Consentimento Informado no Direito Médico: Proteção ao Paciente ou Blindagem Jurídica ao Médico?

por Veredicto

Escrito por Maria Eduarda Tomaz Almeida[*]

O consentimento informado tornou-se um dos pilares fundamentais das relações contemporâneas entre profissionais da saúde e pacientes. Em tempos marcados pelo fortalecimento dos direitos fundamentais, notadamente o direito à autonomia e à dignidade da pessoa humana, este instituto ganha relevo não apenas no campo da ética médica, mas também na esfera jurídica.

No campo médico, o consentimento informado representa um processo comunicativo que visa garantir que o paciente receba informações claras, completas e compreensíveis sobre o procedimento a que será submetido, incluindo riscos, alternativas e possíveis consequências. Juridicamente, ele se traduz em um mecanismo de proteção aos direitos da personalidade e à autodeterminação corporal, assegurado por diversos dispositivos legais.

Contudo, surge a seguinte problematização: o consentimento informado é, na prática, um instrumento de empoderamento do paciente ou vem sendo utilizado, em muitas situações, como um mecanismo de blindagem jurídica ao médico? É neste ponto que reside a tensão central deste artigo. O objetivo deste trabalho é analisar criticamente essa dupla função do consentimento informado, investigando tanto sua dimensão de garantia dos direitos do paciente quanto seu uso estratégico por profissionais da saúde frente a potenciais responsabilizações. A metodologia utilizada é a revisão bibliográfica com abordagem qualitativa e crítica, com base em autores da bioética, da doutrina jurídica e em documentos normativos.

Fundamentação teórica: o consentimento informado no ordenamento jurídico brasileiro

O conceito de consentimento informado tem origem em marcos fundamentais da bioética e do direito internacional. Sua consolidação se deu especialmente após os horrores das experiências médicas forçadas durante o regime nazista, o que motivou a criação do Código de Nuremberg em 1947. Esse documento estabeleceu que nenhum experimento médico pode ser realizado sem o consentimento voluntário e esclarecido do indivíduo. Posteriormente, a Declaração de Helsinque, publicada pela Associação Médica Mundial em 1964 e atualizada diversas vezes, ampliou esse princípio para a prática clínica e reforçou o papel central da autonomia do paciente nas decisões médicas.

No plano jurídico e bioético, o consentimento se fundamenta em quatro princípios: autonomia (direito de decidir sobre si mesmo), beneficência (agir em benefício do paciente), não maleficência (evitar danos) e justiça/equidade (trato equitativo). Esses princípios orientam tanto a conduta médica quanto às interpretações jurídicas sobre a validade e a efetividade do consentimento[i].

No Brasil, o consentimento informado está amparado por diversos diplomas legais. A Constituição Federal de 1988 garante, no art. 5º, os direitos à vida, à liberdade e à integridade física. O Código Civil, em seus artigos 15 e 186, trata da necessidade de autorização para intervenções médicas e da responsabilidade por atos lesivos. O Código de Ética Médica, regulamentado pela Resolução CFM nº 2.217/2018, reforça o dever de informação e a necessidade de consentimento livre e esclarecido.

Do ponto de vista material, exige-se que a informação seja transmitida em linguagem acessível, que o paciente tenha liberdade de escolha, compreenda os dados fornecidos e manifeste sua vontade de forma consciente e voluntária[ii].

O consentimento como instrumento de proteção ao paciente

Quando praticado de forma ética e transparente, o consentimento informado representa uma efetiva garantia do direito do paciente de decidir sobre seu próprio corpo. É um instrumento de empoderamento que fortalece a autonomia individual e contribui para a humanização da prática médica[iii]. Sob essa perspectiva, a relação entre médico e paciente deixa de ser paternalista e unilateral, dando lugar a um diálogo mais igualitário. Essa mudança é fundamental para que o paciente compreenda seu tratamento e participe ativamente das decisões.

Casos jurisprudenciais demonstram situações em que o consentimento informado protegeu efetivamente o paciente, como em decisões do STJ que reconheceram o direito à indenização por intervenções realizadas sem informação adequada ou consentimento específico[iv]. 

Além disso, a superação do paternalismo médico é uma das principais conquistas dessa prática, reforçando o papel do paciente como sujeito de direitos e não mero destinatário de condutas técnicas.

O consentimento como blindagem jurídica do médico

Apesar de sua proposta ética, o consentimento informado também pode ser utilizado como estratégia de defesa legal pelo profissional da saúde. Em muitos casos, o termo de consentimento é elaborado de forma genérica, padronizada e com linguagem técnica, tornando-se um contrato de adesão que o paciente assina sem plena compreensão[v]. Isso tem sido chancelado pela jurisdição. De fato, a jurisprudência brasileira registra decisões que validam consentimentos genéricos como suficientes, mesmo sem provas de que houve informação adequada e compreensível, o que compromete a proteção ao paciente.

Entretanto, observa-se que o uso do termo de consentimento livre e esclarecido na prática assistencial tem se distanciado de sua finalidade ética original, transformando-se, muitas vezes, em um instrumento meramente burocrático. Diante do medo de processos, profissionais se resguardam por meio de termos de consentimento mais voltados à proteção legal do que à comunicação efetiva[vi]. Conforme aponta o artigo publicado na Revista Bioética[vii], há uma tendência crescente de utilizar tais documentos de consentimento como proteção jurídica dos profissionais de saúde, em vez de promover um real diálogo com o paciente. Decorre que essa prática da medicina defensiva pode comprometer a autonomia do indivíduo, uma vez que a assinatura do termo de consentimento, per se, não garante que a informação tenha sido compreendida ou debatida em profundidade. Ao fim, o fenômeno pode, a contrário sensu, comprometer a finalidade de promoção da informação e do consentimento do paciente.  

Considerações finais

Pode-se sugerir que o consentimento informado esteja ocupando uma posição ambígua no direito médico contemporâneo. Pode ser tanto uma ferramenta de empoderamento e garantia de direitos quanto um escudo jurídico para profissionais da saúde. Para que cumpra sua função original, é preciso uma reconfiguração ética e prática do consentimento, centrada na comunicação efetiva, na escuta ativa e no respeito à singularidade do paciente. Entre as propostas que emergem desse debate, estão: o fortalecimento da formação bioética dos profissionais da saúde, a fiscalização pelos conselhos de classe e a promoção de uma cultura de participação ativa do paciente. O verdadeiro consentimento não se limita à assinatura de um papel, mas à construção de um vínculo baseado na confiança e no diálogo.

 

Referências

CARVALHO, Thays Rocha de. Consentimento informado em procedimentos médicos: a importância do consentimento informado em procedimentos médicos. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito).

AFYA Educação Médica. Consentimento informado: o que é e qual a importância para o médico. Afya Educação Médica. 2024. Disponível em: https://educacaomedica.afya.com.br/blog/consentimento-informado.  Acesso em: 20 jul. 2025.

ASSOCIAÇÃO MÉDICA MUNDIAL. Declaração de Helsinque: princípios éticos para pesquisas médicas envolvendo seres humanos. Helsinque, 1964. Disponível em: https://www.ufrgs.br/bioetica/helsinque.htm.  Acesso em: 16 jul. 2025.

BRASIL. Código de Nuremberg (1947). In: SANTOS, Benedito dos (org.). Ética em pesquisa. Brasília: Ministério da Saúde, 1996. p. 19-22.

BEAUCHAMP, T.L.; CHILDRESS, J.F. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola, 2002.

BIOÉTICA (Instituição). A autonomia, não-maleficência, beneficência, justiça e consentimento livre e esclarecido. In: BIOÉTICA (Instituição). Publicações. Cap. 53. [s/d]. Disponível em: http://www.bioetica.org.br/?siteAcao=Publicacoes&acao=detalhes_capitulos&cod_capitulo=53&cod_publicacao=6. Acesso em: 20 jul. 2025.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Presidência da República, [2023?]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 20 jul. 2025.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 20 jul. 2025.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Para Terceira Turma, indenização por falha de informação ao paciente não pode ignorar realidade da época dos fatos. Notícias STJ, 25 abr. 2022. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/25042022-Para-Terceira-Turma–indenizacao-por-falha-de-informacao-ao-paciente-nao-pode-ignorar-realidade-da-epoca-dos-fatos.aspx Acesso em: 14 jul. 2025.

CARVALHO, Thays Rocha de. Consentimento informado em procedimentos médicos: a importância do consentimento informado em procedimentos médicos. Trabalho de Conclusão de Curso, 2024. Disponível em: https://zenodo.org/records/16044235. Acesso em: 8 set. 2025. 

CASTRO, Carolina Fernandes de; QUINTANA, Alberto Manuel; OLESIAK, Luísa da Rosa; MÜNCHEN, Mikaela Aline Bade. Termo de consentimento livre e esclarecido na assistência à saúde. Revista Bioética, Brasília, v. 28, n. 3, p. 544–552, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/bioet/a/nSNCdJq7zx8FynjmV7m9fqh/.  Acesso em: 15 jul. 2025.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 2.217/2018 – Código de Ética Médica: dispõe sobre as normas éticas que regem a medicina no Brasil. Brasília, DF: CFM, 2019. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/images/PDF/cem2019.pdf. Acesso em: 20 jul. 2025.

FRANCO, Elaine Cristine. O Consentimento Informado e a Lei Brasileira. Jusbrasil. 06 mar. 2019. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/o-consentimento-informado-e-a-lei-brasileira/682319555 Acesso em: 20 jul. 2025.

MINOSSI, José Guilherme; SILVA, Alcino Lazaro da. Medicina defensiva: uma prática necessária? Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões, Rio de Janeiro, v. 40, n. 6, p. 494–501, dez. 2013. DOI: 10.1590/S0100‑69912013000600013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rcbc/a/76mch8K6Bvymmj3Cc5m5NCg/ Acesso em: 20 jul. 2025.

[*] Estudante do 3° Semestre da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Membro do Veredicto simulações, Pesquisa e Extensão. E-mail de contato: eduardathomaz706@gmail.com.
[i] Beauchamp; Childress, 2002.
[ii] Franco, 2019.
[iii] Carvalho, 2024.
[iv] Brasil, 2022.
[v] AFYA, 2024.
[vi] Minossi; Silva, 2013.
[vii] Bioética, s/d.

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