Escrito por Rafaela Krauspenhar*
Os precedentes ocupam espaço importante no cotidiano dos juristas brasileiros, seja no âmbito prático ou teórico. Antes de passar à análise da atualidade, é necessária breve contextualização acerca da influência do direito romano na valorização dos precedentes.
Em um primeiro momento, em sua primeira fase, o direito romano passa pelo período da legis actiones (ações da lei), no qual todas as ações deveriam ter previsão legal. Levando em conta a vigência da Lei das 12 tábuas, o procedimento era oral e extremamente formalista, de forma que, caso o Pretor decidisse não haver previsão legal, não haveria ação. Caso fosse estabelecido o vínculo (litiscontestatio), as partes deveriam escolher, em comum acordo, um particular (iudex ou arbiter) como intermediário para resolver a lide.
Superada a primeira fase, o direito romano entra no período per formulas, no qual a fórmula passou a integrar o sistema jurídico. Em síntese, as partes, junto com o responsável por resolver o conflito, redigiam um documento, em comum acordo, sobre a resolução do conflito determinado [1]. Ao final, a fórmula passava a integrar o edito, livro de fórmulas do Pretor. Com isso, a fórmula passou a integrar o modelo jurídico romano, sendo positivada por lei.
Diante do exposto, percebe-se que o período formulário romano trouxe a inovação dos precedentes, ainda que não da forma que são vistos hoje. As fórmulas não eram as decisões dos processos, mas detinham elementos concretos que reforçavam a existência da ação, uma vez que ainda era necessário o reconhecimento da litiscontestatio. Ou seja, ainda que não fossem decisões de fato, as fórmulas serviam como uma base de casos anteriores já julgados com entendimentos gerais a serem seguidos.
Dessa forma, passando para a ideia atual de precedente, o professor Michele Taruffo [2], processualista italiano, escreve sobre a crescente relevância dada aos precedentes e às jurisprudências nos sistemas da civil law. Para ele, a diferença entre os sistemas de common law e civil law não tem mais valor descritivo, seja por uma dimensão teórica (uma vez que os precedentes, atualmente, orientam a interpretação da norma e a justificam), seja por uma dimensão prática (pela utilização frequente do precedente em demandas judiciais).
Taruffo também destaca as diferenças existentes entre precedente e jurisprudência, frequentemente utilizados como sinônimos. O precedente, além de ser decisão relativa a um caso particular, fornece uma regra universalizável que pode ou não ser aplicada na decisão em caso posterior. Nos precedentes, faz-se analogia entre os fatos do primeiro caso e os fatos do segundo caso, podendo ser afirmada ou excluída pelo juiz que decide o caso sucessivo. Apenas um precedente é suficiente para fundamentar uma decisão posterior.
Já no caso da jurisprudência, a primeira diferença se encontra no número: são necessárias várias decisões para que se tenha uma jurisprudência de determinada matéria. Importante destacar que não se tem um número estipulado de quantas decisões são necessárias para formar uma jurisprudência. Além disso, não se tem análise fática, pois a jurisprudência é um enunciado geral formulado pelo respectivo Tribunal (súmulas, decisões de repercussão geral ou decisões em recursos repetitivos).
Feitas estas distinções, volta-se à eficácia do precedente. Para Taruffo, somente a ratio decidendi (norma do direito utilizada como fundamento da decisão sobre os fatos específicos do caso) possui eficácia no precedente. As afirmações e argumentações contidas na motivação da sentença (obiter dictum), mesmo que importantes para a compreensão, não fazem parte do fundamento jurídico, de forma que não possuem eficácia de precedente.
Antes de prosseguir quanto à eficácia, é importante destacar três instrumentos de relativização dos precedentes [3]: overruling, overriding e distinguishing. O primeiro diz respeito à superação do precedente, com a mudança de entendimento do Tribunal a respeito de uma questão já anteriormente decidida. O segundo diz respeito à superação parcial de um precedente quando se tem uma nova regra ou princípio legal (supera apenas em parte o precedente). O último refere-se à inaplicação de um precedente em razão da distinção entre os dois casos.
Feitas as referidas considerações, ainda quanto à eficácia, os precedentes podem ser vinculantes (mais frequentes na common law) ou persuasivos (típicos da civil law). Nos precedentes vinculantes, só se tem eficácia quando o julgador do segundo caso compartilha do entendimento proferido anteriormente, podendo ocorrer overruling ou overrinding quando o entendimento for diverso. Já nos precedentes persuasivos ou de fato, que possuem força menor que os vinculantes, o julgador sucessivo pode divergir quanto à aplicação do precedente a um determinado caso, desde que justifique adequadamente a divergência (ocorre distinguishing).
Passando à aplicação dos precedentes na prática, é necessário que se observe o art. 489 do CPC/2015, o qual dispõe sobre os requisitos das sentenças: relatório, fundamentação e dispositivo. É justamente no âmbito da fundamentação que os precedentes se encaixam. Sobre o assunto, Fagundes e Ali [4] destacam que “a fundamentação das decisões judiciais é uma garantia do cidadão inerente do Estado Democrático de Direito” (p. 48).
No §1º do art. 489, o CPC deixa claro que a mera citação de precedente não é considerada fundamentação. Tal medida foi imposta para que os julgadores não se limitem a citar o precedente aplicado, mas demonstrem as razões pelas quais o referido precedente deve ser aplicado a caso sucessivo – conteúdo mínimo da sentença, segundo Fagundes e Ali. Dessa forma, pretende-se que os precedentes sejam aplicados levando em conta os fatos particulares do caso sucessivo, não de forma genérica.
Diante disso, Costa Neto [5] afirma que os destinatários das decisões judiciais não são apenas as partes que compõem a lide, mas a sociedade no geral. Dessa forma, uma decisão que não esteja devidamente fundamentada não é meramente irregular quanto à forma, mas possui grave vício, levando à nulidade.
Por todo o exposto, fica nítida a importância dos precedentes no contexto prático e teórico do Direito brasileiro, uma vez que os precedentes são uma forma de uniformização e segurança do sistema. Nos Tribunais, a existência de julgados anteriores facilita a elaboração de fundamentações futuras, auxiliando os julgadores no direcionamento das decisões, seja para descartar a utilização de um precedente, seja para aplicar um entendimento conforme.
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* Graduanda em Direito na UnB, estagiária no Aguiar e Mello Advogados, integrante da LAPROC.
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[1] SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil adaptadas ao Novo Código de processo civil. São Paulo: Saraiva, 1987.
[2] TARUFFO, Michele. Precedente e jurisprudência. Revista de Processo, vol. 199/2011, p. 139 – 155, Set/2011.
[3] FERRAZ, Taís S. O precedente na jurisdição constitucional: construção e eficácia do julgamento da questão com repercussão geral. (Série IDP. Linha Pesquisa Acadêmica). Editora Saraiva, 2017. E-book. ISBN 9788547221348. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788547221348/. Acesso em: 15 set. 2023.
[4] FAGUNDES, Cristiane Druve Tavares; ALI, Anwar Mohamad. Fundamentação das decisões judiciais segundo a jurisprudência dos tribunais pátrios. Revista de Processo: RePro, São Paulo, v. 47, n. 329, p. 47-66, jul. 2022.
[5] COSTA NETO, José Wellington Bezerra da. Fundamentação das decisões judiciais no Código de Processo Civil de 2015. Revista de Processo: RePro, São Paulo, v. 44, n. 293, p. 49-82, jul. 2019.