Anais da Simulação Jurídica 2025 – STJ (Veredicto)

Organização pelo projeto de extensão Veredicto UnB

por Veredicto

Relato da Simulação Jurídica

No dia 21 de agosto de 2025, a SIJUR (Simulação Jurídica do Projeto de Extensão Veredicto) reuniu mais de 100 estudantes no Superior Tribunal de Justiça (STJ) em um evento dinâmico, marcado por debates jurídicos de grande relevância. Os participantes assumiram papéis centrais no sistema de justiça: os simulantes atuaram como ministros com jurisdição nacional, outros, ora como advogados, ora como representantes do Ministério Público, defenderam suas teses e exerceram a função de fiscal da lei (custos legis), enquanto os amicus curiae contribuíram para pluralizar o debate, trazendo novas perspectivas e subsídios técnicos ao tribunal.

O Debate sobre Locações por Temporada em Condomínios (Caso Airbnb)

O primeiro julgamento de grande destaque, conduzido pela Ministra Ingrid Samara Garcia Rodrigues, mergulhou na controvérsia sobre a legalidade de locações por curta temporada em condomínios residenciais. A questão central opôs, de um lado, a defesa do direito de propriedade e da liberdade econômica, e, do outro, a preocupação com a descaracterização do uso residencial dos imóveis, que, na visão do Ministério Público, transformava lares em negócios de hospedagem travestidos.

Em plenário, a defesa contou com a participação de diferentes advogados, incluindo o Dr. Luís Fernando Ribeiro e a Dra. Fernanda Guedes, que buscaram desconstruir a tese da hotelaria e destacar o caráter doméstico das locações por temporada, afastando a prestação de serviços típicos do setor hoteleiro. Eles argumentaram que a prática se enquadra como locação por temporada, amparada pelo artigo 48º da Lei nº 8.245/1991 e pelo Código Civil, e salientaram que plataformas como o Airbnb possuem mecanismos para mitigar riscos de segurança, que não deveriam ser presumidos de forma abstrata.

Um ponto crucial do debate foi o quórum para deliberação condominial. A Dra. Flávia Maillard Cipulli Pestana Garcez enfatizou que qualquer restrição a esse tipo de locação exigiria a aprovação de dois terços dos condôminos, conforme o artigo 1.351 do Código Civil e precedentes do STJ (como os REsp 1.819.075/RS, 2.121.055/MG e 1.884.483/PR). No caso concreto, a decisão foi tomada por maioria simples, o que, segundo a advogada, comprometeria a validade do ato, levando-a a questionar a legitimidade da decisão.

Em um contraponto incisivo à defesa, o Subprocurador-Geral da República, Guilherme Monteiro de Almeida, apresentou o parecer do Ministério Público. Ele baseou sua argumentação em três vetores centrais: a descaracterização do uso residencial das unidades diante das locações mediadas por plataformas digitais, a autonomia do condomínio para proteger o sossego e cumprir a função social da propriedade, e, por fim, a responsabilidade do MP em salvaguardar a ordem pública, atuando não para favorecer um dos lados do litígio, mas como fiscal da lei (custos legis), buscando garantir a justiça de forma equilibrada e imparcial. Para ilustrar seu ponto, Almeida questionou até que ponto um imóvel deixaria DE se enquadrar como residencial caso seus usos mais essenciais fossem alterados pela rotatividade e dinâmica digital, suscitando uma discussão sobre a identidade jurídica da propriedade. Contudo, mesmo ressaltando a transcendência do caso e seus reflexos para todo o setor econômico, a defesa não sensibilizou o colegiado, que acompanhou o voto do relator e o parecer do Subprocurador-Geral.

Assim, chegou-se ao momento do voto, o Min. relator Heitor Martins Lacerda, que sintetizou os debates sob o prisma do conflito entre o direito de propriedade/liberdade e a liberdade condominial, confirmando a pluralidade de entendimentos já existentes no Superior Tribunal de Justiça. O voto particularmente favorável a locação por temporada prevista no artigo 48º, mas indicado que, no caso específico, a decisão do condomínio padeceu de acusações tanto formais (por não observar o quórum de 2/3 exigido) quanto materiais (por configurar ingerência indevida na liberdade contratual do requerente e presumir destinação comercial inexistente, sem violar o artigo 1.336 do Código Civil).

O relator destacou que o simples fato de existir mercado ao redor das locações de curta temporada, como no caso do Airbnb, não transforma automaticamente a atividade em comercial, pois a propriedade, ao propiciar renda e abrigo, cumpre sua função social. Alterações bruscas nas regras, argumentadas, atentam contra a segurança jurídica, considerando que tais plataformas operam há cerca de dez anos no país. Apontou também que eventuais falhas de segurança, por exemplo, negligência nos registros de portaria, deveriam ser solucionadas pelo próprio condomínio, não ocorrendo de argumento para atribuição total das locações. Ressaltou, porém, que é legítimo ao condomínio, observando-se o devido quórum legal, deliberar por medidas regulatórias (pisos, tetos ou restrições), de modo a refletir o regime democrático na esfera privada, conforme autorizado pela Constituição Federal. Por fim, assinalou que não constavam nos autos incidentes concretos de perturbação do sossego, considerando desarrazoada a ansiedade coletiva dos condôminos e dando provimento ao recurso.

Com a aprovação unânime do voto do relator, encerrou-se o julgamento, consolidando esse comitê, ao menos por agora, a prevalência dos direitos coletivos em assembleia sobre a liberalidade individual do proprietário, sem esgotar o debate em torno do Airbnb e da locação por temporada em contextos condominiais. Enquanto a legislação e a jurisdição nacional não inauguram um novo consenso, permanece claro, pelos anais da sessão, que a controvérsia continuará a ser decidida voto a voto, recurso a recurso, assembleia a assembleia.

Intervalo para Conexões: O Coffee Break

Finalizada a primeira sessão, permeada por discussões densas e instigantes, os ministros seguiram para um intervalo que quebrou a formalidade do plenário e trouxe um ambiente mais acolhedor e vibrante. No coffee break, a tensão das sustentações cedeu lugar a diálogos espontâneos, trocas de experiências e momentos de leveza que reforçaram a aproximação entre os participantes, preparando-os para a retomada dos julgamentos. Muitos aproveitaram a pausa para estreitar vínculos, conhecer novos colegas e compartilhar contatos via rede sociais. Essa pausa estratégica foi fundamental para aliviar a tensão do primeiro momento e renovar as energias, preparando a todos, deixando-os mais conectados e engajados, para os complexos debates que se seguiriam na sessão seguinte. O intervalo cumpriu, assim, um papel crucial na construção de amizades e no fortalecimento do espírito de cooperação que marcou toda a simulação, mostrando que os laços formados nos corredores eram tão importantes quanto os argumentos apresentados no tribunal.

A Liberdade de Expressão e a Responsabilidade das Plataformas Digitais

Com as energias renovadas, os participantes retornaram ao plenário para dar continuidade à simulação, os ministros do STF e debruçaram sobre a constitucionalidade da Lei nº 15.201/2025, a “Lei de Responsabilidade na Internet”, que impõe deveres de moderação de conteúdo a provedores para coibir discursos de ódio e desinformação. O julgamento buscou o delicado equilíbrio entre proteger a liberdade de expressão e garantir um ambiente digital seguro e democrático.

A ministra relatora, Clara Dantas de Barros, defendeu que a liberdade de expressão não é um direito absoluto e que a lei não representa censura prévia. Pelo contrário, ela cria mecanismos para responsabilizar as Big Techs, que detêm poder para controlar a circulação de conteúdos nocivos. Seu voto, pela constitucionalidade dos artigos 4º, 6º, 8º e 11º, que visam a regulamentação das redes sociais, foi integralmente acompanhado pelos demais ministros.

A Procuradora-Geral da República, Sandy Melory, corroborou a visão da relatora, afirmando que a liberdade de expressão pode ser limitada para proteger direitos fundamentais e destacou a compatibilidade dos deveres de transparência e moderação previstos na lei. A ministra Márcia Leão também acompanhou o voto, usando a teoria de Robert Alexy para defender o equilíbrio entre a liberdade de expressão e outros valores constitucionais. Já a ministra Gabriela de Souza Gonçalves, embora concordando com a constitucionalidade geral, fez ressalvas importantes, alertando que cláusulas vagas e sanções graves, como o bloqueio de contas sem controle judicial, poderiam configurar censura e sufocar críticas legítimas.

Representando a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, Amicus curiae, a advogada Sofia Azevedo argumentou que a soberania popular é ameaçada quando a população é manipulada por desinformação. Citando a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 572, ela diferenciou o direito ao dissenso dos ataques que visam minar as instituições democráticas, reforçando o papel da lei na defesa do Estado Democrático de Direito.

Ao final, em decisão unânime, o colegiado acompanhou integralmente o voto da relatora, Ministra Clara Dantas, e consolidou a constitucionalidade da lei, estabelecendo que o combate à desinformação não significa censura prévia. O resultado foi visto como um marco regulatório equilibrado, que protege tanto a livre circulação de ideias quanto a integridade do espaço público digital no Brasil.

 

A Regulamentação das Apostas Esportivas em Xeque (Caso das Bets)

A regulamentação das apostas esportivas também foi objeto de intenso debate em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a Lei nº 14.790/2023, a “Lei das Bets”. A Confederação Nacional do Comércio (CNC) argumentou que a lei era inconstitucional por violar a dignidade humana e o direito à saúde, alegando que a norma fomenta o endividamento e o vício em jogos (ludopatia). Em defesa da lei, a Advocacia-Geral da União e o Congresso Nacional sustentaram que a regulamentação é positiva, pois garante segurança jurídica e mecanismos de proteção aos apostadores, como a autoexclusão. Atuando como amicus curiae (‘amiga da corte’), a advogada Karolina Miranda defendeu a constitucionalidade parcial da lei, destacando que ela equilibra a livre iniciativa com a proteção social e pode gerar recursos para políticas públicas. A CNC contrapôs com dados que mostraram gastos mensais de dezenas de bilhões de reais em apostas no início de 2025, evidenciando o risco social. Por fim, o colegiado decidiu por unanimidade pela constitucionalidade da lei, julgando a ação improcedente, mas fez a ressalva de que é crucial monitorar continuamente os efeitos da norma para equilibrar os interesses econômicos e a proteção social.

Percepção do Público

A simulação jurídica foi recebida de forma extremamente positiva pelos participantes. A percepção geral, extraída dos feedbacks, foi de um evento “maravilhoso” e “essencial” para a formação dos envolvidos. A organização foi amplamente elogiada pelo cuidado e pela dedicação da gestão, sendo descrita como “incrível” e “muito bem comprometida”. Cabe destacar que a maioria da gestão foi composta por mulheres — Ana Beatriz, Ana Maria, Lorrane Alves, Letícia Pádua e Rafaela Frois — que desempenharam suas funções de maneira exemplar, demonstrando competência, compromisso e sensibilidade. O evento também se destacou pela capacidade de estimular a interação entre os participantes e promover um ambiente de aprendizagem colaborativa.

Quanto aos pontos a serem aprimorados, os feedbacks sugeriram a avaliação da possibilidade de incluir diversos temas jurídicos, como direitos humanos e questões criminais mais complexas. Essas contribuições serão cuidadosamente consideradas e incorporadas na organização da próxima simulação jurídica, garantindo uma experiência cada vez mais desenvolvida e produtiva para todos os envolvidos.

Em síntese, a simulação jurídica consolidou-se como uma atividade formativa de excelência, capaz de integrar teoria e prática, fortalecer competências técnicas e interpessoais, valorizar a participação ativa e colaborativa, e evidenciar o impacto positivo de uma gestão comprometida e sensível. As observações recebidas apontam caminhos para ampliar a diversidade temática e a complexidade dos casos, assegurando que futuras edições sejam ainda mais abrangentes, inclusivas e enriquecedoras para todos os participantes.

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2022]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.

BRASIL. Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991. Dispõe sobre as locações dos imóveis urbanos e os procedimentos a elas pertinentes. Brasília, DF: Presidência da República, 1991. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8245.htm.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Presidência da República, 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm.

BRASIL. Lei nº 14.790, de 29 de dezembro de 2023. Dispõe sobre a modalidade lotérica denominada apostas de quota fixa. Brasília, DF: Presidência da República, 2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14790.htm.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Quarta Turma). Recurso Especial nº 1.819.075/RS. Condomínio. Imóvel residencial. Locações sucessivas por curta temporada. Plataformas digitais. Uso não residencial. Convenção de condomínio. Previsão. Necessidade. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Brasília, 20 de abril de 2021a.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Terceira Turma). Recurso Especial nº 1.884.483/PR. Condomínio. Imóvel com destinação exclusivamente residencial. Locação por curto período. Plataformas digitais. Impossibilidade. Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Brasília, 23 de novembro de 2021b.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Terceira Turma). Recurso Especial nº 2.121.055/MG. Locação por curto prazo. Airbnb. Convenção de condomínio. Vedação expressa. Necessidade. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Brasília, abril de 2024.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 572/DF. Relator: Min. Edson Fachin. Julgamento: 18 jun. 2020. Brasília, DF: STF, [2020].

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