Escrito por Mikaely Vitoria Avelino Sena [*]
Este ensaio objetiva identificar incoerências ou extrapolações da jurisdição, com o intuito de apontar para limites da jurisdição que, aparentemente, não estão sendo estritamente observados. No caso concreto que fundamenta este artigo[i][ii], que se encontra sob segredo de justiça por se tratar de curatela de pessoa com deficiência e envolver pessoa menor de idade, observa-se decisão judicial proferida de forma extra petita, ao remover a guarda de uma criança de uma pessoa curatelada sem que isso tenha sido objeto de pedido na inicial. Isso fere diretamente os direitos consagrados no Estatuto da Pessoa com Deficiência, especialmente no que tange ao exercício da guarda e à autodeterminação da pessoa com deficiência.
Por sua vez, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem afastado a alegação de violação ao princípio da congruência (art. 492, CPC[iii]) quando a sentença se baseia em um raciocínio lógico-sistemático, mesmo que aborde pedidos não formulados de maneira expressa pela parte autora, como se verifica na decisão do STJ no REsp 1587128/MG[iv]. Entretanto, esse entendimento permite decisões judiciais que ultrapassam os limites da lide, refletindo discriminações veladas no exercício da jurisdição.
Em uma sociedade em que as pessoas com deficiência ainda lutam por inclusão social e pela efetivação de sua dignidade, permitir interpretações judiciais que extrapolam os limites dos pedidos formulados pode comprometer seriamente a segurança jurídica e enfraquecer os avanços garantidos pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência. Esse diploma legal estabelece, de forma inequívoca, que a deficiência não afeta a capacidade civil, de acordo com seu artigo 6°[v], caput, e em seus incisos, assegurando a essas pessoas o direito de se casar, constituir união estável, decidir sobre seu corpo, manter relações sexuais, engravidar e planejar a constituição de uma família.
Dessa forma, pode-se identificar a presença de uma discriminação velada no âmbito do Judiciário brasileiro, evidenciada pela ausência, nas pesquisas realizadas para este artigo, de decisões que concedam a guarda de crianças a pessoas com deficiência. Em casos nos quais esse direito já havia sido reconhecido, verificou-se, inclusive, sua posterior retirada, em descompasso com as garantias previstas no Estatuto da Pessoa com Deficiência. Tal cenário revela um padrão preocupante, no qual o próprio Poder Judiciário contribui, em larga escala, para a não efetivação dos direitos das pessoas com deficiência, perpetuando estigmas e negando-lhes a plena cidadania assegurada em lei.
- A capacidade civil sob a perspectiva da LBI
A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), dispõe em seu artigo 6º que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa para o exercício de direitos fundamentais, inclusive aqueles relacionados à constituição de família, reprodução, guarda e convivência. Tal previsão representa um avanço significativo, pois rompe com a visão tradicional da deficiência como sinônimo de incapacidade. A abordagem adotada baseia-se no modelo social que prioriza a inclusão e a acessibilidade.
Essa norma encontra fundamento na Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência[vi], que possui status constitucional no ordenamento jurídico brasileiro. Assim, confere ainda mais força ao reconhecimento da capacidade civil plena das pessoas com deficiência. Ademais, o Estatuto delimita a curatela como uma medida excepcional, aplicada exclusivamente no âmbito patrimonial e negocial, nos termos do artigo 84, §1º.
Dessa forma, decisões judiciais que, com base em um “raciocínio lógico-sistemático”, presumem a inaptidão da pessoa com deficiência para o exercício da guarda, violam frontalmente os avanços legislativos conquistados, além de violar claramente o princípio da adstrição, que com a jurisprudência atual não possui abrangência caso trate de minorias sociais em decisões que as afetam diretamente. Tais decisões reproduzem estigmas e afastam o dever do Estado de assegurar igualdade[vii] de condições no exercício de direitos civis e familiares.
- O princípio da congruência e a segurança jurídica
À luz do caso concreto analisado neste artigo, evidencia-se como a violação ao princípio da congruência, previsto no artigo 492 do Código de Processo Civil, pode gerar impactos negativos significativos na vida do jurisdicionado, especialmente quando este se encontra em situação de vulnerabilidade. Tal princípio assegura não apenas o dever do magistrado de decidir nos limites dos pedidos formulados pelas partes, mas também orienta a previsibilidade do processo e reforça a segurança jurídica, esta última, inclusive, com respaldo constitucional, mesmo que de forma implícita.
Dessa forma, quando esse princípio é desrespeitado, sobretudo em se tratando de grupos historicamente vulnerabilizados, como as pessoas com deficiência, tornam-se evidentes os prejuízos decorrentes de decisões que, em vez de proteger direitos fundamentais, acabam por aprofundar desigualdades e violações.
Com isso, fica claro que a efetivação dos direitos das pessoas com deficiência, especialmente no que se refere à convivência familiar e ao exercício da guarda, depende da atuação integrada e harmônica dos três poderes. Embora a Administração Pública tenha o dever constitucional de promover e implementar políticas públicas voltadas à concretização da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, estabelecida pelo Poder Legislativo, o Poder Judiciário também exerce papel essencial na efetivação desses direitos. Seu papel vai além da simples aplicação das leis, devendo firmar-se como instância de proteção contra retrocessos, assegurando que a deficiência não seja considerada impedimento ao pleno exercício da cidadania.
Infelizmente, essa atuação garantidora nem sempre é observada. Por dois motivos principais, verifica-se uma lacuna preocupante. Primeiro, ao realizar pesquisas em tribunais brasileiros, nota-se a ausência de decisões que assegurem de forma clara o direito à guarda por pessoas com deficiência ou curateladas. Quando existem decisões sobre o tema, geralmente se fundamentam no “melhor interesse da criança”. Esse princípio é consagrado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Porém, embora legítimo, pode funcionar como uma forma velada de discriminação institucionalizada.
Além disso, mesmo nos casos em que a guarda já havia sido previamente concedida à pessoa com deficiência, constata-se a posterior retirada desse direito com base em um suposto “raciocínio lógico-sistemático”, sem respaldo em fatos concretos que indiquem risco à criança. Como se observa, tal fundamentação ignora os avanços legislativos e internacionais voltados à promoção da igualdade e da não discriminação.
Diante disso, torna-se evidente a insegurança jurídica gerada por decisões judiciais que extrapolam os limites legais e processuais, comprometendo não apenas os direitos das partes diretamente envolvidas na lide, mas também a confiança nas instituições judiciais como garantidoras da ordem jurídica e da dignidade da pessoa humana. Em uma perspectiva mais ampla, essas decisões reforçam estigmas e alimentam a equivocada ideia de que pessoas com deficiência são incapazes de exercer funções parentais ou de manter relações familiares saudáveis.
- Considerações finais
A análise do caso concreto que fundamenta este artigo evidencia como decisões judiciais que violam o princípio da congruência, especialmente em processos envolvendo pessoas com deficiência submetidas à curatela, podem comprometer gravemente a efetivação de direitos fundamentais.
Apesar de avanços legislativos significativos, como a promulgação da Lei Brasileira de Inclusão e a incorporação da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência ao ordenamento jurídico brasileiro, ainda se observam práticas judiciais que perpetuam estigmas históricos e reproduzem visões capacitistas. A curatela, como medida excepcional e restrita ao âmbito patrimonial e negocial, não pode ser utilizada como fundamento para presumir a inaptidão da pessoa com deficiência ao exercício da guarda.
É dever do Poder Judiciário, enquanto garantidor dos direitos fundamentais, zelar pela integridade do processo e pela igualdade material entre os jurisdicionados, especialmente aqueles pertencentes a grupos socialmente vulnerabilizados. A adoção de raciocínios genéricos, sob a justificativa do “melhor interesse da criança”[viii], sem análise concreta das capacidades e vínculos afetivos da pessoa com deficiência, revela-se incompatível com os princípios constitucionais e convencionais que regem o ordenamento jurídico.
Conclui-se, portanto, que a deficiência, por si só, não pode ser tratada como impedimento à parentalidade ou à convivência familiar, e cabe ao Judiciário o papel de garantir que a igualdade de direitos se efetive na prática, sem retrocessos ou discriminações veladas.
Referências bibliográficas
BRASIL. Código de Processo Civil. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 14 jul. 2025.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 14 jul. 2025.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 20 jul. 2025.
BRASIL. Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015. 2015a. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 14 jul. 2025.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1587128/MG. Relator: Ministro Luís Felipe Salomão. Quarta Turma. Julgado em 30 mar. 2020. Diário da Justiça Eletrônico, 2 abr. 2020.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Processo judicial n° XXXX/XXXX (sob segredo de justiça). Ação de curatela, Vara de Família e de Órfãos e Sucessões do Guará, 2025
ONU. Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. Nova York, 2006. Promulgada no Brasil pelo Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de 2009. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm. Acesso em: 14 jul. 2025
[i] BRASIL, 2025.
[ii] O caso encontra-se sob segredo de justiça no âmbito da jurisdição do TJDFT.
[iii] BRASIL, 2015.
[iv] BRASIL, 2020.
[v] BRASIL, 2015a.
[vi] ONU, 2006.
[vii] BRASIL, 1988.
[viii] BRASIL, 1990.
[*] Graduanda do 7o semestre em Direito na Universidade de Brasília. Membro do Veredicto – Simulações, Pesquisa e Extensão. Estagiária no Escritório Fontes de Resende Advocacia. E-mail de contato: Mikaelyvasena@gmail.com.

