UM DESABAFO DE UM JOVEM CRIMINALISTA

por Entre o Abuso e o Abandono

Escrito por Gabriel Cardoso

Venho do Direito, mas não me bastam as liturgias das formas. Há dias em que sinto que a Justiça perdeu a venda deliberadamente, há dias que tenho certeza, como se tivesse se transformado num ritual de poder, mais preocupada na  autopreservação do que em proteger o que é vivo. Nos corredores de mármore, onde a voz pesa conforme o cargo e a toga confere autoridade estética à indiferença, o humano se dissolve entre carimbos, protocolos e precedentes. 

Vejo o sofrimento ser reduzido a termo.  Vejo o sofrimento ser reduzido a peça documental. Vejo o abuso ganhar roupagem de rotina. Vejo o abandono ostentar o selo do Estado e o cinismo ser confundido com prudência, a reserva do possível, possivelmente violenta, possivelmente torturadora.

Recuso o tecnicismo que mascara pela indiferença, o formalismo que protege a omissão e o discurso que celebra a neutralidade enquanto pactua com a violência. A neutralidade, em contextos de desigualdade, é eufemismo para o consentimento da opressão. Não quero ser o executor obediente de um sistema que desumaniza; quero ser o atrito, o ruído, o corpo estranho na engrenagem que insiste em triturar pessoas.

O Direito que não se inquieta é cúmplice; a defesa que não se indigna é enfeite. O sistema de justiça tornou-se uma sofisticada coreografia da exclusão: uma máquina que simula racionalidade enquanto distribui castigo. 

A linguagem jurídica, se não for atravessada por carne, se torna apenas ruído burocrático. 

Quero um Direito que olhe para o abuso e o abandono sem desviar o rosto. Que não estetize a dor, nem normalize o sofrimento. Um Direito que reconheça a urgência de um olhar ético que não se encerre na sentença, que não confunda repressão com justiça, que não se acomode na frieza de seus códigos. Um Direito que lembre que a dignidade não é tese, mas vidas. 

Escrevo por raiva e por amor, ambos, quando autênticos, nascem do mesmo lugar: da recusa em aceitar o inaceitável. Escrevo para quem ainda acredita que o pensamento é uma forma de ação, e que a palavra pode empurrar o mundo alguns milímetros na direção do humano. 

Não escrevi esse texto para convencer. Escrevi para perturbar. 

E eu, como tantos outros, continuo aqui — entre o abuso e o abandono — tentando lembrar que, às vezes, o gesto mais radical é simplesmente não se acostumar.

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