O Empoderamento Comunitário no DF

Cultivando a mobilização política com o MTD

por AJUP Roberto Lyra Filho

Escrito por Julia Natour [*] e Mariana Potyguar Mattos [**]

 

Na manhã do dia 27 de junho, o Governo do Distrito Federal empreendeu uma operação de derrubada do Conjunto de Hortas Urbanas localizadas na QR 127, conjunto 4, Samambaia. Apesar de um ato aparentemente banal e comum à administração distrital, para a comunidade local a chegada dos tratores e de agentes de segurança significou uma fratura profunda em anos de trabalho coletivo e cotidiano, mas não a sua ruína.

O Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD) surgiu no contexto de agravamento da crise econômica brasileira no final da década de 1990 e início dos anos 2000, período marcado por desemprego massivo, miséria crescente e desmonte das garantias sociais. Diante da precarização das condições de vida nas periferias urbanas, trabalhadores e trabalhadoras passaram a se organizar coletivamente para reivindicar direitos básicos, como moradia, educação, saúde e trabalho. O MTD nasceu como um movimento social urbano de massas, articulando-se com outras iniciativas como o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)  e a Central Única dos Trabalhadores (CUT), buscando não apenas resistir à exclusão socioeconômica, mas também propor alternativas políticas para a superação da dominação imperialista e da marginalização estrutural da classe trabalhadora.

Com o passar dos anos, o MTD se transformou e ampliou seus horizontes, incorporando um olhar mais atento às questões de gênero e à centralidade das mulheres em sua luta. A mudança do nome do movimento, em 2015, passou a expressar essa nova orientação: de “Movimento dos Trabalhadores Desempregados” para “Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos”. Ao ampliar sua pauta, o MTD reafirma seu compromisso com a construção de um projeto popular que responda às carências das periferias urbanas e propõe, como estratégia concreta de transformação social, a criação de assentamentos urbanos.

Inspirado pela necessidade de garantir moradia, trabalho e dignidade às populações das periferias urbanas, o MTD propôs como estratégia concreta a criação dos assentamentos “rururbanos” (CARDOSO, 2017)[1], isto é, espaços localizados em áreas rurais ou em zonas de transição entre o campo e a cidade, próximos aos centros urbanos. Nesses territórios, o Movimento integra a produção agrícola com a vida urbana, promovendo alternativas reais de sustento, organização comunitária e reintegração social para trabalhadoras e trabalhadores em situação de desemprego ou subemprego. Mais do que uma solução fundiária, os assentamentos “rururbanos” são experiências socioterritoriais que articulam práticas de vida comum, economia solidária, formação política e construção de um projeto coletivo de autonomia. Ao redor das hortas, brotam também locais de convivência, de lazer e de cultura, onde a dignidade da pessoa humana, direito elementar da ordem constitucional, se materializa em sua dimensão coletiva. Assim, essas relações construídas por meio da ação do Movimento afirmam-se como força motriz do processo de territorialização comunitário e da dimensão afetiva do território.

Nessa toada, o Movimento, valendo-se de suas estratégias de fundação, construiu um assentamento “rururbano” na RA XII. As Hortas Comunitárias de Samambaia representam a apropriação coletiva de um espaço físico esquecido e deliberadamente retirado dos planos de governança do GDF. As Hortas, enquanto expressão material do trabalho coletivo, simbolizam a capacidade de articulação de sujeitos historicamente alijados do direito à terra, à cidade, ao trabalho, à saúde e ao lazer. Essa terra lavrada na Quadra 127 cultiva, na verdade, relações e trava uma relação indivíduo-território de pertencimento e autonomia. A inserção do MTD no referido território constitui uma potente experiência formativa de organização política, demonstrando a verdadeira potencialidade da organização popular: a transformação de sujeitos dispersos em agentes conscientes de seus direitos e protagonistas na ocupação intencional do espaço urbano. Com isso, percebe-se que o tecido urbano é um campo de disputa de poderes que, com o processo de reivindicação de direitos por meio da organização popular, emancipa a comunidade.

Mais do que um espaço de cultivo, a Horta Comunitária encarna o princípio da construção coletiva de um novo modo de vida, em que o território se torna campo de exercício político e de produção simbólica. Através da horta, o MTD fomenta a territorialização da luta por direitos, mobilizando mulheres e homens que, muitas vezes, não tinham qualquer vínculo prévio com o Movimento, mas que, no cotidiano da partilha do espaço, do trabalho e do alimento, passaram a se reconhecer como parte de um projeto comum. Nesse sentido, a horta deixa de ser apenas uma técnica de sobrevivência e se afirma como prática de insurgência: espaço onde se semeiam não apenas sementes, mas também a consciência política, a auto-organização comunitária e a dignidade alcançada através do viver em coletivo.

A operação realizada pelo DF Legal na Horta Comunitária da Quadra 127, em Samambaia, representou uma grave afronta aos direitos dos cidadãos envolvidos na construção coletiva daquele território. Sem qualquer aviso prévio, os agentes públicos chegaram de forma abrupta, impedindo a possibilidade de diálogo, defesa ou mesmo retirada dos alimentos cultivados com esforço e cuidado ao longo de meses. A ação ocorreu justamente no dia que antecedia a colheita comunitária, momento simbólico, de realização e renovação, em que os moradores se reuniriam para partilhar os frutos do trabalho coletivo. No dia que seria de grande comemoração, em vez de celebrar o ciclo da colheita, a comunidade foi forçada a lidar com o luto e a revolta decorrentes da tentativa do Estado de arrancar, pela raiz, não apenas as plantas, mas o próprio sentido de pertencimento que germinava daquele chão.

Ao invés de reconhecer o valor multidimensional daquela iniciativa, o Estado optou por sufocá-la, desconsiderando o papel comunitário. Essa postura revela a negligência com os direitos mais básicos, como o acesso à alimentação, ao território e à dignidade e também uma atuação proativa no sentido de desmobilizar formas populares de organização e resistência.

A seletividade da ação do DF Legal torna-se ainda mais evidente quando se observa o histórico de abandono da área onde estava instalada a Horta Comunitária. O GDF jamais realizou qualquer benfeitoria naquele espaço: não há sinalização de trânsito, pintura nos meios-fios, iluminação adequada ou qualquer indício de intervenção do poder público que indique a preocupação do governo distrital com a integração daquele território à malha urbana formal.

Foi justamente para alterar a lógica de descaso que o Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD) uniu-se à comunidade local para desenvolver a horta urbana comunitária. Em atenção ao Decreto nº 39.314/2018 – que regulamenta a Lei nº 4.772/2012[2] -, a atuação do MTD observou os critérios estabelecidos para regularização de hortas urbanas, tais como a utilização coletiva do espaço, o cultivo de alimentos sem o uso de agrotóxicos e a promoção de práticas sustentáveis de agricultura urbana, bem como disposições técnicas como o impedimento de plantio em cima de tubulações.

A menos de 100 metros do local da derrubada, encontram-se outras hortas cercadas por muros, portões com cadeados e, em alguns casos, arame farpado. Mesmo que evidentemente não atendessem aos requisitos para a regularização de uma horta urbana, tais instalações não foram alvo de qualquer ação estatal.

Fica evidente que o incômodo do poder público não está na ocupação do solo urbano em si, mas na potência política daqueles que, organizados, ousam transformá-lo em território de partilha.

A atuação do DF Legal naquele território revela uma tentativa deliberada de desmantelar experiências de reivindicação de direitos e de ocupação política do espaço urbano por sujeitos historicamente marginalizados. Ao atacar a Horta Comunitária, o Estado buscou não apenas remover estruturas físicas, mas silenciar um processo de mobilização que vinha crescendo de forma autônoma, crítica e coletiva. A repressão, nesse contexto, não é um ato isolado, mas uma resposta política à ameaça que representa uma população consciente de seus direitos, articulada em torno de práticas concretas de transformação social e capaz de disputar o território urbano com projetos de justiça social e dignidade.

Diante do exposto,  resta claro que a ofensiva estatal contra as ações do MTD é o resultado de uma articulação político-jurídica para inibir a voz e a luta dos movimentos, revelando o processo de criminalização do movimento social em curso.

Mas no que consiste essa “criminalização”? Em resposta a essa pergunta, consignam Antonio Escrivão e Darci Frigo:

Criminalizar pode ser o ato de atribuir um crime a alguém, a alguma atitude, a uma manifestação. Mas isto não se dá de uma maneira simplificada, quer dizer, não ocorre a partir de uma fala qualquer, isolada e sem repercussão, ou de uma ou outra prisão onde os agentes públicos atribuem a uma prática social uma natureza ilegal. A criminalização se dá através de um processo estruturado de violência física e simbólica, que adquire ares de violência institucional (pública e privada) na medida em que seus agentes se utilizam de suas prerrogativas e funções para atribuir uma natureza essencialmente criminosa às manifestações sociais organizadas, e, a partir daí, sob o argumento de manter a democracia e a ordem, reprimir tais manifestações.

Esta apropriação da função pública pelos interesses privados fica evidente quando, por exemplo, se verifica que estas manifestações criminalizadas orientam-se pela erradicação da pobreza, marginalização e desigualdades sociais, objetivos fundamentais do Estado Democrático de Direito, conforme o artigo 3º da Constituição de 1988. (Escrivão Filho; Frigo, 2010)[3]

 

Nesses termos, a ação estatal violenta diante da organização popular revela o medo profundo que o poder instituído tem da potência do povo. Mais do que repressor, o Estado se mostra cerceador e, pior, castrador: não apenas se omite na concretização dos direitos previstos constitucionalmente, como também age ativamente para impedir que a população os conquiste por seus próprios meios.

A partir dessa perspectiva, ao observar a conjuntura na Quadra 127, percebe-se que a motivação central da ação violenta dos agentes públicos não foi a simples ocupação do solo, mas sim o que ela simbolizava: a força da organização popular. Com isso, depreende-se que o Estado reage por meio da criminalização, quando a coletividade se organiza, transforma espaços abandonados em territórios de vida, escassez em partilha, invisibilidade em protagonismo. A organização coletiva rompe com a lógica da submissão e do isolamento, e é justamente por isso que a atacam, mas é também por isso que comunidade resiste. Porque quando o povo se reconhece como sujeito coletivo de direito e constrói, com suas próprias mãos, alternativas para uma vida mais justa, nenhum trator é capaz de assolar o que já floresceu na consciência.

Como fazem os movimentos populares ao longo da história, o Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos há de se erguer e se reerguer. A destruição da horta não representa o término de um projeto coletivo, mas sim mais um capítulo na longa trajetória de resistência que, há décadas, enfrenta a negligência, repressão e a violência institucional do Estado. O Movimento seguirá se fortalecendo, reconstruindo o que foi arrancado e replantando as sementes da dignidade, da solidariedade e da emancipação social. Essa luta transcende aqueles que diretamente cultivam a terra ou partilham seus frutos: diz respeito a toda a sociedade que aposta na construção de territórios urbanos mais justos, vivos e compartilhados. Tal como o pequizeiro, que resiste às queimadas e se regenera, a organização popular, mesmo diante das ações destrutivas do poder público, reencontra forças nas raízes profundas da coletividade e brota com ainda mais vigor, reafirmando sua capacidade de reivindicar e fazer germinar o – como brada o lema do MTD – “direito de trabalhar e o trabalho com direitos”.

 

Referências:

ESCRIVÃO FILHO, Antonio; FRIGO, Darci. A luta por direitos e a criminalização dos movimentos sociais: a qual Estado de Direito serve o sistema de justiça? In: CANUTO, Antonio (Org. et all). Conflitos no campo Brasil 2009. São Paulo: Expressão Popular, 2010, p. 119-126.

MENEZES, Hilário José; CARDOSO, Eduardo Schiavone. Território e territorialização: questões conceituais para uma abordagem e leitura dos movimentos sociais. Revista Pegada, Presidente Prudente, v. 17, n. 1, p. 287–305, 2016.

DISTRITO FEDERAL. Decreto nº 39.314, de 29 de agosto de 2018. Regulamenta a Lei nº 4.772, de 7 de fevereiro de 2012, que institui a Política de Agricultura Urbana e Periurbana do Distrito Federal. Diário Oficial do Distrito Federal, Brasília, DF, 30 ago. 2018.

DISTRITO FEDERAL. Lei nº 4.772, de 7 de fevereiro de 2012. Institui a Política de Agricultura Urbana e Periurbana do Distrito Federal. Diário Oficial do Distrito Federal, Brasília, DF, 8 fev. 2012.

[1] MENEZES, Hilário José; CARDOSO, Eduardo Schiavone. Território e territorialização: questões conceituais para uma abordagem e leitura dos movimentos sociais. Revista Pegada, Presidente Prudente, v. 17, n. 1, p. 287–305, 2016.

[2] DISTRITO FEDERAL. Decreto nº 39.314, de 29 de agosto de 2018. Regulamenta a Lei nº 4.772, de 7 de fevereiro de 2012, que institui a Política de Agricultura Urbana e Periurbana do Distrito Federal. Diário Oficial do Distrito Federal, Brasília, DF, 30 ago. 2018.

DISTRITO FEDERAL. Lei nº 4.772, de 7 de fevereiro de 2012. Institui a Política de Agricultura Urbana e Periurbana do Distrito Federal. Diário Oficial do Distrito Federal, Brasília, DF, 8 fev. 2012.

[3] ESCRIVÃO FILHO, Antonio; FRIGO, Darci. A luta por direitos e a criminalização dos movimentos sociais: a qual Estado de Direito serve o sistema de justiça? In: CANUTO, Antonio (Org. et all). Conflitos no campo Brasil 2009. São Paulo: Expressão Popular, 2010, p. 119-126.

 

[*] Graduanda em direito pela Universidade de Brasília (UnB).  Membra do projeto de extensão AJUP Roberto Lyra Filho (Assessoria Jurídica Universitária  Popular) da Faculdade de Direito da UnB.

[**] Graduanda em direito pela Universidade de Brasília (UnB).  Membra do projeto de extensão AJUP Roberto Lyra Filho (Assessoria Jurídica Universitária  Popular) da Faculdade de Direito da UnB.

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