Por Gabriel Eduardo Nunes Lagares*
Por meio deste artigo, busca-se evidenciar o modo em que a falsa concepção de liberdade, uma das sequelas do vigente sistema neoliberal, afeta a noção identitária brasileira. Nesse sentido, baseando-se na internacionalização do sistema capitalista e em sua infeliz contribuição para uma percepção de cidadania focalizada, majoritariamente, no Poder Executivo, ou “estadania”, faz-se necessário discutir a respeito do sentido negativo das ideologias políticas dentro de todo esse processo. Ao fim e ao cabo, toda essa problemática resulta na fragmentação da identidade nacional, identificação, essa, de grande pertinência nos dias de hoje, em virtude da ideia tecnocrata do direito ao consumo como uma forma de afirmação do sujeito como cidadão.
Primordialmente, faz-se importante pontuar que, após um regime militar que perdurou por mais de 20 anos, a “evolução da liberdade”¹, pautada pela nova onda democrática brasileira e interpretada pela ilustre voz de Chico Buarque, não passou de uma mera ilusão. Isso se deve à falácia de que democracia atua como resposta a todos os problemas, o que é um errôneo raciocínio, nas palavras de Carvalho, em razão do fato de que “a liberdade e a participação não levam automaticamente, ou rapidamente, à resolução de problemas sociais”².
Ademais, deve-se levar em consideração o fato de que essa nação, e mesmo a América Latina como um todo, já estava condenada e acorrentada pelas correntes do sistema econômico neoliberal, que é a chave do sistema capitalista e prega uma economia baseada no monetário, em detrimento de uma existência socialmente digna a suas vítimas. Nesse contexto, a liberdade é um ator de privação e de exploração, por parte das altas classes, aos espoliados da sociedade. Ou melhor dizendo, “o liberalismo não contempla em sua teorização o problema da justiça social”³. Em suma, democracia e liberalismo não atuam plenamente juntos sobre um mesmo regime, visando concepções próprias de liberdade e igualdade, sendo, esta última, não pautada pelo viés liberal.
Sob uma segunda análise, faz-se importante a compreensão da maneira a qual a internacionalização do capitalismo contribuiu para a noção de cidadania baseada na supervalorização do Poder Executivo. Nessa linha de pensamento, a globalização resultante da forma econômica, política e social baseada no capital, em conjunto com a Divisão Internacional do Trabalho (DIT), gera a contemporânea colonização, em que determinados países são destinados a perder, as chamadas nações subdesenvolvidas, e outros em ganhar, os países desenvolvidos.
Nessa linha de pensamento, Galeano afirma, mais precisamente, que “O subdesenvolvimento não é uma etapa do desenvolvimento. É a sua consequência. O subdesenvolvimento da América Latina provém do desenvolvimento alheio e continua alimentando-o”⁴. Em consequência disso, há uma redução do poder dos Estados representantes de pátrias subdesenvolvidas, uma vez que há uma pressão externa das nações nortistas, ou desenvolvidas, segundo a DIT, sobre o sul global na autoafirmação de seus papéis como exploradores.
Assim, é reduzido o Poder Estatal das nações espoliadas em razão de lideranças mais poderosas. Consequentemente, é rebaixada, também, a relevância dos direitos que definem o cidadão como formador do social. Nesse ângulo, Carvalho explica que:
A redução do poder do Estado afeta a natureza dos antigos direitos, sobretudo dos direitos políticos e sociais. Se os direitos políticos significam participação no governo, uma diminuição no poder do governo reduz também a relevância do direito de participar⁵
É nesse contexto que surge a busca por um messias ou salvador da pátria, pois, abrandada a crença de que a democracia resolveria os problemas sociais, juntamente à exploração gerada pelo neoliberalismo, há uma impaciência popular em relação à resolução dessas problemáticas. Sendo assim, esses entraves seriam resolvidos e depositados, então, sobre uma entidade representante do Poder Executivo, visto como autoridade máxima de um país.
Tudo isso é resultado de uma herança de supervalorização do Executivo que estava presente durante o período ditatorial, “em que o Legislativo ou estava fechado ou era apenas decorativo, cria-se a imagem, para o grosso da população, da centralidade do Executivo”⁶, tendo como resultado uma “cultura orientada mais para o Estado do que para a representação” é o que chamamos de “estadania”, em contraste com a cidadania”⁷.
Sob essa linha de raciocínio, a perspectiva de que “o Estado é o modelo de unidade política, um princípio de organização racional, a personificação da ideia universal e um símbolo de moralidade”⁸, há consignação de uma esperança sobre o Presidente da República como único ator responsável pela resolução dos problemas sociais. Contudo, abre-se espaço, assim, para a práxis negativa das ideologias políticas.
Desse modo, surge a necessidade de discussão a respeito da mistura existente entre a fé majoritária sobre o Executivo, na busca por um “messias”, com a ética de valores dentro de uma sociedade, principalmente por parte de cidadãos apoiadores da bancada evangélica do Congresso Nacional e de outros partidos atrelados ao conservadorismo. Logo, por meio da narrativa “de que o Estado tem o direito divino de existir”⁹, partidos, na perseguição de uma autoafirmação de poder, aproveitam da ingenuidade de seus compatriotas com o intuito de persuadi-los ao seguimento de ideologias disfarçadamente antidemocráticas e anti nacionais, tudo isso em nome da cristandade.
Seguindo essa linha de pensamento, milhares de fiéis seguem uma linha de pensamento nociva ao pleno funcionamento da democracia, com a ilusão de que estão agindo como patriotas, isto é, atuando em amor à pátria. Muito pelo contrário, eles são parte asseguradora da afirmação de grandes partidos, instituições e neoliberais corporações nortistas que exacerbam, ainda mais, o problema da injustiça social no Brasil.
No meio disso tudo, insere-se a ideia de “kitsch”, que se conceitua como a exclusão do “campo visual tudo o que a existência humana tem de essencialmente inaceitável”¹⁰. Assim visto, o Brasil vem caminhando, sob a falsa concepção patriota, a qual atua em conjunto à cristandade conservadora e que alimenta um sistema neoliberal espoliador; com um foco na percepção de um gênero do kitsch chamado de “kitsch totalitário” que, segundo Kundera, conceitua-se como totalitário
porque nesse caso tudo o que possa prejudicar o kitsch é banido da vida: toda manifestação de individualismo (…), todo ceticismo (…), a ironia (…), mas também a mãe que abandona a família ou o homem que prefere os homens às mulheres ameaçando assim o slogan sacrossanto ‘amai-vos e multiplicai-vos’¹¹.
Portanto, inúmeras são as consequências desse processo criador de ignorância e submissão. Assim sendo, é fato que o neoliberalismo por si só visa a educação como, somente, uma forma de desenvolver o capital humano, não como uma ferramenta esclarecedora sobre a realidade. Esse é o pensamento de Wendy Brown, que argumenta, ainda, sobre as consequências desse processo:
Isso agrava o problema da população de classes trabalhadora e média que não vivem nos centros urbanos, que não conhecem o mundo, não querem conhecer o mundo e se sentem ameaçadas pelo mundo. E isso, por sua vez, exacerba o conservadorismo, o anti-intelectualismo, a xenofobia e tudo o mais¹².
Além disso, o consumo ilimitado pregado pelo capitalismo assume, sob a ideia central de liberalismo e cidadania, um papel perverso. Dessa maneira, Carvalho alega que “a cidadania que reivindicavam [cidadãos] era a do direito ao consumo, era a cidadania pregada pelos novos liberais”¹³ e ainda que, na medida em que o capitalismo se desenvolve, “o cidadão se torna cada vez mais um consumidor, afastado de preocupações com a política e com os problemas coletivos”¹⁴.
Em outras palavras, o pensamento tecnocrata liberal cria uma percepção do “ser cidadão” com bases no poder aquisitivo de cada indivíduo. Sob esse ângulo, ser patriota é pensar a vida em sociedade tanto sob um ponto de vista do divino, do ideológico, como também pelo ângulo econômico, e não mais uma ótica que se preocupa com a realidade nua, que é o social. Ou seja, essa é a influência que o neoliberalismo gera na percepção de mundo de milhares de brasileiros sobre a pátria, enxergando a nação brasileira pela pauta do individualismo demasiado, do divino e do econômico.
Dessa maneira, grande parcela da população brasileira não percebe, na medida em que é alienada ideologicamente por líderes carismáticos e supostamente aliados a valores cristãos, que sua identidade nacional está fragmentada. Evidentemente, o pensar coletivo é deixado de lado e o poder aquisitivo torna-se uma forma de “prevenir ou silenciar entre os excluídos a militância política, o tradicional direito político”¹⁵, ameaçando, desse modo, o pleno funcionamento da democracia atual e futura.
Por fim, uma das melhores soluções de se amenizar toda essa problemática é o investimento na educação popular, pois na medida em que é esclarecedora, no passado pós ditatorial “permitiu às pessoas tomarem conhecimento de seus direitos e se organizarem para lutar por eles”¹⁶, ideia que se aplica, ainda, aos dias de hoje. Ou melhor dizendo, só por meio da educação um indivíduo espoliado pode reconhecer-se como explorado e, também, enxergar-se como parte do coletivo, parte de uma sociedade, parte de uma pátria verdadeira.
* Graduando do primeiro semestre de 2023 em Direito pela Universidade de Brasília. Membro do projeto de extensão Veredicto. Email para contato: gabrielnlagares@gmail.com
[1] BUARQUE, Chico; HIME, Francis. Vai Passar. In: BUARQUE, Chico. Chico Buarque. Rio de Janeiro, RJ: Universal Music Ltda, 1984. 1 CD. Faixa 10.
[2] CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: O longo caminho; 3ª edição; Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 2002. p. 8 – 9.
[3] SELL, Carlos Eduardo. Introdução à sociologia política: Política e sociedade na modernidade tardia; 1ª edição; Petrópolis, RJ: Vozes, 2006. p. 64.
[4] GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina; 1ª edição; Porto Alegre, RS: Coleção L&PM Pocket, 2010. p. 395 – 396.
[5] CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: O longo caminho; 3ª edição; Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 2002. p. 13.
[6] CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: O longo caminho; 3ª edição; Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 2002. p. 221.
[7] Ibid, p. 221.
[8] MBEMBE, Achille. Necropolítica; São Paulo: n-1 edições, 2018. p. 34.
[9] Ibid, p. 42.
[10] KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser; 1ª edição; São Paulo: Companhia de Bolso, 2008. p. 244.
[11] KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser; 1ª edição; São Paulo: Companhia de Bolso, 2008. p. 247.
[12] Instituto Humanitas Unisinos. E agora, que o neoliberalismo está em ruínas?; 2020. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/605783-e-agora-que-o-neoliberalismo-esta-em-ruinas. Acesso em: 18/06/2023
[13] CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: O longo caminho; 3ª edição; Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 2002. p. 228.
[14] Ibid, p. 226.
[15] CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: O longo caminho; 3ª edição; Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 2002. p. 228.
[16] Ibid, p. 11.
Referências
BUARQUE, Chico; HIME, Francis. Vai Passar. In: BUARQUE, Chico. Chico Buarque. Rio de Janeiro, RJ: Universal Music Ltda, 1984. 1 CD. Faixa 10.
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: O longo caminho; 3ª edição; Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 2002.
GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina; 1ª edição; Porto Alegre, RS: Coleção L&PM Pocket, 2010.
Instituto Humanitas Unisinos. E agora, que o neoliberalismo está em ruínas?; 2020. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/605783-e-agora-que-o-neoliberalismo-esta-em-ruinas. Acesso em: 18/06/2023.
KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser; 1ª edição; São Paulo: Companhia de Bolso, 2008.
MBEMBE, Achille. Necropolítica; São Paulo: n-1 edições, 2018.
SELL, Carlos Eduardo. Introdução à sociologia política: Política e sociedade na modernidade tardia; 1ª edição; Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.