Escrito por Caio Figueiredo Diniz [*]
O princípio da competência-competência (kompetenz-kompetenz) estabelece, em síntese, que o juízo arbitral tem a competência (jurisdição) para decidir sobre sua competência. Ou seja, uma vez que surja alegação a respeito de eventual inexistência, finalidade, ou ineficácia da convenção de arbitragem, esse conflito deve ser submetido, em primeiro lugar, ao tribunal arbitral.
Tem-se, assim, uma questão de ordem, em que é incumbida ao tribunal arbitral a primeira palavra sobre eventual alegação de incompetência do juízo, por mais que, em muitos modelos, ainda caiba a palavra final ao poder judiciário, em eventual alegação em sede de ação anulatória.[1]
Princípio é recepcionado no direito brasileiro pelo art. 8º, parágrafo único, da LArb (Lei 9.307 de 23 de setembro de 1996 [2]), sendo reforçado, ademais, pela previsão do art. 485, VII, do Código de Processo Civil [3]. Sua aplicação é reconhecida e pode ser visualizada com frequência pelo Judiciário brasileiro. Nas palavras da excelentíssima Ministra Nancy Andrighi, o princípio “atribui ao árbitro ou tribunal arbitral – e somente a eles – a prerrogativa para decidir acerca de sua própria competência. Considerando a aplicação de tal princípio, para que não seja inoportuna ou indevida a interferência do Poder Judiciário, deve-se respeitar a precedência temporal da decisão arbitral e, somente após, realizar o adequado controle pela via judicial.” [4]
Nessa linha, caso seja arguido eventual vício de cláusula arbitral perante o Poder Judiciário, este deve se atentar pela presença anterior de manifestação do juízo arbitral. Caso não a verifique, aquele deve reconhecer sua incompetência para julgar a questão, até que o tribunal arbitral se pronuncie sobre aquela matéria.
O Princípio da competência-competência possui aspectos positivo e negativo, que não se confundem com os aspectos da convenção de arbitragem, uma vez que estes dizem respeito a elucidar a quem cabe o julgamento de mérito da causa, enquanto aqueles buscam responder quem deve responder sobre a jurisdição dos árbitros [5].
O aspecto positivo diz respeito à competência do árbitro para decidir sobre sua jurisdição. Ou seja, aqui se está sob análise do princípio no aspecto de que, nas palavras de Carlos Alberto Carmona, confere “competência ao árbitro para decidir sobre sua própria competência, resolvendo as impugnações que surjam acerca de sua capacidade de julgar, da extensão de seus poderes, da arbitrabilidade da controvérsia, enfim, avaliando a eficácia e a extensão dos poderes que as partes lhe conferiram” [6].
Para além de sua adoção doutrinária, pode-se apontar como fundamento legislativo o já mencionado parágrafo único do art. 8º da LArb, ,em conjunto com o art. 20 da mesma lei [7]. Ainda, constata-se, a aplicação desse aspecto é pacífica, inclusive, no entendimento do Superior Tribunal de Justiça – STJ [8].
O aspecto negativo, por sua vez, dispõe sobre a impossibilidade de análise quanto à jurisdição arbitral pelo Judiciário em momento anterior à disposição arbitral sobre o tema. Esse aspecto implica dizer que, nas palavras de Pedro A. Batista Martins, “é o árbitro o primeiro juiz a dizer sobre sua jurisdição”. Nessa linha, o efeito negativo “afasta, de plano, qualquer intervenção judicial que se pretenda para dirimir as questões acerca da existência, validade ou eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que estiver contemplada” [9].
Cabe dizer que, com o advento do Código de Processo Civil de 2015, esse aspecto ganhou previsão expressa na lei. Isso pois a referida norma, em seu art. 485, VI, elenca entre as causas de extinção do processo sem resolução de mérito o acolhimento de alegação de convenção de arbitragem, deferindo ao juízo arbitral o reconhecimento de sua competência [10].
Não obstante seu caráter basilar na arbitragem internacional, o princípio da competência-competência comporta relativização em casos específicos, especificamente com relação a seu aspecto negativo. Em primeiro lugar, extrai-se da Convenção de Nova York que “O tribunal de um Estado signatário, quando de posse de ação sobre matéria com relação à qual as partes tenham estabelecido acordo nos termos do presente artigo a pedido de uma delas, encaminhará as partes à arbitragem, a menos que constate que tal acordo é nulo e sem efeitos, inoperante ou inexequível” [11].
Nessa linha, cabe lembrar que a convenção de Nova York veio a ser recepcionada pela legislação brasileira a partir do. Decreto nº 4.311, de 6 de julho de 2002 [12].
A carta modelo da UNCITRAL também guardou disposição no mesmo sentido, mais especificamente seu art. 8(1), prevendo que as cortes estatais devem submeter ao tribunal questão alegadamente sujeita a arbitragem, exceto quando perceba que a convenção é nula, inválida, inoperante e incapaz de ser performada. Confira-se, na íntegra:
Article 8. Arbitration agreement and substantive claim before court
(1) A court before which an action is brought in a matter which is the subject of an arbitration agreement shall, if a party so requests not later than when submitting his first statement on the substance of the dispute, refer the parties to arbitration unless it finds that the agreement is null and void, inoperative or incapable of being performed [13].
Nesse sentido, é importante ressaltar que sua aplicação possui distinções a depender do sistema adotado em cada jurisdição. Enquanto, por um lado, os sistemas de Civil Law, via de regra, conferem amplos poderes ao árbitro para dispor sobre sua competência, os países do Common law, por outro lado, abrem espaço para que a decisão do árbitro seja levada em conta, apesar de que essa pode ser anulada pelo juiz togado [14].
Mais exemplificadamente, na legislação holandesa, assim como na belga, as partes podem submeter a questão ao Judiciário antes mesmo da submissão ao direito arbitral. O Sistema francês, por outro lado, declarou a incapacidade absoluta do poder Judiciário para analisar eventual questão sobre a existência ou validade da convenção de arbitragem, abrindo espaço, apenas, para a análise quanto à manifesta nulidade da convenção arbitral [15].
No Brasil, conforme já mencionado, o princípio da competência-competência foi consagrado na lei de arbitragem de 1996, em conjunto ao princípio da autonomia da cláusula arbitral, em seu art. 8º, sendo ambos pilares da autonomia do juízo arbitral. O Art. 8º da referida norma, [16] ao tratar sobre a independência da cláusula arbitral em relação ao contrato principal, dispôs, em seu parágrafo único, sobre a competência do árbitro para decidir sobre questões acerca da existência, validade e eficácia da cláusula compromissória. Ademais, o já mencionado art. 485 do CPC consagrou o referido princípio, ao listar o reconhecimento de cláusula arbitral como causa de extinção sem resolução de mérito do processo [17].
O sistema brasileiro, não obstante produza raciocínio semelhante ao francês, no sentido de reconhecer a jurisdição do arbítrio para definir sobre sua própria competência, estabelece caráter relativo a este princípio.
Ou seja, em regra, observada a existência de convenção de arbitragem, o processo será remetido ao juízo arbitral. Entretanto, há situações em que a análise se dará, prima facie, pelo Judiciário.
Inicialmente, observa-se a competência do poder judiciário para proferir decisão quanto a eventual vício da convenção de arbitragem. Nas palavras de Carlos Alberto Carmona: “(..) poderia o juiz togado reconhecer a invalidade de um compromisso arbitral a que falte qualquer de seus requisitos essenciais, ou a impossibilidade de fazer valer uma convenção arbitral que diga respeito à questão de direito indisponível“[18].
Nessa toada, a doutrina reconhece a capacidade do Poder Judiciário de se manifestar sobre convenção arbitral patentemente nula, em uma espécie de cooperação entre o Poder Judiciário e o Tribunal Arbitral. Nas palavras de Maíra de Melo Vieira (2005):
Sob essa perspectiva, pode-se afirmar que se está em presença de situação similar (muito embora distinta) à análise prima facie da convenção de arbitragem (que pode se dar pelo Poder Judiciário ou pela instituição administradora do procedimento arbitral, conforme o caso). Esta também pode levar, em alguns casos, se não à inaplicabilidade, pelo menos à modulação do princípio competência-competência, quando reste absolutamente evidente e inequívoca, ainda que mediante mera análise perfunctória (“prima facie”), a inexistência, invalidade ou ineficácia da convenção de arbitragem no caso concreto [19].
Todavia, há de se ressalvar que a relativização do princípio da competência-competência possui caráter excepcional, uma vez que se trata, em conjunto com a autonomia da cláusula arbitral, de uma das pedras de toque da autonomia do juízo arbitral em todo mundo.
Ainda, relevante ressaltar a particularidade brasileira quanto aos contratos de adesão, aos quais a lei de arbitragem faz ressalva explícita (parágrafo segundo), ao tratar da convenção de arbitragem, em seu art. 4º:
Art. 4º A cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato.
(…)
§ 2º Nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula.
Nesses casos, a jurisprudência pátria tem aceitado a análise de plano, pelo Poder Judiciário, sem a prévia análise da questão por tribunal arbitral constituído. Neste sentido:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. CONTRATO DE FRANQUIA. CONTRATO DE ADESÃO. ARBITRAGEM. REQUISITO DE VALIDADE DO ART. 4º, § 2º, DA LEI 9.307/96. DESCUMPRIMENTO. RECONHECIMENTO PRIMA FACIE DE CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA “PATOLÓGICA”. ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. POSSIBILIDADE. NULIDADE RECONHECIDA. RECURSO PROVIDO.
1. Recurso especial interposto em 7/4/2015 e redistribuído a este gabinete em 25/8/2016.
2. O contrato de franquia, por sua natureza, não está sujeito às regras protetivas previstas no CDC, pois não há relação de consumo, mas de fomento econômico.
3. Todos os contratos de adesão, mesmo aqueles que não consubstanciam relações de consumo, como os contratos de franquia, devem observar o disposto no art. 4º, § 2º, da Lei 9.307/96.
4. O Poder Judiciário pode, nos casos em que prima facie é identificado um compromisso arbitral “patológico”, i.e., claramente ilegal, declarar a nulidade dessa cláusula, independentemente do estado em que se encontre o procedimento arbitral.
5. Recurso especial conhecido e provido [20].
Nesse contexto, pode-se ver que o princípio da competência-competência possui aplicações em diversos sistemas jurídicos ao redor do mundo, sendo uma das pedras de toque da arbitragem internacional, observadas diferenças pontuais a partir do sistema jurídico adotado.
Nessa linha, verifica-se ainda sua recepção pelo direito brasileiro, a partir de dispositivos da Lei de Arbitragem, como também do Código de Processo Civil, tanto em seu efeito positivo, de modo a reconhecer a competência do árbitro para decidir sua jurisdição, quanto em seu efeito negativo, afastando a análise do Poder Judiciário antes da análise pelo tribunal arbitral, ressalvadas pontuais exceções.
[1] Monteiro, André Luis. Princípios que Governam a Arbitragem, in Tratado de Arbitragem / coordenado por Sílvio Venosa, Rafael Gagliardi, Caio Tabet. – Indaiatuba, SP : Editora Foco, 2024. P. 122.
[2] BRASIL. Lei 9.307 de 23 de Setembro de 1996. Art. 8º : “(…) Parágrafo único. Caberá ao árbitro decidir de ofício, ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória“.
[3] BRASIL. Lei 13.105 de 16 de Marco de 2015. Art. 485: “O juiz não resolverá o mérito quando: (…) VII – acolher a alegação de existência de convenção de arbitragem ou quando o juízo arbitral reconhecer sua competência“.
[4] REsp 1.614.070-SP, rel. min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 26/6/2018, DJe 29/6/2018.
[5] Monteiro, André Luis. Princípios que Governam a Arbitragem, in Tratado de Arbitragem / coordenado por Sílvio Venosa, Rafael Gagliardi, Caio Tabet. – Indaiatuba, SP : Editora Foco, 2024. p. 123.
[6] CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 175.
[7] BRASIL. Lei 9.307 de 23 de Setembro de 1996. Dispõe sobre a arbitragem. Art. 20. “A parte que pretender arguir questões relativas à competência, suspeição ou impedimento do árbitro ou dos árbitros, bem como nulidade, invalidade ou ineficácia da convenção de arbitragem, deverá fazê-lo na primeira oportunidade que tiver de se manifestar, após a instituição da arbitragem“.
[8] AgInt no REsp n. 1.239.319/SC, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 14/3/2017, DJe de 27/3/2017.: “5. Constata-se que o Tribunal a quo decidiu em consonância com a jurisprudência desta Corte Superior, no sentido de que a constatação de previsão de convenção de arbitragem enseja o reconhecimento da competência do Juízo arbitral, que, com precedência ao Poder Judiciário, deve decidir, nos termos do art. 8º, parágrafo único, da Lei de Arbitragem (Lei 9.307/96), de ofício, ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória. Precedentes”.
[9] MARTINS, Pedro A. Batista. Apontamentos sobre a lei de arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 137.
[10] Lei 13.105 de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. “Art. 485. O juiz não resolverá o mérito quando (…) VII – acolher a alegação de existência de convenção de arbitragem ou quando o juízo arbitral reconhecer sua competência“.
[11] Convenção sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras. Nova York, 1958.
[12] BRASIL. Decreto nº 4.311, de 6 de julho de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 8 jul. 2002; Seção 1: 1-3.
[13] UNCINTRAL Model Law on International Commercial Arbitration. 1985.
[14] Guerrero, Luis Fernando. Convenção de arbitragem e processo arbitral. 4 Ed. São Paulo: Almedina, 2022. p. 159-160.
[15] Guerrero, Luis Fernando. Convenção de arbitragem e processo arbitral. 4 Ed. São Paulo: Almedina, 2022. p. 164.
[16] BRASIL. Lei 9.307 de 23 de Setembro de 1996. Art. 8º : “(…) Parágrafo único. Caberá ao árbitro decidir de ofício, ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória“.
[17] BRASIL. Lei 13.105 de 16 de Marco de 2015. Art. 485: “O juiz não resolverá o mérito quando: (…) VII – acolher a alegação de existência de convenção de arbitragem ou quando o juízo arbitral reconhecer sua competência”.
[18] CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei nº 9.307/96. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009.
[19] Maíra de Melo Vieira. Execução específica de cláusula compromissória vazia e competência-competência: revisitando regras elementares à luz da decisão do STJ no REsp 1.082.498/MT. In Arnoldo Wald (Coord.). Revista de arbitragem e mediação. v. 38, São Paulo: Revista dos Tribunais, jul./set. 2005, p. 374.
[20] REsp n. 1.602.076/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 15/9/2016, DJe de 30/9/2016.
[*] Natural de Belo Horizonte, Minas Gerais. Graduando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, com mobilidade acadêmica ANDIFES na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Membro do projeto de extensão TAX UNB, da Liga Acadêmica de Direito Financeiro e Tributário – LAFT, da UFMG e do Grupo de Estudos em Direito Tributário Internacional no Século XXI – GE TRINTER XXI, também da UFMG.

