos virtuais; altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para prever o crime de fraude com a utilização de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros; e altera a Lei nº 7.492, de 16 de junho de 1986, que define crimes contra o sistema financeiro nacional, e a Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998, que dispõe sobre lavagem de dinheiro, para incluir as prestadoras de serviços de ativos virtuais no rol de suas disposições. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2022/lei-14478-21-dezembro-2022-793516-publicacaooriginal-166582-pl.html. Acesso em: 10. jun. 2023.
[16] BRASIL. Decreto n.º 11.563, de 13 de junho de 2023. Regulamenta a Lei nº 14.478, de 21 de dezembro de 2022, para estabelecer competências ao Banco Central do Brasil. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-11.563-de-13-de-junho-de-2023-489700506. Acesso em: 10. jun. 2023.
[17] DEZAN, Matheus Lopes. Combate à corrupção e à lavagem de dinheiro com criptomoedas: estado da arte. Revista do Consultor Jurídico: Coluna Público & Pragmático, 1. jan. 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-jan-01/publico-pragmatico-combate-corrupcao-lavagem-dinheiro-criptomoedas. Acesso em: 14. jun. 2023; DEZAN, Matheus Lopes. Implicações da Contraposição das Naturezas Jurídicas das Moedas Fiduciárias de Curso Forçado e das Criptomoedas para o Direito. Congresso do Programa de Iniciação Científica da Universidade de Brasília, n.º 28. Anais, Brasília: 2022. Disponível em: https://conferencias.unb.br/index.php/iniciacaocientifica/28CICUnB19df/paper/view/44854. Acesso em: 17. jun. 2023.