A Justiça Restauradora No Tribunal Do Júri: Integração e Desafios Na Revisão De Sentença No Processo Penal

por Veredicto

Escrito por Enzzo Alves Gomes Moreira [*]

  1. Introdução

Com o advento do Estado Democrático de Direito, a sociedade urge por novas formas de pensar o processo penal. A passagem de um ideário punitivista para um viés ressocializador, que pretende proteger a integridade de todos e reintegrar o réu à sociedade, ainda não consiste em realidade inequívoca. Trata-se de uma construção histórico-temporal que se permeia ao longo do tempo. Nenhum modelo de processo exsurge dissociado de uma sucessão de discussões, ajustes e formas de pensar o procedimento. Os esforços conjugados de doutrinadores, legisladores e governantes permitiram grande avanço nesse sentido, com a consagração dos Direitos Humanos como preceito fundante da ordem constitucional. 

Contudo, quando se fala em matéria penal, normatizada sob a égide do pensamento fragmentário, as formas de punição e julgamento dos crimes de maior reprovabilidade implicam na necessidade de se debater e rever, de forma contínua, o seu desenho institucional, em especial ao se considerar que se pretende conciliar fatores, ao menos inicialmente, opostos. A punição adequada a crimes contra a vida, contraposta à manutenção da dignidade humana do infrator e à busca pela reintegração deste indivíduo na sociedade, consiste em um desafio ainda não solucionado. Ante a especificidade e seriedade dos crimes dolosos contra a vida, a herança consuetudinária influenciou o legislador a optar pelo procedimento especial do Júri, caracterizado por uma maior participação da sociedade, com a escolha de sete jurados leigos, para definição acerca da condenação. 

Em que pese a referida sistemática seja capaz de acarretar maior participação popular, não se pode olvidar que “o Tribunal do Júri, no que tem, então, de democrático, tem também, ou melhor, pode ser também, arbitrário” [1] . A razão primordial para tanto decorre da desnecessidade de motivação das escolhas jurídicas, o que viabiliza que fatores extrínsecos ao processo e pouco objetivos influam nos julgamentos. 

Nesse sentido, a adoção de práticas associadas à Justiça Restaurativa é de grande valia para o aprimoramento desse modelo. A revisão do desenho institucional vigente, com a finalidade de afastamento de arbitrariedades, demonstra-se viável, diante da adoção de um modelo constitucional compromissado com a Dignidade Humana, a partir da incorporação de práticas de Justiça Restauradora. 

 

  1. O Tribunal do Júri e o dever de motivar

Instituído em 1822 para julgar delitos de imprensa, o Tribunal do Júri evoluiu para se tornar competência exclusiva em crimes dolosos contra a vida. Sua estrutura atual inclui um Conselho de Sentença com sete jurados leigos, selecionados por critérios subjetivos como “boa conduta moral”. O referido procedimento não se restringe a um modelo de julgamento. Em verdade, é tanto uma garantia individual quanto um direito individual [2], permitindo aos cidadãos participar diretamente dos julgamentos do Poder Judiciário. Além disso, é protegido como cláusula pétrea pela Constituição Federal, no artigo 60, § 4.º, IV.

Contudo, a relevância e a visibilidade do Tribunal do Júri contrastam com a ausência de motivação nas decisões proferidas pelo Conselho de Sentença, o que suscita debates sobre a transparência e a legitimidade desse modelo de julgamento. Isso porque, apesar das mudanças que se desencadearam com o passar do tempo, o que se percebe é a manutenção de critérios para a escolha do jurado, os quais se diferenciam apenas quanto aos valores de cada época. Se, por um lado, para ser jurado em 1822 um indivíduo deveria ser “bom e patriota”, hoje se exige que tenha boa conduta moral e social. Ambos os indicadores são dotados de verdadeira subjetividade, incapazes de assegurar, de pronto, a aptidão dos sorteados para promoverem um julgamento “justo” e democrático. 

É claro que a soberania dos veredictos, nesse sentido, não é absoluta, o que viabiliza a revisão judicial das escolhas dos jurados por tribunais superiores, em especial mediante revisão criminal. Contudo, tais possibilidades são restritivas, pois necessitam estar expressas em lei, o que mitiga a proteção ao julgamento injusto no referido procedimento. Dessa forma, por natureza, o sistema de júri mitiga a fundamentação, uma vez que o Conselho de Sentença é constituído por juízes leigos, os quais não possuem as ferramentas e conceitos jurídicos suficientes para motivar suas decisões. Assim, “vige, em relação a eles, a regra da íntima convicção, e não o livre convencimento motivado” [3]. Infelizmente, contudo, não há como objetivar a consistência deste princípio. 

O referido desenho processual dificulta sobremaneira a interposição de recurso, uma vez que não se sabe ao certo quais as razões que implicaram na condenação do réu. Outrossim, o desenho institucional, em que pese mascarado pela legitimidade democrática, serve, em sua maioria, para fragilizar o regime democrático e condenar criminosos em massa, a partir de uma política que persegue pessoas específicas, via de regra, negros e pobres. Para solucionar essa controvérsia, práticas de Justiça Restauradora podem ser incorporadas ao Júri, na busca por se alcançar uma resolução mais humanizada e efetiva dos conflitos. Tal instituto propõe uma abordagem que vai além da simples aplicação da pena, ao focalizar na reparação dos danos causados e na reintegração das partes envolvidas, de modo a fomentar um diálogo mais inclusivo e reflexivo ao processo penal. 

 

  1. Justiça Restaurativa e Tribunal do Júri

No âmbito penal, a Justiça Restaurativa desafia a visão punitivista, ao questionar as necessidades geradas pelo crime e os papéis assumidos pelos envolvidos no conflito. Ao invés de focar exclusivamente na punição, busca atender às demandas emocionais e materiais das partes afetadas, promovendo a restauração do dano e a reconstrução das relações rompidas. O que se tem como inconteste a respeito deste conceito é que “a justiça restaurativa enfoca a restauração do dano a partir da participação ativa de todas as partes afetadas. Trata-se de um processo participativo de construção da justiça” [4].  Nesse sentido, cria um espaço seguro de diálogo, a fim de que todos os envolvidos contribuam ativamente para a solução do conflito e para o fortalecimento do tecido social.

 O fundamento central da Justiça Restaurativa é a compreensão de que o crime gera danos às pessoas, e a justiça deve buscar minimizá-los ao máximo. Nesse contexto, o consenso se apresenta como mecanismo essencial, de modo que assegure a cooperação entre vítima e agressor e reduza os impactos negativos causados pelo crime. O Tribunal do Júri, por se tratar de um procedimento de extrema relevância, bem como por consistir em um direito fundamental, pode e deve ser aprimorado por institutos dessa vertente. Em caso de crimes mais graves, surge a polêmica acerca do adequado tratamento que deve ser dado a esse tipo de réu, uma vez que o instinto de retribuição tende a se sobressair, em especial para as vítimas e principais afetados pelo delito. 

A competência do Júri é, além de um procedimento especial, um direito fundamental constitucionalmente consagrado, possuindo, portanto, o caráter de cláusula pétrea. Não se pretende, nesse sentido, extinguir ou mitigar este direito. O que se pretende, em verdade, é que se busque o aprimoramento do desenho institucional associado, a fim de afastar o caráter de espetáculo deste procedimento e tratar de assegurar a melhoria e o acompanhamento das necessidades das vítimas, de seus familiares e do próprio acusado, a fim de reinseri-lo na sociedade.

Carnelutti (2001) compara a condenação no Júri a um funeral, destacando que, assim como na morte, após a sentença condenatória e suas formalidades, as pessoas, aí incluídos os juristas, gradualmente deixam de pensar no condenado. A penitenciária, nesse sentido, é vista como um cemitério, com a diferença de que o condenado permanece “sepultado em vida” [5]. O Estado trata apenas de arrumar uma solução retributiva para aquele que cometeu o delito, nada realizando quanto às necessidades das famílias e dos demais envolvidos. 

É nesse sentido que a adoção de práticas da Justiça Restaurativa se demonstra relevante, a fim de reequilibrar o status quo ante, viabilizar a defesa e, em especial, a conscientização do infrator. Pode-se pensar em práticas de mediação e conscientização do criminoso durante o Tribunal, a fim de viabilizar sua reinserção social. Cogita-se, inclusive, em uma experiência transformacional, cujo réu poderia acessar meios hábeis de encontrar refrigério para suas atitudes e retornar à sociedade, destoado da possibilidade de cometer novos delitos. 

Além da mediação e da conscientização do infrator, a Justiça Restaurativa no contexto do Tribunal do Júri pode ser aplicada por meio de práticas que promovam o diálogo e a reparação simbólica ou material dos danos causados. Um exemplo é a inclusão de encontros restaurativos entre vítimas, familiares e réus, mediados por facilitadores treinados, em momentos oportunos do processo. Dessa forma, ao incorporar práticas voltadas à mediação, à conscientização do réu e à reparação dos danos causados, pode ser possível transformar esse instituto em um espaço de verdadeira reconstrução social. Com isso, preserva-se a relevância constitucional do Júri, enquanto se promove um equilíbrio entre a resposta ao crime, o atendimento às necessidades das vítimas e a reinserção do acusado na sociedade, de modo a fortalecer os valores fundamentais do Estado Democrático de Direito.

 

  1. Conclusão

A Justiça Restaurativa surge como uma abordagem inovadora e promissora para enfrentar os desafios do Tribunal do Júri, sobretudo no contexto de um Estado Democrático de Direito que preza pela dignidade humana e pela reintegração social do infrator. Ainda que existam resistências e desafios institucionais à implementação da Justiça Restaurativa, sua aplicação no Tribunal do Júri oferece a possibilidade de harmonizar os princípios constitucionais com uma justiça mais inclusiva e transformadora. 

A integração de práticas restaurativas ao Tribunal do Júri não objetiva enfraquecer ou substituir a soberania dos veredictos, mas sim enriquecer o procedimento com medidas que garantam maior transparência, equidade e eficácia na busca por justiça. Dessa forma, preserva-se o caráter democrático e a relevância constitucional desse instituto, ao mesmo tempo em que se promove um equilíbrio entre a necessidade de resposta ao crime e o fortalecimento do tecido social. Portanto, a Justiça Restaurativa apresenta-se como ferramenta promissora para a evolução do sistema penal brasileiro, de modo a convidar juristas, legisladores e a sociedade a refletirem sobre novas formas de construir uma justiça verdadeiramente humana e solidária, a partir da revisão do desenho institucional vigente.

[1] Pacelli, 2024, p. 596.

[2] Nucci, 2007, p. 667.

[3]  Pacelli, 2024, p. 597. 

[4] Silva, 2024, p. 40. 

[5]  Carnelutti, 2001, p. 78.

[*] Graduando do 10° semestre da Faculdade de Direito da UnB, membro da área de Pesquisa Jurídica do Veredicto Simulações, Pesquisa e Extensão. Tecnólogo em Investigação Forense e Perícia Criminal e Estagiário de Direito no Escritório Mauro Menezes & Advogados. E-mail de contato: enzzo2002@gmail.com.

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0 comentários

Antônio Viterbo 4 de junho de 2025 - 00:36

Bom conteúdo.

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