Escrito por Vinícius Amaral Vieira [*]
Durante o primeiro semestre de 2025 muito tem se falado sobre a responsabilidade das big techs no que se refere ao controle dos conteúdos veiculados e baseados em sua rede. O debate, sempre acalorado, ocorre nas conversas do dia a dia e em diversas plataformas, trazendo, com frequência, questões relacionadas à liberdade de expressão e a possibilidade de retorno a políticas sombrias e asquerosas de censura.
Para dar concretude, cito um caso que ficou famoso no Brasil quanto a esse tema. O Caso Aliandra descreve uma trama em que a Professora Aliandra, ao tempo em que lecionava em uma escola de Belo Horizonte, deparou-se com comentários avaliados como ofensivos em uma comunidade da rede social Orkut, hoje extinta. O quadro ocorreu em 2009, já em 2010 a Professora Aliandra abriu um processo contra o Google, que detinha o Orkut.
A rede social Orkut tinha como característica a possibilidade de criar grupos/comunidades para discussão de tópicos comuns aos membros. Aliandra, certo dia, viu-se defronte à comunidade “Eu Odeio a Aliandra”, que tinha como membros alunos e ex-alunos usando do espaço para a ofender.
O caso, em síntese, teve o seguinte fluxo: (i) ela solicitou extrajudicialmente que o Google retirasse do ar o objeto questionado, mas teve o pedido negado em vista de a plataforma não o considerar ofensivo; em seguida, (ii) Aliandra extremou a questão na justiça mineira pedindo pela remoção do conteúdo e indenização por danos morais.
Para evidenciar o impacto desse caso, a temática chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ganhou ainda mais holofote, podendo-se citar a Repercussão Geral evidenciada no Tema 533[1] e no Tema 987[2].
Por relatoria do Min. Luiz Fux, o mérito do leading case (RE 1037396), com repercussão geral, foi julgado em 27/06/2025 reconhecendo que, a fim de preservar e proteger direitos fundamentais, há que se reconhecer a possibilidade de remoção de conteúdos por via de comunicação extrajudicial, porém em caso de afronta à honra ainda deve ser dada a aplicação da redação prevista na lei 12.965/2014, conhecida como Marco Civil da Internet (MCI). Conforme se segue a tese[3]:
“1. O art. 19 da Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), que exige ordem judicial específica para a responsabilização civil de provedor de aplicações de internet por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros, é parcialmente inconstitucional. Há um estado de omissão parcial que decorre do fato de que a regra geral do art. 19 não confere proteção suficiente a bens jurídicos constitucionais de alta relevância (proteção de direitos fundamentais e da democracia)
[…]
3.1. Nas hipóteses de crime contra a honra aplica-se o art. 19 do MCI, sem prejuízo da possibilidade de remoção por notificação extrajudicial. 3.2. Em se tratando de sucessivas replicações do fato ofensivo já reconhecido por decisão judicial, todos os provedores de redes sociais deverão remover as publicações com idênticos conteúdos, independentemente de novas decisões judiciais, a partir de notificação judicial ou extrajudicial. Presunção de responsabilidade. […]”
O Supremo Tribunal Federal, em junho de 2025, reconheceu, assim, por maioria dos votos, aqui em 8 a 3, quanto à inconstitucionalidade parcial do art. 19 do MCI.
Não é de se questionar do espaço fértil que a internet fornece para possibilidades de manifestações individuais e também para a prática dos mais diversos crimes. Como ficou decidido no RE 1097396, o provedor é diretamente responsável quando não proceder à indisponibilização imediata de conteúdos que configurem as práticas de crimes graves[4]. A ideia central é que o provedor detém um dever de cuidado em grau acentuado de sorte que a não adoção de medidas para a remoção e prevenção de conteúdos criminosos enseja a sua responsabilidade.
Ainda assim, subsistem ainda questões quanto aos inconvenientes que afetam a honra, usualmente publicações em perfis destinados a fofocas ou meios jornalísticos. Desse modo, ainda há espaço para discussão acerca de perfis que tratam da vida de celebridades e subcelebridades, por vezes espalhando mentiras sem comprometimento, mas por vezes também eventualmente escancaram aspectos da vida comum e do interesse social, tal qual notícias que vazam crimes de corrupção antes do trânsito em julgado do investigado.
Nesse sentido, é importante destacar que o judiciário não deve ser câmara adequada à polícia moral da sociedade, é da natureza humana formar grupos segmentados e conversarem entre si, mesmo que para ofender a terceiros[5] [6]. Se a regulação é necessária, são os representantes do povo democraticamente eleitos que devem tratar do caso.
É difícil equacionar o impacto pessoal que um grupo online destinado a falar mal de terceiro tem sobre a vida do ofendido da mesma forma que o seria caso as ofensas fossem feitas presencialmente em uma sala, por exemplo. Porém, o caso foi judicializado por vazar informações, a priori, privadas. Essa é uma barreira ainda a ser superada, e deve ser superada com urgência, senão o império dos ofendidos vai acabar por desnaturar a própria internet no Brasil e será o prenúncio da descaracterização de plataformas que utilizam criptografia ponta a ponta a fim de evitar qualquer quebra.
Ainda, importa citar que há decisão que reconhece, por exemplo, que se o participante do chat vazar alguma informação ela é tida por válida[7], mas não podemos deixar de aventar a possibilidade de a pessoa ofendida ter acesso ao canal de comunicação de maneira a ter passe ao conteúdo. Nesse cenário, a pessoa teria vista de mensagens privadas que eventualmente poderiam a levar a entender que afetam a sua honra, sem sequer ter sido convidada e aceita por todos os membros. Nesse tipo de hipótese ainda não está claro a compreensão pela existência, ou não, de licitude da prova.
O paradigma por enquanto se mantém à ideia original, a decisão no RE 1097396 analisada é explícita ao reconhecer que nos casos de crime contra a honra ainda será aplicada a redação do art. 19 do MCI, no sentido de que a plataforma será responsabilizada civilmente por danos gerados a pessoa que se queixa, decorrente de conteúdos “fabricados” por terceiros, se não indisponibilizar o conteúdo após ordem judicial específica. No entanto, ainda será cabível, tal qual fez a Professora Aliandra, uma notificação extrajudicial para a retirada do conteúdo ofensivo.
A questão já teve um paralelo no Superior Tribunal de Justiça (STJ). O Recurso Especial nº 1.193.764/SP[8], de Relatoria da Min. Nancy Andrighi já vinculava um preceito importante para responsabilizar a plataforma e também o de identificar com melhor exatidão o produtor daquele conteúdo digital. Em síntese, a Relatora apontava a necessidade pela rápida atuação das plataformas, no sentido de remover o conteúdo, ao ser identificado e comunicado a respeito de algum conteúdo ilicitamente divulgado:
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- Ao ser comunicado de que determinado texto ou imagem possui conteúdo ilícito, deve o provedor agir de forma enérgica, retirando o material do ar imediatamente, sob pena de responder solidariamente com o autor direto do dano, em virtude da omissão praticada.
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E vai além ao trazer uma possibilidade/responsabilidade para a identificação de infratores no uso desses canais de comunicação, v.g., vincular a conta a um CPF:
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- Ao oferecer um serviço por meio do qual se possibilita que os usuários externem livremente sua opinião, deve o provedor de conteúdo ter o cuidado de propiciar meios para que se possa identificar cada um desses usuários, coibindo o anonimato e atribuindo a cada manifestação uma autoria certa e determinada. Sob a ótica da diligência média que se espera do provedor, deve este adotar as providências que, conforme as circunstâncias específicas de cada caso, estiverem ao seu alcance para a individualização dos usuários do site, sob pena de responsabilização subjetiva por culpa in omittendo.
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O Caso Aliandra retrata uma situação que ainda vai gerar intensos debates. Na origem, a questão é a defesa da honra, no fim, a decisão se estendeu para pontos não vislumbrados anteriormente (direitos fundamentais diversos). De que forma isso será modulado, respeitado, desenvolvido, é difícil dizer. Porém, é possível identificar um passo, o que pode ser visto por alguns como a regulação da terra sem lei, por outros tem sido visto como a construção de um local rico em simular a realidade fática dos ofendidos por escanteio.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.193.764/SP. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?termo=REsp1.193.764+&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&chkordem=DESC&chkMorto=MORTO. Acesso em: 15 jul. 2025.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 1.037.396 (Tema 987) e 1.057.258 (Tema 533). Responsabilidade de plataformas digitais por conteúdo de terceiros. STF. Rel. Min. Dias Toffoli (RE 1.037.396). Rel. Min. Luiz Fux (RE 1.057.258). j. 26 jun. 2025. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/Informac807a771oa768SociedadeArt19MCI_vRev.pdf. Acesso em: 15 jul. 2025.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tema 533. Dever de empresa hospedeira de sítio na internet fiscalizar o conteúdo publicado e de retirá-lo do ar quando considerado ofensivo, sem intervenção do Judiciário. Relator: Min. Luiz Fux. Leading Case: RE 1057258. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/tema.asp?num=533. Acesso em: 15 jul. 2025.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tema 987. Discussão sobre a constitucionalidade do art. 19 da lei nº12.965/2014 (Marco civil da internet) que determina a necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para a responsabilização civil do provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros. Relator Min. Dias Toffoli. Leading Case: RE 1037396. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/tema.asp?num=987. Acesso em: 15 jul. 2025
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Ag-AIRR – 10290-35.2020.5.18.0103. Ag-AIRR-10290-35.2020.5.18.0103, 2ª Turma, Relatora Desembargadora Convocada Margareth Rodrigues Costa, DEJT 24/06/2022. Disponível em: https://jurisprudencia-backend2.tst.jus.br/rest/documentos/a0feed44f601ac9061cdfbe6ee6ef730. Acesso em: 15 jul. 2025.
KNIFFIN, K. M.; SLOAN WILSON, D. Evolutionary perspectives on workplace gossip: Why and how gossip can serve groups. Group & organization management, v. 35, n. 2, p. 150–176, 2010.
MARTUCHI, Rayane Ribas. “Aiiin, Mona, o babado é forte!”: quando a fofoca joga com a verdade, interroga as amizades e produz sexualidades. 2024. 113 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2024. p. 15-16.
SANTIAGO, A. “Eu merecia respeito”: a luta da professora com o Google que chegou ao STF. Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2023/03/28/google-x-aliandra-audiencia-stf.htm. Acesso em: 15 jul. 2025.
[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tema 533. Dever de empresa hospedeira de sítio na internet fiscalizar o conteúdo publicado e de retirá-lo do ar quando considerado ofensivo, sem intervenção do Judiciário. Relator: Min. Luiz Fux. Leading Case: RE 1057258. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/tema.asp?num=533. Acesso em: 15 jul. 2025
[2] BRASIL. Superior Tribunal Federal. Tema 987. Discussão sobre a constitucionalidade do art. 19 da lei nº12.965/2014 (Marco civil da internet) que determina a necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para a responsabilização civil do provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros. Relator Min. Dias Toffoli. Leading Case: RE 1037396. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/tema.asp?num=987. Acesso em: 15 jul. 2025.
[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 1.037.396 (Tema 987) e 1.057.258 (Tema 533). Responsabilidade de plataformas digitais por conteúdo de terceiros. STF. Rel. Min. Dias Toffoli (RE 1.037.396). Rel. Min. Luiz Fux (RE 1.057.258). j. 26 jun. 2025. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/Informac807a771oa768SociedadeArt19MCI_vRev.p df. Acesso em: 15 jul. 2025.
[4] 4 Ibid, “5. O provedor de aplicações de internet é responsável quando não promover a indisponibilização imediata de conteúdos que configurem as práticas de crimes graves previstas no seguinte rol taxativo: (a) condutas e atos antidemocráticos que se amoldem aos tipos previstos nos artigos 286, parágrafo único, 359-L, 359- M, 359-N, 359-P e 359-R do Código Penal; (b) crimes de terrorismo ou preparatórios de terrorismo, tipificados pela Lei nº 13.260/2016; (c) crimes de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação, nos termos do art. 122 do Código Penal; (d) incitação à discriminação em razão de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, sexualidade ou identidade de gênero (condutas homofóbicas e transfóbicas), passível de enquadramento nos arts. 20, 20-A, 20-B e 20-C da Lei nº 7.716, de 1989; (e) crimes praticados contra a mulher em razão da condição do sexo feminino, inclusive conteúdos que propagam ódio às mulheres (Lei nº 11.340/06; Lei nº 10.446/02; Lei nº 14.192/21; CP, art. 141, § 3º; art. 146-A; art. 147, § 1º; art. 147-A; e art. 147-B do CP); (f) crimes sexuais contra pessoas vulneráveis, pornografia infantil e crimes graves contra crianças e adolescentes, nos termos dos arts. 217-A, 218, 218-A, 218-B, 218-C, do Código Penal e dos arts. 240, 241-A, 241- C, 241-D do Estatuto da Criança e do Adolescente; g) tráfico de pessoas (CP, art. 149-A)”.
[5] KNIFFIN, K. M.; SLOAN WILSON, D. Evolutionary perspectives on workplace gossip: Why and how gossip can serve groups. Group & organization management, v. 35, n. 2, p. 150–176, 2010.
[6] MARTUCHI, Rayane Ribas. “Aiiin, Mona, o babado é forte!”: quando a fofoca joga com a verdade, interroga as amizades e produz sexualidades. 2024. 113 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2024. p. 15-16.
[7] BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Ag-AIRR – 10290-35.2020.5.18.0103. Ag-AIRR-10290-35.2020.5.18.0103, 2ª Turma, Relatora Desembargadora Convocada Margareth Rodrigues Costa, DEJT 24/06/2022. Disponível em: https://jurisprudencia-backend2.tst.jus.br/rest/documentos/a0feed44f601ac9061cdfbe6ee6ef730. Acesso em: 15 jul. 2025.
[8] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.193.764/SP. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?termo=REsp1.193.764+&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&chkordem=DESC&chkMorto=MORTO. Acesso em: 15 jul. 2025.
[*] Graduando do 6° semestre da Faculdade de Direito na Universidade de Brasília (FD/UnB) e integrante do CoDiTech/UnB. E-mail de contato: viniciusamaralestudos@gmail.com.