Escrito por Gabriel Cardoso
Sob o pretexto da “guerra às drogas”, instala-se um estado de insegurança permanente, voltado contra a população negra e pobre das favelas. Não há justificativa para que uma política estatal, supostamente voltada à proteção da sociedade, continue a ser conduzida a partir do derramamento de sangue. A segurança pública deve garantir direitos, não violá-los. As moradoras e os moradores das favelas têm direito à vida, à integridade física e à paz — e isso não é negociável.
A recente megaoperação policial na cidade do Rio de Janeiro, marcada por um número trágico de mortes, reacende o debate sobre a segurança pública no Brasil, expondo fraturas sociais e institucionais que se negam a respostas simplistas e binárias. Em momentos de crise e comoção, o clamor por soluções imediatas e absolutas se eleva, mas a complexidade inerente ao cenário fluminense exige uma análise multifacetada, que não se limite a discursos de “guerra” ou à mera desqualificação das vítimas e dos agentes. É necessário reconhecer que a segurança pública é, antes de tudo, uma questão política e social, e não apenas técnica ou jurídica:
Sendo a violência uma questão estrutural no Brasil, não podemos tratar da segurança pública sob uma ótica puramente técnica ou jurídica, mas sim como sendo uma questão política e social. Mas, para quem quer trilhar estes caminhos da Democracia, o trabalho é diário e incessante, trazendo, na grande maioria das vezes, a seus promotores apenas hostilidade e frustração. No entanto, mais do que nunca, com os ventos neoliberais a varrerem as Nações, será preciso um maior engajamento nessa luta contra a violência e a exclusão social, o que pressupõe a adoção, na prática cotidiana de todos, dos valores da democracia.
O balanço da Operação Contenção, a mais letal da história do estado, demonstra o fracasso e a violência estrutural da política de segurança no Rio. Essa perda massiva de vidas reitera um padrão de letalidade que tem caracterizado governos sucessivos, consolidando uma política que usa a força e a morte como instrumento de controle e dominação. Essa atuação é vista como seletiva, dirigida primordialmente contra populações negras e empobrecidas das favelas, instalando um estado de insegurança permanente e de terror, os dados revelam o que a população já vem percebendo, “que a violência policial tem endereço certo: corpos negros. A retórica da segurança que predomina no Estado do Rio de Janeiro se revela profundamente articulada a uma política de controle e gestão de corpos que os torna inteligíveis a partir de sua ‘matabilidade’”. O Brasil, mitologicamente, se descreve como um país não violento construiu a imagem de uma nação pacífica e harmônica, marcada pela convivência cordial entre diferentes grupos raciais e pela ausência de conflitos internos, uma narrativa amplamente reforçada pela tradição sociológica nacional. Entretanto, na realidade, somos estruturalmente violentos, especializando-nos em harmonizar discursivamente o inconciliável para viabilizar a convivência com a brutalidade.
O discurso oficial, muitas vezes apoiado por campanhas de “lei e ordem”, busca classificar o problema como uma guerra contra o inimigo interno. A retórica da guerra não pode liberar as forças de segurança de obrigações legais, como planejamento prévio e preservação de vidas. O Direito Penal do Inimigo, embora constitucionalmente incompatível no Brasil, opera de fato no sistema penal subterrâneo, transformando o indivíduo perigoso em uma “não-pessoa” despida de direitos. Tais ações, ao invés de reduzirem o poder das facções, aprofundam o medo e o pânico, transformando as comunidades em campos de batalha.
A Constituição de 1988, apesar de ser extremamente avançada, deixa margem para que políticas autoritárias de segurança sejam implementadas. Como já explicitamos no capítulo três, o texto constitucional abre uma brecha para que as Forças Armadas continuem a ter papel importante na área de segurança pública. Some-se a isso a militarização da atividade policial, polícias militares com filosofia operacional militar, executando tarefa tipicamente policial, de cunho administrativo, já que é serviço público. Essa situação se mantém apoiada no pânico criado pelas campanhas de “lei e ordem” e nas estratégias de controle social. Por se basear numa lógica de guerra, onde “matar ou morrer” é a regra, as “exceções” às garantias do cidadão são admitidas, ou, pior, não há cidadão, apenas inimigos a serem eliminados. Dessa forma, retiram-se os princípios constitucionais de garantia à pessoa, e autoriza-se que todo tipo de arbitrariedade seja cometida.
A grande complexidade reside na dualidade entre ser vítima da sociedade e cometer crimes bárbaros. Por um lado, o Estado brasileiro é genocida, para além da truculência policial, negando sistematicamente o acesso a direitos básicos como saúde, educação e moradia, o que se traduz em violência estrutural. Nesse sentido, a escravidão é reconhecida como o marco fundacional da tortura e das políticas de (in)segurança pública no Brasil, que hoje vitimizam corpos negros e periféricos:
Refletir sobre a escravidão como marco inicial da tortura no Brasil implica em eleger essa categoria como propulsora das análises de processos jurídicos-políticos atuais, cindindo com o silenciamento desse período histórico, comumente promovido nos estudos sobre a matéria. Os periódicos revelam que a tortura no Brasil foi fundada com finalidade de subjugação racial dos/as negros/as, seja com caráter de exemplaridade, castigo ou gratuidade da punição, e manifestando-se nas esferas física, psicológica e ontológica. Os seus relatos nos informam que os mecanismos e as políticas públicas de prevenção e combate à tortura na contemporaneidade não podem prescindir do enfrentamento ao racismo para formulação, sob risco de lançar ao futuro os mesmos desafios históricos de outrora e de agora.
Por outro lado, o crime organizado exerce um domínio territorial de terror, utilizando táticas de guerrilha moderna (como drones com bombas) e impondo o medo. É o Estado que, por omissão ou ação, produz um sistema punitivo que controla e criminaliza a pobreza, mas a violência cometida pelos indivíduos cooptados pelo crime, muitas vezes em situação de vulnerabilidade, não anula o terror praticado.
A ausência de um debate público e democrático sobre o mandato policial é uma lacuna central. A falta de definição clara sobre o que a polícia deve fazer no Brasil deixa o espaço para que a atuação seja preenchida pelo racismo e pela discricionariedade, com consequências visíveis no processo penal. Tal insuficiência analítica não se reduz a um simples descuido interpretativo, mas revela uma condição estrutural do modo de constituição do Estado e do Direito no contexto brasileiro. O déficit reflexivo sobre a natureza jurídica da prática policial evidencia, portanto, um traço constitutivo da experiência estatal nacional e impõe um desafio teórico à compreensão contemporânea das formas de juridicidade e do próprio conceito de Direito.
Práticas de tortura, maus-tratos e execuções sumárias, muitas vezes disfarçadas em autos de resistência, são a regra, e não a exceção, contra a população negra e periférica: “A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro publicou em 2017 uma pesquisa realizada em sede de audiência de custódia, que contabilizou 833 relatos de tortura ou maus-tratos no momento da detenção”. As operações policiais, como a última no Rio, demonstram a falência do compromisso com a legalidade e os direitos humanos, violando princípios internacionais sobre o uso da força.
A sociedade, por sua vez, muitas vezes chancelada pela mídia sensacionalista, tem uma “subterrânea simpatia” por resoluções imediatas e violentas, legitimando a desumanização:
Páginas que exaltam a violência policial fazem sucesso na internet, notadamente nas redes sociais. Notícias de pessoas mortas em supostos confrontos com a PM e até mesmo fotos dos alvejados são postadas e ovacionadas com milhares de curtidas e comentários. Todos ali têm noção da ilegalidade do que aplaudem; sabem da inexistência da pena de morte no Brasil em tempos de paz e também que, mesmo se esta existisse, não poderia ser aplicada sumariamente, sem processo penal com direito à defesa; mas se justificam mutuamente avocando um sentimento moral de combate ao inimigo comum: o “bandido”.
O caos da segurança pública no Rio de Janeiro é um ciclo vicioso de violência estrutural, racismo institucionalizado e ausência de soberania democrática sobre a força estatal. A segurança pública deve garantir direitos, não violá-los. É um desafio que exige não apenas o controle rigoroso da atividade policial (como previsto pela ADPF das Favelas), mas também a construção de uma ordem pública substancialmente democrática e igualitária, investindo em políticas sociais e na cidadania plena para a população historicamente excluída. Entretanto, há que se reconhecer que não se deve nutrir a ilusão de que a mera formalização das relações institucionais, ou a criação de novos protocolos administrativos, seja capaz, por si só, de assegurar maior disciplina ou racionalidade na atuação policial. Essa expectativa revela-se dissociada das dinâmicas concretas que estruturam o exercício do poder e da autoridade nesse contexto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BBC NEWS BRASIL. A terça-feira (28/10) foi marcada pela operação policial mais letal desde 1990 na região metropolitana do Rio, de acordo com levantamento do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF). Ao menos 121 pessoas morreram. 2025. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cvgknnjgmrxo. Acesso em: 30 out. 2025.
FREITAS, Felipe; ABATH, Manuela. Direitos fundamentais, processo penal e polícias – Aula 1. Curso disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RMtvSOnapqw&t=1. Aula realizada em: 6 jul. 2021. Acesso em: 30 out. 2025.
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STANCHI, Malu; PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Memórias abolicionistas sobre a tortura no Brasil. Dossiê – História e Cultura Jurídica nos Oitocentos e Pós-Abolição, RDP, Brasília, v. 19, n. 101, p. 200–252, jan./mar. 2022.
STANCHI, Malu; PIRES, Thula. Quem é o preso político da necropolítica? GALEANO, Diego; CORRÊA, Larissa Rosa; PIRES, Thula (orgs.). De presos políticos a presos comuns: estudos sobre experiências e narrativas de encarceramento. 2021.
SULOCKI, Victória-Amalia de Barros Carvalho Gosdawa de. Segurança pública e democracia: aspectos constitucionais das políticas públicas de segurança. Coord. Geraldo Prado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
O problema da segurança pública no Rio não é só o tráfico. É o Estado (e o que ele se recusa a enfrentar.)
A cada nova operação, mais mortos. Mais mães em luto. Mais bairros sitiados. E o caos se repete.
A segurança pública no Rio vive um ciclo vicioso de: Violência estrutural, Racismo institucional e Falta de controle democrático sobre a força estatal. A escravidão deixou uma herança cruel: a ideia de que corpos negros e pobres são descartáveis. A favela herdou o lugar da senzala. A sociedade que produz desigualdade é a mesma que exige sangue para se sentir segura. E chama isso de “justiça”. O Estado brasileiro mata de duas formas: Pela bala e Pela omissão — quando nega saúde, educação e moradia. A violência não começa no tiro, começa na omissão. Mas não dá pra negar o outro lado: O crime organizado impõe um regime próprio de medo. Usa drones, armas pesadas e táticas de guerra para controlar territórios e vidas. A população pobre vive entre dois terrores: o do fuzil estatal e o do fuzil paralelo. Ambos controlam, ambos matam. O crime nasce onde o Estado não chega — e cresce onde o Estado só chega atirando. A omissão e a repressão são partes do mesmo erro. Segurança pública não é guerra. É política de direitos. Precisa se basear em: Legalidade, Necessidade, Proporcionalidade e Responsabilidade.

