Escrito por Ana Clara Abadio [*]
Mesmo após mais de três décadas da promulgação da Constituição de 1988, a promessa de igualdade entre homens e mulheres ainda está longe de se concretizar. As mulheres seguem sub-representadas nos espaços de poder, enfrentando barreiras que vão muito além da letra da lei. Este ensaio foi desenvolvido a partir de um texto escrito por mim na disciplina de pesquisa jurídica, ministrada pelo Professor Dr. José Geraldo de Sousa Junior, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, que questionava a distância entre norma e realidade.
Ainda que estejam presentes em todos os setores da sociedade e que conquistem, em muitos casos, mais diplomas e aprovações em concursos do que os homens, as mulheres continuam ausentes dos cargos de decisão. Essa ausência não pode ser explicada apenas pela falta de leis, afinal, a legislação brasileira já contempla mecanismos de promoção da igualdade. O problema é mais profundo, envolvendo a persistência de estruturas patriarcais que atravessam a cultura, as instituições e os próprios imaginários sociais. Afinal, o que impede tantas mulheres de ocupar posições de liderança? Trata-se de uma limitação imposta? De uma sensação de não pertencimento? Ou de um sistema que ainda insiste em deslegitimar sua presença?
Estas são algumas das questões que este trabalho busca enfrentar. Para isso, o artigo está dividido em duas partes: a primeira recupera o processo de luta das mulheres na Assembleia Constituinte de 1987-1988, destacando as conquistas e os embates que marcaram a construção do texto constitucional; e a segunda discute os fatores que explicam a permanência das desigualdades de gênero, mesmo diante de importantes avanços normativos.
A Constituição se 1988 e a luta das mulheres
Historicamente, as mulheres foram excluídas da vida pública e tratadas como sujeitos de menor capacidade civil e política. Até meados do século XX, eram consideradas relativamente incapazes perante o Código Civil e só conquistaram plenamente o direito ao voto em 1934. A Constituição de 1988 representou uma inflexão importante nesse processo de invisibilidade, ao reconhecer a igualdade formal entre homens e mulheres (art. 5º, I) e ao prever mecanismos de proteção contra a discriminação de gênero (art. 7º, XX e XXX)[1].
O protagonismo feminino na Constituinte, embora numérica e simbolicamente limitado, foi significativo. Apenas 26 mulheres integravam a Assembleia Nacional Constituinte, mas sua atuação foi decisiva na formulação de pautas fundamentais[i]. Articuladas com o movimento feminista e o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, essas parlamentares formaram o chamado “Lobby do Batom”[ii] e apresentaram dezenas de emendas.
Entre os principais instrumentos dessa mobilização, destaca-se a “Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes”[iii], entregue em 1987, com reivindicações sobre igualdade salarial, reconhecimento do trabalho doméstico, planejamento familiar, direitos reprodutivos, combate à violência e maior representatividade na política institucional. Muitas dessas propostas foram incorporadas ao texto constitucional, como o repúdio à violência doméstica (art. 226, §8º), o direito ao planejamento familiar (§7º) e a igualdade de direitos entre homens e mulheres (art. 5º, I)[iv].
Apesar das conquistas, a resistência foi intensa. Como mostram os registros dos debates nas Subcomissões, houve diversas tentativas de apagar a identidade de gênero do texto constitucional, mantendo a referência genérica ao “homem”[v]. Mesmo após a aprovação, muitos dispositivos permaneceram dependentes de regulamentação posterior e sujeitos a interpretações restritivas.
A atuação feminina foi marcada pela apropriação estratégica de estereótipos. Como aponta a literatura histórica, o ideal da mulher virtuosa – cuidadora, honesta e protetora da moral –, foi instrumentalizado pelas próprias ativistas para justificar sua entrada na política. Sendo “tão nobre”, a mulher também deveria votar e ser votada. Essa estratégia permitiu conquistas, mas também impôs limites, pois reforçou papéis tradicionais. Ainda hoje, observa-se que mulheres no poder são esperadas a manter uma imagem de sobriedade e “boa conduta” muito mais rígida do que seus colegas homens.
Além disso, a institucionalização dos direitos das mulheres no texto constitucional não representou, automaticamente, sua efetivação. A partir de 1988, diversas normas foram editadas para garantir essa implementação, como a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), a Lei do Feminicídio (Lei 13.104/2015) e a obrigatoriedade de candidaturas femininas em eleições proporcionais (Lei 9.504/1997). No entanto, a eficácia dessas leis é constantemente minada por lacunas institucionais, falta de recursos e ausência de vontade política.
A persistência da exclusão feminina
Mais de três décadas após a promulgação da Constituição de 1988, a desigualdade de gênero segue estruturando a realidade brasileira. Em 2024, apenas 18% das cadeiras nas câmaras municipais foram ocupadas por mulheres. Nos cargos de liderança política, empresarial e institucional, essa proporção é ainda menor[vi].
Essa exclusão se mantém por fatores que vão além da legalidade. A divisão sexual do trabalho, que associa mulheres ao cuidado, à maternidade e às tarefas domésticas, permanece naturalizada. No setor fabril, as mulheres ainda enfrentam precarização, desvalorização e invisibilidade, como analisado por Teixeira (2009). No campo político, enfrentam o desafio adicional da exposição midiática baseada em sua aparência e em estereótipos de gênero[vii].
A cultura patriarcal produz subjetividades que dificultam o acesso das mulheres ao poder. Muitas vezes, mesmo quando qualificadas, elas sentem que não pertencem àqueles espaços ou têm sua presença questionada[viii]. Esse processo de exclusão simbólica é reforçado por práticas institucionais que não asseguram equidade na disputa política. As cotas de gênero são frequentemente desrespeitadas, candidaturas fictícias e distribuição desigual de recursos eleitorais enfraquecem sua efetividade. Conforme Pitanguy e Jacqueline[ix],
Existe uma diferença drástica entre o Congresso Constituinte, eleito, em 1986, como um espaço de debate e compromisso público, e o que representa hoje o Congresso Nacional. Há um abismo em termos de qualidade de atuação parlamentar. Hoje, para as mulheres, a participação política no Legislativo não parece muito atraente, o que não colabora para que as mulheres venham a romper as inúmeras barreiras que os partidos criam para sua efetiva incorporação. Nossa lei de cotas precisa ser revista, ela é insuficiente. O desencanto com a política, além de preconceitos ainda vigentes na sociedade, afasta as mulheres da luta pela sua maior incorporação ao Legislativo.
Outro obstáculo é a atual onda de conservadorismo, que tem se manifestado em ataques às pautas feministas e na tentativa de suprimir discussões sobre gênero nas escolas e nas políticas públicas[x]. Ao fortalecer modelos tradicionais de família e papéis sexuais rígidos, esse movimento busca resgatar uma “ordem” na qual a mulher está submissa e confinada ao espaço privado.
A persistência da exclusão feminina, portanto, não pode ser dissociada do sistema que a legitima: o machismo estrutural. Esse sistema se infiltra em todas as dimensões da vida social, desde os discursos institucionais até as práticas cotidianas nos tribunais, nos espaços legislativos, nas corporações e nas instituições de ensino superior. Combater esse sistema exige mais do que mudanças legislativas: requer transformação cultural profunda e comprometimento institucional contínuo.
Conclusão
A Constituição de 1988 representou um avanço fundamental na formalização dos direitos das mulheres no Brasil. No entanto, a distância entre o texto constitucional e a realidade cotidiana evidencia os limites da transformação legal diante de estruturas patriarcais persistentes. A desigualdade de gênero no Brasil não é fruto de falta de norma, mas de uma cultura e de instituições que ainda reproduzem o machismo em diversas esferas.
A igualdade de gênero não será plenamente alcançada sem a articulação entre normas jurídicas, políticas públicas efetivas, mudança cultural e maior presença das mulheres nos espaços de decisão. Superar o machismo estrutural requer ação institucional firme, vontade política e mobilização social contínua. A luta das mulheres por dignidade, reconhecimento e poder segue sendo uma das principais frentes de democratização da sociedade brasileira.
Referências bibliográficas
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CARTA das Mulheres Brasileiras aos Constituintes. Câmara dos Deputados. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/a-constituinte-e-as-mulheres/arquivos/Constituinte%201987-1988-Carta%20das%20Mulheres%20aos%20Constituintes.pdf. 1987. Acesso em: 23 ago. 2025.
FINAMORE, Claudia Maria; CARVALHO, João Eduardo Coin de. Mulheres candidatas: relações entre gênero, mídia e discurso. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 14, n. 2, p. 347–362, maio/ago. 2006.
FRASER, Nancy. Redistribuição, reconhecimento e justiça: uma crítica à política da identidade. Lua Nova, n. 58, p. 167–201, 2003.
PIOVESAN, Flávia. Igualdade de gênero na Constituição Federal: os direitos civis e políticos das mulheres no Brasil. In: PIOVESAN, Flávia (org.). Direitos Humanos das Mulheres. São Paulo: Max Limonad, 2001.
LIMA, Caroline Araújo Florêncio de. A participação das mulheres na elaboração da Constituição Federal de 1988: o Lobby do Batom. 2016. Trabalho de Conclusão de Curso — Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
SILVA, Salete Maria da. A carta que elas escreveram: a participação das mulheres no processo de elaboração da Constituição Federal de 1988. 2011. Tese (Doutorado) — Universidade Federal da Bahia.
TEIXEIRA, Cíntia Maria. As mulheres no mundo do trabalho: ação das mulheres no setor fabril para a democratização dos espaços público e privado. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, v. 25, n. 2, p. 237–244, 2009.
[1] Piovesan, 2001.
[i] Lima, 2016.
[ii] Silva, 2011.
[iii] Carta, 1987.
[iv] Piovesan, 2001.
[v] Barsted, 2001.
[vi] Teixeira, 2009.
[vii] Fraser, 2003.
[viii] Araújo; Biroli, 2014.
[ix] Araújo; Biroli, 2014.
[x] Brasil, 2025.
[*] Estudante do 2° semestre da Faculdade de Direito da UnB. Membro do Veredicto – Simulações, Pesquisa e Extensão. E-mail de contato: aclaraabadio@gmail.com

