Entre o Direito e a Terra

O Estado na Encruzilhada da Preservação Socioambiental, Reflexões críticas rumo à COP 30 e à Agenda 2030

por REDUnB

Escrito por Rian Carlos dos Santos Domith¹

  1. Introdução: Quando o Direito se volta à Terra

Vivemos uma época em que o Direito se vê compelido a transcender sua função tradicionalmente centrada no regulamento das relações humanas. A emergência climática, longe de constituir mera abstração científica, converteu-se em questão de sobrevivência civilizatória, impondo uma reflexão profunda sobre o papel do Estado e das normas jurídicas na proteção da biosfera. Em meio a incêndios devastadores, secas prolongadas e enchentes recorrentes, a Terra — ou Gaia, na perspectiva sistêmica de James Lovelock — manifesta-se como sujeito ferido, exigindo do Direito uma escuta ativa e uma ação ética capaz de reconhecer a dignidade intrínseca da natureza.

No Brasil, essa inflexão ecológica encontra eco na Constituição de 1988, que, em seu artigo 225, consagra o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Mais do que um dispositivo normativo, trata-se de um marco simbólico e dogmático: a tutela ambiental é reconhecida como condição de existência da própria humanidade. Contudo, a distância entre o enunciado constitucional e a prática cotidiana é substancial, evidenciada pela contínua degradação ambiental, pelas crises hídricas, pelo desmatamento amazônico e pela vulnerabilidade de comunidades tradicionais.

A COP 30, que será realizada em Belém, representa, portanto, não apenas uma instância de reafirmação de compromissos internacionais, mas uma oportunidade singular de repensar o papel do Estado e do Direito diante de um planeta em crise. Nesse contexto, o jurista contemporâneo é convocado a reinterpretar a própria função da normatividade, enxergando o Direito não apenas como instrumento de regulação, mas como linguagem de cuidado, responsabilização e reconstrução do vínculo entre humanidade e natureza.

 

  1. O horizonte da Agenda 2030 e o dever constitucional de preservar

A Agenda 2030 da ONU, com seus 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), constitui um esforço global de conciliação entre desenvolvimento econômico, equidade social e preservação ambiental. Todavia, como alerta Ignacy Sachs (2008), a sustentabilidade não deve ser compreendida como um “mito conciliador”, mas sim como um campo de tensões que exige escolhas políticas e jurídicas ponderadas. Cada decisão econômica reverbera na ecologia, e cada política ambiental remete a uma questão ética fundamental: quem somos como civilização e que legado desejamos deixar às futuras gerações?

O Estado brasileiro, ao assumir compromissos internacionais, age como sujeito moral de responsabilidade planetária. Isso reconfigura o artigo 225 da Constituição: ele não é apenas um direito difuso, mas uma obrigação constitucional de proteção intergeracional. Como enfatiza Édis Milaré (2011), “a defesa do meio ambiente é tarefa pública indeclinável”, de modo que o silêncio ou a omissão estatal caracteriza uma inconstitucionalidade ativa. A dogmática ambiental, portanto, precisa transcender a aplicação mecânica de normas e recuperar a “razão narrativa” do Direito, conceito de François Ost (1999), que destaca a necessidade de o Direito contar histórias e atribuir sentido ético às normas.

Preservar o ambiente é mais que cumprir uma lei; é assumir um compromisso com a continuidade da vida, que exige transformar a Constituição em instrumento de educação ética e política. A Agenda 2030, nesse sentido, deve ser interpretada como um projeto civilizatório: suas metas não são meros indicadores administrativos, mas diretrizes para a construção de uma cultura constitucional de responsabilidade ecológica e de justiça intergeracional.

 

  1. A crise ambiental como sintoma civilizacional

A degradação ambiental reflete, simultaneamente, uma crise de racionalidade e de valores. Andreas Malm (2016), em Fóssil Capital, evidencia que a era dos combustíveis fósseis não é apenas um resultado técnico, mas uma expressão da lógica de acumulação capitalista que transforma a natureza em mercadoria e em máquina. Mike Davis (2020) complementa essa leitura, mostrando que o colapso climático é inseparável da desigualdade global: aqueles que menos poluem são os que mais sofrem.

No contexto brasileiro, essa desigualdade se manifesta de maneira dramática. Povos indígenas, quilombolas e comunidades ribeirinhas são os primeiros atingidos pelo avanço do agronegócio, pelo desmatamento ilegal e pela omissão do Estado. A frase de Chico Mendes, “ecologia sem luta de classes é jardinagem”, sintetiza o dilema ético do nosso tempo: não existe justiça ambiental sem justiça social. O Direito, quando silencia diante das violências ecológicas, torna-se cúmplice de um sistema que perpetua desigualdades e destruição.

Norberto Bobbio (1992) já advertia que a efetividade dos direitos depende mais de sua concretização do que de sua proclamação formal. Constitucionalizar o meio ambiente é apenas o primeiro passo; é necessário criar condições materiais, institucionais e culturais para que esse direito se traduza em proteção real da vida. Nesse sentido, a crise ambiental é também uma crise do modelo de racionalidade jurídica moderna, que se mostrou incapaz de lidar com a complexidade ecológica do século XXI, centrada excessivamente no humano, na propriedade e na técnica.

 

  1. A responsabilidade estatal e o esvaziamento das promessas jurídicas

O constitucionalismo ambiental brasileiro nasce com vocação transformadora, mas enfrenta obstáculos estruturais. Entre a burocracia e os interesses mercantis, o Estado frequentemente alterna entre retórica verde e permissividade extrativista. Cada desastre ambiental — de Mariana a Brumadinho, do Pantanal às enchentes do Sul — evidencia a lacuna entre o texto constitucional e a realidade.

Sob a ótica dogmática, o dever de proteção ambiental é princípio de máxima efetividade. Na prática administrativa, muitas vezes, é reduzido a um enunciado simbólico, incapaz de proteger comunidades vulneráveis. A omissão estatal viola, portanto, a dignidade da pessoa humana, expondo comunidades inteiras à insegurança ecológica. José Rubens Morato Leite (2012) defende que o Estado contemporâneo deve ser repensado como Estado Ecológico de Direito, no qual a legitimidade do poder político depende de sua capacidade de garantir a integridade ecológica do território.

A Constituição, assim, transcende a lógica de contrato social e converte-se em pacto ecológico intergeracional. A dogmática constitucional, nesse quadro, precisa dialogar com a ecologia política e com a ética da responsabilidade, abrindo-se a interpretações que transcendam a mera subsunção normativa.

 

  1. Entre a retórica e a ação: o papel da COP 30

A realização da COP 30 em Belém carrega simbolismo inestimável. A Amazônia, território de múltiplas vozes e ancestralidades, torna-se epicentro de um debate global sobre a sobrevivência. Porém, há o risco de que o evento se limite à vitrine discursiva.

Bruno Latour (2017) alerta que a modernidade criou uma “distância confortável” entre discurso e mundo, entre representação e realidade. O Brasil, como anfitrião, é chamado a romper essa duplicidade. Isso implica reconhecer o protagonismo das comunidades locais, valorizar saberes tradicionais e reverter a lógica extrativista que sustenta a economia nacional.

O Direito, nesse contexto, deve ser mais que instrumento técnico; deve ser linguagem performativa de transformação. A COP 30 precisa inspirar práticas concretas: políticas públicas de restauração ambiental, mecanismos de responsabilização e uma cultura jurídica que reconheça a natureza como sujeito de direitos. Leonardo Boff (2011) lembra que o cuidado é a linguagem mais profunda da sustentabilidade, uma ética de corresponsabilidade que atravessa política e hermenêutica constitucional.

  1. O Direito como prática de cuidado: além da normatividade

A crise climática contemporânea convoca o Direito a repensar sua função primordial. Não se trata apenas de aplicar normas, mas de aprender a cuidar — um cuidado que é simultaneamente ético, jurídico e político. Leonardo Boff (2011) ressalta que a sustentabilidade começa no reconhecimento da Terra como “Casa Comum”, espaço sagrado da vida. Esse reconhecimento transforma o cuidado em princípio jurídico de reorganização das relações entre Estado, sociedade e natureza.

Hans Jonas (2006), em sua ética da responsabilidade, enfatiza que os agentes humanos devem atuar de modo a garantir a preservação da vida, tanto presente quanto futura. Sob essa perspectiva, o dever ambiental não é mera obrigação legal, mas expressão do princípio da responsabilidade: o Estado torna-se guardião do tempo, com o imperativo de assegurar que o amanhã exista. O Direito, nesse contexto, é mais que técnica normativa; é linguagem de reconciliação entre humanidade e Terra, um gesto que une dogmática, ética e prática social.

Essa visão exige uma virada epistemológica profunda. Edgar Morin (2005) lembra que a reforma do pensamento é condição para a reforma da ação. O jurista que se limita a interpretar normas sem considerar suas implicações ecológicas e sociais participa de uma racionalidade fragmentada, incapaz de enfrentar a complexidade do século XXI. Portanto, a hermenêutica jurídica deve incorporar dimensões interdisciplinares: ciência ambiental, antropologia, economia ecológica e saberes tradicionais. Só assim o Direito cumpre sua função de cuidado e proteção intergeracional.

 

  1. A pedagogia da catástrofe e o papel transformador do Direito

Desastres ambientais funcionam como espelhos pedagógicos, revelando não apenas a força da natureza, mas a fragilidade das instituições e a insuficiência da normatividade tradicional. Boaventura de Sousa Santos (2019) argumenta que vivemos uma “transição paradigmática”, na qual o Direito deve abandonar o monólogo dogmático e abrir-se ao diálogo intercultural e ecológico.

Cada enchente, deslizamento ou incêndio é uma convocação ética: uma oportunidade para repensar a arquitetura normativa e reforçar a corresponsabilidade social. Nessa pedagogia da catástrofe, o sofrimento coletivo se converte em aprendizado institucional, e a experiência trágica orienta a ação legislativa, administrativa e judicial.

Ao adotar essa perspectiva, o Direito se aproxima de uma função performativa: não apenas codifica regras, mas molda comportamentos, cria expectativas e inspira práticas de cuidado. O reconhecimento do erro institucional e a reparação das injustiças ambientais tornam-se não apenas atos de justiça, mas sinais de maturidade ética do Estado.

 

  1. Justiça climática e cidadania planetária

A luta por justiça ambiental transcende fronteiras nacionais. Ulrich Beck (2010) descreve o mundo contemporâneo como uma “sociedade de risco global”, na qual os efeitos da destruição ecológica ultrapassam territórios e soberanias. Nesse contexto, emerge a ideia de cidadania planetária: um pertencimento ético que exige corresponsabilidade de todos os atores sociais — Estados, corporações e indivíduos.

Enrique Leff (2006) propõe uma “ecologia política do saber”, integrando ciência, cultura e participação social. A cidadania ecológica se constrói por meio da educação ambiental, do exercício democrático do poder e da incorporação de saberes locais na formulação de políticas públicas. Essa abordagem amplia o conceito de soberania: o Estado soberano não é apenas aquele que detém poder sobre um território, mas aquele capaz de garantir a sustentabilidade de ecossistemas e a preservação da vida.

A COP 30, nesse sentido, deve ser interpretada como ensaio de cidadania planetária. Mais do que reuniões diplomáticas ou acordos comerciais, o evento representa uma oportunidade de construir políticas públicas integradas, mecanismos de monitoramento ambiental, incentivos à economia verde e à proteção de comunidades tradicionais. O Direito, ao reconhecer a natureza como sujeito de direitos, cumpre seu papel central nesse processo, criando a base normativa para práticas de justiça climática e equidade intergeracional.

 

  1. A hermenêutica ecológica e o diálogo intercultural

O Direito ambiental não pode se restringir a uma lógica formalista de subsunção normativa. Ele precisa se abrir ao diálogo intercultural, reconhecendo a pluralidade de saberes e experiências. Arturo Escobar (2015) destaca a importância de considerar os saberes tradicionais como elementos centrais na construção de políticas sustentáveis, especialmente em territórios indígenas e comunidades rurais.

Essa hermenêutica ecológica exige reinterpretar princípios constitucionais sob uma ótica de responsabilidade coletiva. O princípio da dignidade da pessoa humana, por exemplo, deve ser lido à luz da interdependência entre vida humana e não humana. O Estado, nesse contexto, assume papel de mediador entre interesses sociais, econômicos e ecológicos, equilibrando desenvolvimento e preservação de forma ética e legalmente consistente.

A inclusão de saberes locais na formulação de políticas ambientais amplia a legitimidade das normas e fortalece a participação democrática. É um movimento que reconcilia dogmática e ensaio crítico, ao mesmo tempo em que transforma o Direito em instrumento de ação concreta e de cuidado efetivo com o planeta.

 

  1. Constitucionalismo ecológico: horizonte do século XXI

O século XXI demanda uma nova concepção de constitucionalismo. Enquanto o século XIX enfatizou a cidadania política e o XX, a cidadania social, o novo século impõe a cidadania ecológica. Peter Häberle (2007) e José Rubens Morato Leite (2012) defendem que a Constituição deve ser reinterpretada como uma “Carta da Terra”, cujo núcleo axiológico seja a sustentabilidade.

O constitucionalismo ecológico não substitui o Estado de Direito, mas o amplia: reconhece que não há Estado sem território habitável e que não há direito sem vida. Esse modelo exige uma hermenêutica comprometida com o futuro — um “princípio esperança”, como propõe Ernst Bloch (2005) — capaz de orientar a interpretação e aplicação das normas jurídicas para além do presente imediato.

Essa abordagem transforma o Direito em instrumento de responsabilidade civilizatória. Ele deixa de ser apenas um sistema de coerção normativa e torna-se um gesto ético-político, articulando princípios jurídicos, valores sociais e demandas ecológicas. É um convite à reinvenção da prática jurídica, integrando dogmática, crítica e ação transformadora.

 

  1. A dimensão ética do Estado ecológico

A função do Estado no século XXI deve ser repensada em termos éticos e ecológicos. José Rubens Morato Leite (2012) propõe a concepção de Estado Ecológico de Direito, no qual a legitimidade do poder político depende da capacidade de garantir a integridade ecológica do território e a proteção das comunidades humanas e não humanas.

Nessa perspectiva, a ética do cuidado transcende a retórica ambiental. O Estado deve atuar preventivamente, antecipando riscos, regulando atividades econômicas e assegurando a proteção de ecossistemas críticos. O Direito não é apenas regulador de condutas; é ferramenta de transformação social, capaz de promover justiça climática, equidade intergeracional e preservação do patrimônio natural.

 

  1. Desafios e perspectivas: entre a norma e a realidade

Apesar dos avanços normativos, o desafio central continua sendo a efetividade das leis ambientais. O Brasil possui uma Constituição avançada, tratados internacionais assinados e instrumentos jurídicos sofisticados. No entanto, a lacuna entre norma e realidade permanece significativa. Desmatamento ilegal, mineração predatória, poluição hídrica e impactos sobre comunidades tradicionais evidenciam a insuficiência da ação estatal e da própria dogmática jurídica tradicional.

A solução não reside apenas em aumentar penas ou criar novos dispositivos legais, mas em transformar a cultura jurídica e institucional. É preciso combinar prevenção, educação, participação social e inovação normativa, criando um Direito vivo ( o velho Ehrlich já alertava), sensível às complexidades ecológicas e sociais.

 

Referências biblográficas

 

BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: 34, 2010.

BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

BOFF, Leonardo. Sustentabilidade: o que é – o que não é. Petrópolis: Vozes, 2011.

DAVIS, Mike. Ecologia do medo. São Paulo: Boitempo, 2020.

HÄBERLE, Peter. O Estado constitucional cooperativo. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2007.

JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Contraponto, 2006.

LATOUR, Bruno. Diante de Gaia. São Paulo: Editora 34, 2017.

LEFF, Enrique. Racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

LEITE, José Rubens Morato. Direito ambiental e sustentabilidade. São Paulo: Saraiva, 2012.

MALM, Andreas. Fóssil Capital: o nascimento do aquecimento global. São Paulo: Elefante, 2016.

MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. São Paulo: RT, 2011.

MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa: Instituto Piaget, 2005.

OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do Direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.

SACHS, Ignacy. Caminhos para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.

SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo. São Paulo: Autêntica, 2019.

¹ Rian Domith é estudante de Direito na Universidade de Brasília (UnB), com interesse em Direito Constitucional, Teoria Jurídica e ainda se descobre na área.

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