Por Pedro Gonet Branco
A Constituição Federal de 1988 consagrou, em seu artigo 5°, XXXVI, que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, alicerces da segurança jurídica. Quando o constituinte se referiu a lei, fê-lo em sentindo amplo, contemplando também atos administrativos.
É entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência[1] que, em razão dessa proteção, nem mesmo os atos administrativos eivados de ilegalidade podem ser anulados, se geraram benefícios favoráveis a terceiros de boa-fé. É uma ponderação que privilegia a confiança do particular no trato com os Poderes Públicos em detrimento do princípio da legalidade.
Essa importância maior dada à segurança jurídica, evidentemente, não se aplica prima facie a todas as deliberações do Poder Público. Sabe-se que não existe direito adquirido a regime jurídico, motivo pelo qual não pode um cidadão exigir, por exemplo, que eventual reforma no sistema previdenciário que postergue sua data de aposentadoria não se aplique a ele. Afinal, a segurança jurídica não pode “petrificar a ordem jurídica, imobilizando o Estado e impedindo-o de realizar as mudanças que o interesse público [reclama]”[2].
Não é admissível, no entanto, que a Administração Pública – de que são exemplo as Universidades Federais – seja autorizada a tomar medidas que surpreendam os que confiam no comportamento coerente do Poder Público.
Nesse contexto, há atos administrativos de especial relevo para o contexto estudantil, como as resoluções, que são o meio pelo qual se instituem os Projetos Político-Pedagógicos de Curso (PPP). Cada curso superior conta com um Projeto Pedagógico, que deve estar alinhado com o regimento da Instituição da qual faz parte. O PPP é o documento que “revela a intencionalidade, os objetivos educacionais, profissionais, sociais e culturais e os rumos para o curso e para o perfil do egresso, [bem como] define as concepções pedagógicas e metodológicas [e] as estratégias para o ensino, a aprendizagem e sua avaliação”.[3]
Nas Universidades Federais, autarquias da Administração Pública indireta, os Projetos Político-Pedagógicos de Curso são aprovados por órgãos colegiados e se classificam como atos administrativos que constituem regimes jurídicos infralegais.
Uma vez que constituem regime jurídico, não há de se falar em direito adquirido pelos estudantes subordinados a determinado PPP em face da adoção de um novo Projeto. Por outro lado, as Universidades devem respeitar as expectativas legítimas do seu corpo discente, que, embora não sejam suficientes para gerar direito adquirido, constituem o princípio da segurança jurídica. Nas palavras de Couto e Silva,
a segurança jurídica é entendida como sendo um conceito ou um princípio jurídico que se ramifica em duas partes, uma de natureza objetiva e outra de natureza subjetiva. A primeira, de natureza objetiva, é aquela que envolve a questão dos limites à retroatividade dos atos do Estado até mesmo quando estes se qualifiquem como atos legislativos. Diz respeito, portanto, à proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada. […] A outra, de natureza subjetiva, concerne à proteção à confiança das pessoas no pertinente aos atos, procedimentos e condutas do Estado, nos mais diferentes aspectos de sua atuação.[4]
Apesar dessa bipartição, Couto e Silva alerta que a doutrina estrangeira entendeu por bem diferenciar os dois institutos, não obstante a íntima relação entre eles. À natureza objetiva chamou princípio da segurança jurídica; à natureza subjetiva, princípio da proteção à confiança.
A proteção à confiança de que fala Couto e Silva remonta à Alemanha dividida pela Guerra Fria. Um senador (Innensenator) da Berlim Ocidental prometeu assistência financeira governamental a uma viúva que morava na Alemanha Oriental, se ela se mudasse para a República Federal da Alemanha. Atraída pela oferta, a viúva mudou-se e passou a receber os pagamentos prometidos. Descobriu-se posteriormente que ela não atendia a todas as exigências legais e, portanto, não tinha direito ao auxílio. O senador, após a descoberta, cancelou os pagamentos e exigiu que a viúva restituísse tudo que recebera até então. A senhora recorreu da decisão e, em 1956, o Tribunal Administrativo Superior de Berlim (Oberverwaltungsgericht) deu razão à viúva, em razão da expectativa legítima que ela criara.
Evidentemente não havia coisa julgada, direito adquirido ou ato jurídico perfeito na relação exposta, pois o ato era ilegal. Ainda assim, dada a confiança sincera depositada pela viúva no agente público, o Tribunal entendeu que a viúva estava com a razão, consagrando a proteção à confiança.
A lei alemã de processo administrativo, em 1976, importou o instituto criado pelo Tribunal Administrativo, com enfoque na salvaguarda das expectativas legítimas de direito oriundo de decisão ilegal. Assim, a segurança jurídica (Rechtsscherheit) estava baseada na certeza de um direito já adquirido; e a proteção à confiança (Vertrauensschutz), na ideia de que os que confiam na legalidade de um ato administrativo devem ser protegidos.
A inovação alemã foi importada pelo direito comum europeu, que também passou a garantir proteção substancial aos que desenvolvem expectativa legítima em face de atos da administração pública e de particulares. O Tribunal de Justiça da União Europeia entendeu que essa proteção é oriunda não apenas do princípio da segurança jurídica, mas também dos direitos fundamentais. No caso Lührs v Hauptzollamt Hamburg-Jonas, julgado em 1978 pelo Tribunal Europeu, assentou-se que a confiança que tem um agente econômico suficientemente prudente na adoção de determinado ato, pelo poder público ou por particulares, deve ser protegida pelo direito – mais um exemplo de proteção da confiança.
Dessa forma, a expectativa legítima deve ser protegida não apenas em face de atos administrativos ilegais – como foi na origem de tal direito –, mas diante de todos os atos dos Poderes Públicos. É isso, por exemplo, que estimula a adoção de regras de transição de regimes jurídicos. Como decidiu o STF no RE 566.621, Rel. Min. Ellen Gracie:
a aplicação retroativa de novo e reduzido prazo para a repetição ou compensação de indébito tributárioestipulado por lei nova, fulminando, de imediato, pretensões deduzidas tempestivamente à luz do prazo então aplicável, bem como a aplicação imediata às pretensões pendentes de ajuizamento quando da publicação da lei, sem resguardo de nenhuma regra de transição, implicam ofensa ao princípio da segurança jurídica em seus conteúdos de proteção da confiança e de garantia do acesso à Justiça.
Desse modo, a própria justiça (fairness) justifica a proteção da confiança. Conforme tese de Søren Schønberg[5], isso se dá porque (i) danos previsíveis devem ser evitados, (ii) a confiança é um aspecto do princípio da segurança jurídica – que, em última instância, preocupa-se com a autonomia do indivíduo –, e (iii) a eficácia administrativa e a eficiência econômica dependem dessa proteção.
Também por esses motivos, Araújo sustenta que, “quando enaltece o princípio da segurança jurídica, o Direito não tem como único propósito a tutela dos direitos adquiridos. É sua tarefa proteger algo mais amplo: a confiança”.[6]
Diante desse cenário, não é admissível condicionar a graduação de um estudante que goza da expectativa legítima de formar-se em determinado semestre, por ter a perspectiva de cumprir com todos os requisitos até aquela data, ao cumprimento integral do novo plano de ensino – que, evidentemente, postergará a formatura.
Ainda que não haja, por óbvio, direito adquirido, ato jurídico perfeito ou coisa julgada que garanta a colação de grau do indivíduo, trata-se de direito que se encontra na iminência de ocorrer. Essa expectativa de graduar-se em determinado período, legítima como é, encontra amparo também na jurisprudência recente do TRF-1ª Região:
Não obstante as instituições de ensino superior possam promover alterações unilaterais nas grades curriculares dos cursos por ela ofertados, tais alterações devem ser adaptadas aos alunos, sob pena de causar prejuízos aos que já cursaram as disciplinas nos períodos anteriores. Assim, as alterações curriculares só devem ser aplicadas aos alunos que ingressarem na universidade após a respectiva mudança.
[…]
Deste modo, não se mostra razoável exigir que a parte autora se matricule em todas as disciplinas que foram incluídas na nova grade da UFBA, uma vez que já estaria em vias de conclusão do curso.[7]
Como se vê, o Tribunal vai além da sugestão a regras de transição de um regime para o outro e garante aos alunos matriculados na vigência de determinado PPP que se formem ao cumprir com os requisitos exigidos pelo Projeto que primeiro os orientou.
Não resta dúvida, portanto, de que a segurança jurídica possui domínio normativo bem mais amplo do que o do direito adquirido e o do ato jurídico perfeito. No Estado democrático de direito, o dever de coerência e proteção à confiança impõe-se à Administração Pública, direta e indireta, criando obrigação que nem mesmo um diploma legal ou um ato administrativo ilegal pode desfazer.
A expectativa legítima que se nutre pela conclusão de um curso em período estimável tem, assim, força suficiente para impedir a transição obrigatória ao novo currículo. “Respeita-se a confiança do indivíduo, ainda que o direito em disputa não tenha sido incorporado por completo ao seu patrimônio”.[8]
Pedro Gonet Branco é graduando em Direito pela Universidade de Brasília e Editor-Chefe da Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília (RED|UnB).
[1] Nesse sentido, Cf. COUTO E SILVA, Almiro do. Princípios da legalidade da administração pública e da segurança jurídica no estado de direito contemporâneo. Revista de direito público, 46-63, 2004, bem como AI 490.551 AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, DJe 03/09/2010; MS 22.357, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 05/11/2004.
[2] COUTO E SILVA, Almiro do. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no direito público brasileiro e o direito da administração pública de anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da lei do processo administrativo da União (Lei nº 9.784/99). Revista Brasileiro de Direito Público – RBDP, v. 2, n. 6, p. 7-59, jul./set. 2004, p. 276.
[3] Disponível em: https://www.deg.unb.br/projeto-politico-pedagogico-do-curso
[4] COUTO E SILVA, Almiro do. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no direito público brasileiro e o direito da administração pública de anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da lei do processo administrativo da União (Lei nº 9.784/99). Revista Brasileiro de Direito Público – RBDP, v. 2, n. 6, p. 7-59, jul./set. 2004, p. 273.
[5] SCHØNBERG, Søren. Legitimate Expectations in Administrative Law. Oxford: University Press, 2000.
[6] ARAÚJO, Valter Shuenquener de. O princípio da proteção da confiança: uma nova forma de tutela do cidadão diante do Estado. Niterói: Impetus, 2009., p. 72.
[7] TRF 1ª Região, Apelação/Reexame Necessário N. 2009.33.00.016460-3/BA, Relator Des. Kassio Marques, 6ª Turma, julgado em 6/12/2017, eDJF1 de 18/12/2017.
[8] ARAÚJO, Valter Shuenquener de. O princípio da proteção da confiança: uma nova forma de tutela do cidadão diante do Estado. Niterói: Impetus, 2009., p. 72.