Escrito por Rafaela Lima de Siqueira [*]
A democracia brasileira se encontra, neste início do século XXI, em um momento de tensão estrutural constante, que transcende as fronteiras institucionais e alcança a própria base cultural e histórica da sociedade. A ascensão de discursos que questionam o Estado Democrático de Direito, inclusive com apelos à intervenção militar e tentativas de rupturas institucionais, exige reflexão crítica sobre os mecanismos disponíveis para a proteção da ordem constitucional de 1988.
Este mini artigo propõe refletir sobre a necessidade de uma postura ativa e firme da democracia diante de ameaças institucionais. Para isso, faz-se necessário retomar o conceito de “democracia militante”, proposto por Karl Loewenstein[i], uma vez que defende que regimes democráticos devem dispor de instrumentos legais para se proteger de ameaças e movimentos que buscam desestabilizá-los por dentro. A partir dessa perspectiva, discute-se a necessidade de respostas institucionais proporcionais, firmes e jurídicas diante de ameaças democráticas.
Para Loewenstein[ii], o fascismo é uma técnica política e eficaz, desprovida de ideologia coerente, porém dotada de um aparato de manipulação emocional e apelo simbólico. Tal abordagem, frequentemente descolada de programas racionais, recorre à propaganda intensa, à personalização da política e à erosão gradual das normas e práticas democráticas.
A democracia, em contrapartida, é estruturada de valores racionais e tolerância institucional. Isso a torna, paradoxalmente, ineficaz na mobilização emocional e, consequentemente, vulnerável. A experiência histórica citada em seu texto evidencia que respostas meramente legalistas e tolerantes diante de manifestações autoritárias podem comprometer a resiliência democrática. Isto posto, o autor defende a adoção de mecanismos jurídicos e institucionais que restrinjam o uso da própria liberdade para corroer os fundamentos do regime democrático.
A democracia brasileira oferece exemplos importantes de como determinadas fragilidades institucionais podem dificultar a consolidação democrática. Em 1988, a promulgação da Constituição representou um marco fundamental na transição para o Estado Democrático de Direito. Porém, essa passagem ocorreu de forma branda, sem a adoção de políticas mais incisivas de justiça de transição, como a responsabilização por violações de direitos humanos nos crimes cometidos durante o regime militar.
Estudos como os de Acunha, Arafa e Benvindo[iii] apontam que essa lacuna contribui para a persistência de práticas autoritárias em diferentes esferas do Estado. A emergência de lideranças com discursos contrários ao regime democrático evidencia como determinadas narrativas permanecem ativas no imaginário político nacional. A ausência de consenso em torno da legitimidade do regime democrático demonstra a necessidade de fortalecer a cultura constitucional e o compromisso institucional com a democracia.
No entanto, esse desafio institucional e político, segundo Darcy Ribeiro[iv], está enraizado em aspectos profundos da formação histórica e social do Brasil. Conforme argumenta o autor em sua obra “O Povo Brasileiro”, o país teve sua estrutura social construída sobre a violência, a exclusão e a desigualdade e foi originado de uma colônia de exploração. Para ele, “a classe dominante brasileira jamais teve projeto de nação; sempre teve projeto de poder”[v]. Essa constatação evidencia a dificuldade entre interseccionar o compromisso com a democracia e os interesses que, por vezes, não se alinham à construção de uma cidadania participativa.
Por conta desse passado enraizado, o Brasil manteve vivas as condições sociais e simbólicas que permitem o reaparecimento de discursos autoritários, especialmente em momentos de instabilidade e insatisfação popular. O autor reforça que as estruturas herdadas do período colonial são marcadas por profundas assimetrias de poder, o que dificulta a universalização da democracia como valor compartilhado.
Por sua vez, Loewenstein[vi] defende a construção de salvaguardas proporcionais que preservem a ordem democrática. O papel ativo da democracia envolve, por exemplo, a responsabilização de condutas que atentem contra o funcionamento das instituições e a revisão de práticas institucionais que reproduzem lógicas autoritárias. Por esse viés, a ideia de uma democracia militante não significa intolerância à crítica ou à oposição política legítima. Trata-se, primariamente, de reconhecer que a permanência da democracia implica adoção de medidas preventivas e corretivas contra práticas que visem a sua destruição.
Darcy Ribeiro[vii], nesse debate, mostra que a democracia, para ser duradoura no Brasil, precisa ir além da institucionalidade formal. É necessário um esforço cultural e educacional que alcance o imaginário popular, reconhecendo a diversidade do povo brasileiro como base de um projeto democrático genuíno. Como afirma, “a democracia só será plena quando o povo brasileiro puder sentir-se dono de si, senhor de sua vida, partícipe do destino comum”[viii].
Além disso, como já salientou o autor, a consolidação de um projeto democrático no Brasil passa necessariamente pela valorização de sua história social e pela formação de uma cidadania ativa, informada e plural. A democracia, mais que um regime jurídico, é um processo de construção cultural permanente.
Considerações finais
Diante do exposto, a experiência internacional mostra que o desgaste democrático nem sempre ocorreu por meio de golpes abruptos, mas por processos graduais e legais, em que os próprios mecanismos internos do sistema político são utilizados para esvaziar suas próprias bases.
A defesa da democracia, portanto, deve ser compreendida como prática cotidiana de manutenção de um ambiente político plural e comprometido com os direitos fundamentais. Como se procurou enfatizar, o conceito de democracia militante propõe uma reflexão pertinente: a democracia deve dispor de meios legítimos para assegurar sua continuidade e estabilidade, sem com isso abandonar os princípios que a fundamentam. Dessa forma, os riscos de ruptura institucional podem ser efetivamente mitigados, preservando-se a democracia.
Referências Bibliográficas
ACUNHA, Fernando J. G.; ARAFA, Mohamed A.; BENVINDO, Juliano Z. The Brazilian Constitution of 1988 and its Ancient Ghosts: Comparison, History and the Ever-Present Need to Fight Authoritarianism. Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, v. 5, n. 3, p. 17–41, 2018. DOI: 10.5380/rinc.v5i3.60962.
LOEWENSTEIN, Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights, II. The American Political Science Review, vol. 31, no. 4, 1937.
LOEWENSTEIN, Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights, I. The American Political Science Review, vol. 31, no. 3, 1937.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
[i] Loewenstein, 1937.
[ii] Loewenstein, 1937.
[iii] Acunha; Arafa; Benvindo, 2018.
[iv] Ribeiro, 1995.
[v] Ribeiro, 1995, p. 118.
[vi] Loewenstein, 1937.
[vii] Ribeiro, 1995.
[viii] Ribeiro, 1995, p. 325.
[*] Graduanda em Direito na Universidade de Brasília. Membra da área de Pesquisa Jurídica do Veredicto – Simulações, Pesquisa e Extensão. E-mail de contato: Isiqueirarafaela@gmail.com.

