Por Caelen Yumi Takada Barros*
Uma mãe levou sua filha de 10 anos para realizar um aborto em um hospital universitário, referência em casos semelhantes. No entanto, ao constatar que a gravidez já ultrapassava 22 semanas, a instituição recusou-se a tomar qualquer medida, justificando a negativa a partir de uma norma administrativa que impede o abortamento após 20 semanas de idade gestacional.
Esta situação motivou a mãe a buscar autorização judicial para o procedimento. No entanto, além de a filha ter sido levada a um abrigo, houve uma tentativa de dissuasão do pedido pela própria juíza responsável pelo caso.
Esta narrativa poderia ser apenas uma história imaginada para ilustrar alguns dos obstáculos enfrentados por mulheres e meninas que necessitam recorrer ao aborto como se não se tratasse de um direito garantido, inquestionável. Porém, trata-se de um acontecimento real ocorrido no início de 2022, em Santa Catarina, cujos desdobramentos não pararam por aí.
Para além de evocar tristeza pela trajetória vivenciada pela família, especialmente pela criança, o que se teve (e tem) é um desafio às raias do absurdo: após a realização do aborto, enfim alcançado, a promotora do caso requereu investigação a partir de exame pericial dos restos fetais para averiguar a causa de sua morte.
O episódio mais recente desta história foi a instauração de inquérito policial, já finalizado, que envolvia duas advogadas responsáveis pela defesa do direito da menina.
A partir deste breve resumo, a proposta deste texto é convidar seus/suas leitores/leitoras a conhecer um pouco mais sobre a discussão atinente aos direitos sexuais e reprodutivos e, com isto, refletirmos sobre a defesa da infância sob a ótica da doutrina da proteção integral.
As hipóteses cabíveis para a realização do aborto são, de acordo com o artigo 128 e incisos do Código Penal, associadas a gestações que apresentam risco de morte à gestante ou resultantes de estupro[1]. Sobre isto, deve-se acrescentar, ainda, que se a vítima for menor de 14 anos, independentemente do seu consentimento, o ordenamento pressupõe a sua vulnerabilidade.
Neste sentido, é relevante comentar que a gestação em meninas representa uma série de implicações nas esferas de saúde e social. Diversos estudos e autoridades médicas apontam que a gravidez de crianças e adolescentes as expõem a complicações de ordem física e psicológica, tais como pré-eclâmpsia, depressão pós-parto, diabetes gestacional, hipertensão, rejeição e dificuldade de formação de vínculo com o bebê e a própria mortalidade materna, em razão do organismo da jovem não se encontrar amadurecido o suficiente para suportar as alterações biológicas provocadas pela gestação[2]. Paralelamente a estas, deve-se ter em conta os aspectos social e material, como a interrupção dos estudos, a dificuldade de retomá-los e de se inserir no mercado de trabalho.
Com base nestas breves informações, vislumbra-se que, para além da ocorrência de violência sexual contra pessoa menor de idade, a manutenção do estado gravídico dela decorrente pode ser entendida como o cometimento de nova violência. Por isto, assegurar o aborto legal neste panorama se trata de proteger a dignididade e, mesmo, o futuro das meninas.
O desenrolar de toda a saga pelo exercício deste direito em Santa Catarina nos faz pensar na motivação (claramente ilegal) que embasou os atos das autoridades judiciárias, especialmente no âmbito da proteção integral.
A doutrina em questão tomou forma em nosso ordenamento com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei nº 8.069/90), superando o paradigma da situação irregular. Com a inauguração da proteção integral, passou-se a entender crianças e adolescentes como sujeitos de direito, sem exceção, indicando, assim, uma orientação antirracista e anticlassista, que não se percebia até então.
Mais do que afirmar a existência e disponibilidade de direitos, ser percebido como sujeito representa o entendimento de que o indivíduo, a despeito da fase da vida em que se encontra, já é completo em si mesmo. Complementarmente, em virtude do processo de amadurecimento biopsicossocial, é indispensável que haja garantias ao seu pleno desenvolvimento. Tais garantias não se referem apenas a uma oferta material, mas também a uma leitura da realidade capaz de sustentar políticas públicas consistentes e, em um espectro ainda mais amplo, a tomada de quaisquer decisões embasadas na perspectiva de que crianças e adolescentes não são folhas em branco; seres manipuláveis, destituídos de vontade e opinião.
O viés religioso-moralista emanado do Judiciário, com o qual buscou-se proteger o feto no lugar da criança, demonstra, em verdade, a fragilidade da proteção de crianças e de adolescentes não obstante o que é pregado pela norma, evidenciando aspectos extremamente problemáticos frente à proteção integral, a saber: o afastamento do melhor interesse da criança e o reforço à cultura do estupro.
A indicação do melhor interesse depende da análise do caso concreto. Apesar disto, deve sempre estar relacionado à vulnerabilidade e à defesa dos direitos fundamentais expostos no artigo 3º do ECA. Por via de consequência, com a desconsideração destes pontos, legitimou-se a violência sexual ocorrida e a invasão e a tentativa de controle do corpo da criança a partir do momento em que o objetivo deixou de ser minimizar o dano por ela já sofrido.
Ainda que o aborto tenha se concretizado, o que se percebe são esforços de caráter intimidatório contra os envolvidos na efetivação do direito, seja com o recolhimento do feto após o procedimento, seja com o indiciamento das advogadas que contribuíram para este desfecho.
Sobre isto, também cabe abordar a suposta quebra de sigilo do depoimento da criança e do processo que motivou o inquérito envolvendo as advogadas, suspeitas de divulgar indevidamente as informações para a imprensa, na figura do Intercept[3], muito embora recaiam garantias constitucionais sobre a liberdade de imprensa e o sigilo de suas fontes e o exercício profissional do advogado.
A presente alegação vai de encontro ao fato de que a divulgação de vídeo e áudio não permitem de modo algum a identificação da menina e, sim, evidencia as irregularidades ocorridas na audiência. Importa lembrar que a finalidade da proteção da imagem e da identidade visam impedir qualquer repercussão vexatória sobre a criança e adolescente.
Sem o conhecimento destes fatos talvez fosse improvável que o aborto acontecesse, levando a crer que, indiferemente à preservação da criança, atualmente, se instala um cenário flagrante de retaliação contra suas defensoras. Da mesma forma, a exposição das ações tomadas pela juíza e a promotora trouxe à baila, mais uma vez, o tema do asseguramento do aborto pela dignidade das meninas, possibilitando certa ampliação do debate junto à sociedade.
Sendo o advogado “indispensável à administração da justiça” (artigo 133, da CF/88), atentar contra suas prerrogativas representa uma afronta ao Estado Democrático e à coletividade. É um verdadeiro contrassenso que exista alguma espécie de perseguição nesse sentido, tendo em vista que a salvaguarda dos direitos humanos é de responsabilidade não somente do causídico, mas igualmente estatal.
O papel do sistema de justiça deveria ser justamente garantir a dignidade e acesso à saúde, mas findou instrumentalizado numa máquina de reafirmar “verdades” moralistas e garantir a manutenção da colonização de um corpo historicamente colonizado (o feminino). Assim, o tensionamento de seus próprios dispositivos (leis, decisões, operadores) deve ser provocado para abrir alas para o Judiciário que queremos. Um passo nesse sentido foi a recente abertura de processo disciplinar pelo Conselho Nacional de Justiça[4] para apurar a conduta da magistrada em relação à menina, em que se reconheceu que as decisões da juíza incorreram em violência institucional e implicaram na revitimização daquela, levando-a, inclusive, ao acolhimento institucional.
Com olhar atento, posicionemos-nos como testemunhas e, sobretudo, como agentes de mobilização para que, junto às instituições, caminhemos permitindo que histórias com outros finais possam ser contadas.
*Advogada inscrita na OAB/PA, integrante do Projeto Cravinas e da Rede Amazônica de Advogadas Familiaristas.
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[1] Importante mencionar que, com a arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 54 julgada em 2012, admite-se também a possibilidade de aborto no caso de o feto ser anencéfalo em virtude da inviabilidade de vida extra-uterina.
[2] Sobre isto, indica-se a leitura de ALMEIDA et al. Prematuridade e gravidez na adolescência no Brasil, 2011-2012. Cadernos de Saúde Pública, n. 36, v. 12, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/6SLGV69GPhbkfhXbL4vZNVc/?lang=pt
FUNDO DE POPULAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Maternidade precoce: enfrentando o desafio da gravidez na adolescência. 2013. Disponível em: http://www.unfpa.org.br/Arquivos/swop2013.pdf
[3] The Intercept Brasil. Caça às bruxas – Polícia de SC convoca advogadas de menina de 11 anos grávida após estupro a depor. 22.05.2023. Disponível em: https://www.intercept.com.br/2023/05/22/advogadas-viram-alvo-de-inquerito-por-defender-menina-de-sc-induzida-a-nao-abortar-apos-estupro/
The Intercep Brasil. Ofensiva conservadora – Sem provas, polícia indicia advogadas da menina de SC que conseguiu aborto legal após estupro. 20.06.2023. Disponível em: https://www.intercept.com.br/2023/06/20/policia-indicia-advogadas-da-familia-da-menina-de-sc/
[4] CNJ. Juíza que impediu criança grávida de realizar aborto será investigada pelo CNJ. 20.06.2023. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/juiza-que-impediu-crianca-gravida-de-realizar-aborto-sera-investigada-pelo-cnj/