DE PODER “MUDO” A TERCEIRO GIGANTE: UM BREVE RECORTE SOBRE O PODER JUDICIÁRIO

por PET Direito UnB

Escrito por Mariana Andrade de Abreu[*]

1. PANORAMA HISTÓRICO INICIAL

O recorte a ser tratado se inicia a partir do contexto de redemocratização e de reorganização da sociedade civil durante a década de 70, após o término do regime militar de 1964. Diferentemente do cenário dos países centrais internacionais, o Brasil não passava por um momento de explosão de garantia de direitos que caracteriza a expansão do welfarestate, em que as minorias sociais buscam a efetivação de direitos recentemente conquistados. Ao invés disso, o contexto brasileiro da época foi marcado principalmente pela expansão dos direitos básicos, que até então não eram garantidos à maioria da população.

Em decorrência dessa privação de direitos na década de 70, o Brasil, no início dos anos 80, não tinha o foco voltado para a necessidade da implementação de procedimentos jurídicos mais simplificados, mas sim para a análise da nova demanda de direitos difusos e coletivos. Tal demanda tinha o objetivo de construir um ideal de pertencimento à nação e evitar a condição dos que são colocados como “cidadãos de segunda classe”, pessoas marginalizadas e invisibilizadas socialmente que não exercem efetivamente sua cidadania.Esse contexto de reorganização social, em relação ao período de redemocratização, e de maior atenção aos direitos fundamentais, resultou em mudanças que afetaram o papel do Judiciário, que até esse momento era estruturado de forma menos flexível e acessível, além de voltado principalmente para os direitos individuais.

2. ACESSO À JUSTIÇA E PLURALISMO JURÍDICO

Durante esse período de mudanças, e em decorrência da inexistência de mecanismos jurídicos voltados ao acesso democrático, o acesso ao Judiciário se apresentava como uma questão elitizada. Tal realidade resultava na resolução de conflitos por intermédio de negociações comuns em meios paralelos e informais, principalmente em áreas periféricas, em que o acesso à justiça era mais restrito. Esses conflitos então eram mediados por líderes locais, ou até mesmo por instituições policiais, que por muitas vezes eram vistos pela população como a “verdadeira” manifestação do Judiciário.

Esse conceito de formas alternativas de justiça nasce como resposta à necessidade de responder demandas que não estavam sendo observadas pelo Judiciário, poder esse que, além de seu difícil acesso, tinha a reputação de ser marcado por processos burocráticos e lentos, incapaz de atender as necessidades da população brasileira, além de ser visto pela população com descredibilidade e até mesmo com desconfiança.

Em decorrência dessas falhas no sistema judiciário, e em paralelo com o contexto de emergência dos direitos coletivos na década de 80, inaugurou-se um debate em relação ao ideal de democratização judicial. Entretanto, tal luta por um contexto de maior acessibilidade jurídica continuou a se desenvolver paralelamente aos meios informais de resolução de conflitos, método que era mantido como forma de proporcionar a acessibilidade da população mais vulnerável a um ideal de justiça, mesmo que informal, e mais adiante funcionou como uma estratégia do próprio Judiciário para evitar sua sobrecarga.

3. JUDICIÁRIO COMO ATOR NO CONTROLE CONSTITUCIONAL 

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, documento esse que passou a assegurar diversos direitos e garantias fundamentais, houve uma redescoberta do conceito de cidadania e um crescimento da conscientização por parte das pessoas em relação aos próprios direitos, gerando, assim, mudanças profundas na sociedade. Com essa maior atenção direcionada à garantia dos direitos e da cidadania legal houve um aumento da demanda por justiça, o que afetou profundamente a dinâmica dos tribunais brasileiros e resultou em alterações de papel e de funcionamento por parte do sistema judiciário.

Nesse contexto, apesar das promessas da Constituição recém promulgada, o Estado não conseguiu fazer com que todos os direitose garantias fundamentais fossem aplicados de forma efetiva e homogênea por suas instituições, principalmente os direitos sociais, como à saúde e à educação, que exigem direcionamento ativo de verbas governamentais. Essa lacuna resultou na ameaça de que a nova Carta Constitucional fosse atrelada a um ideal de legislação simbólica e utópica.

A partir disso, havia a necessidade de evitar que a Constituição fosse vista apenas como sugestão ou mera orientação para o sistema político vigente, o que resultou na posição do judiciário para assumir o papel de “base material” do documento constitucional. Dessa maneira, o Terceiro Poder passou a ser visto como um “atalho” que poderia proporcionar a garantia desses direitos de forma substancial, rápida e efetiva por intermédio das decisões judiciais, já que tais garantias precisam de instituições que as protejam e apliquem. O Judiciário, assim, reinventou suas funções tradicionais, passando a ser visto como o “garantidor” dos direitos assegurados pela Constituição Cidadã e como um instrumento de controle de constitucionalidade.

4. DE PODER “MUDO” A TERCEIRO GIGANTE

Esse contexto de judicialização da política indica o início de um panorama de flexibilização em que os juízes passam a se libertar do formalismo jurídico e a abandonar o estereótipo de “juiz boca inanimada da lei”, não sendo mais vistos exclusivamente como meios impessoais e mecânicos de julgamento, mas sim em um papel político.

Com essa maior independência, o direito sai definitivamente de seu papel passivo de apenas ser moldado pelo panorama social e passa a ser “um discurso ativo que pode produzir efeitos e criar o mundo social” (SCKELL, 2016, p. 165), o que mostra uma influência recíproca e simultânea por parte desses dois atores. Esse aumento de influência indica o início de uma interferência do Judiciário nos espaços de atuação dos outros dois poderes a partir da expansão de suas funções.

Dessa maneira, a grandiosidade do poder judicial, que passou de certa forma a “amedrontar” os outros órgãos do poder soberano, baseia-se no fato de que as leis, apesar de serem “o centro e o objeto primário da atividade do estado”(MANGABEIRA UNGER, 1976, p. 177), não existem por si próprias e precisam ser implementadas no contexto social por intermédio das instituições jurídicas. A legislação passa por abordagens interpretativas dos magistrados durante tomadas de decisões nos tribunais, decisões essas que, apesar de limitadas pelo conceito de legalidade, têm o poder de “dar vida” à norma e colocar em movimento o ordenamento jurídico que rege a sociedade.

5. JUDICIALIZAÇÃO E EXPRESSÃO DEMOCRÁTICA

Além das mudanças já apresentadas, o panorama da Constituição de 1988 deu início a um movimento de judicialização da vida social. A partir disso, há a intervenção do judiciário em áreas de matérias comuns, que anteriormente não eram abordadas por esse e deixadas à critério informal da própria população, mas que agora passam a atuar como campo de lutas políticas e sociais.

Entretanto, esse papel de atuação política e de controle de constitucionalidade por parte do Judiciário passa por certas oposições. Nesse viés, alguns estudiosos abordam essa nova função jurídica como uma suposta ameaça à democracia, já que os juízes não passam por um processo eleitoral, como é exigido aos representantes do Legislativo e Executivo. Porém, em resposta a tal alegação, pode-se colocar em evidência o argumento de que nenhuma democracia deve ser resumida a uma “democracia da maioria”, ou seja, um governo voltado exclusivamente ao eleitorado vencedor.

Dessa forma, a existência de juízes diversos, empossados por intermédio da aprovação em concurso público, aborda e reflete da melhor forma a pluralidade nacional, o que resulta em uma maior possibilidade de escuta das partes minoritária no contexto político por intermédio das apelações judiciais. Esse panorama de diversidade e do Judiciário como um local de escuta dos menos privilegiados é extremamente relevante para o próprio ideal democrático, resultando em um panorama de maior humanismo jurídico, em que todas as vozes políticas são ouvidas com parcimônia e interesse. Assim, o Judiciário abandona seu posicionamento neutro e passa a atuar como preservador dos valores e garantias sociais em uma sociedade desencantada com sua representação política e que busca sua autonomia.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através desse breve recorte histórico e político se pôde incitar uma maior reflexão sobre o papel do Poder Judiciário, suas transformações e adaptações, além de influências e impactos na vida cotidiana ao longo das décadas. Reflete-se, assim, sobre a maneira como os períodos de transição influenciaram, porém também foram influenciados, pela figura do Terceiro Poder.

Em síntese, o Poder Judiciário representa não apenas a aplicação metódica da lei, mas também a guarda dos direitos fundamentais e a salvaguarda da ordem democrática, garantindo a aplicação legislativa imparcial enquanto protege os direitos individuais e coletivos dos cidadãos. Assim, apesar dos desafios enfrentados, como a dificuldade de acesso judicial e a morosidade processual, o Poder Judiciário continua a ser um pilar essencial na manutenção do estado de democrático de direito e na promoção da justiça e da igualdade perante a lei, tópicos essenciais para a estabilidade e o desenvolvimento de qualquer nação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DE ALMEIDA, Frederico. A noção de campo jurídico para o estudo dos agentes, práticas e instituições judiciais. In: ENGELMANN, Fabiano (org.). Sociologia política das instituições judiciais. Porto Alegre: UFRGS, 2017, p. 124-150.

GALANTER, Marc. A justiça não se encontra apenas nas decisões dos tribunais. In: HESPANHA, Antonio. Justiça e litigiosidade: História e prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. p. 59-117.

JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Acesso à justiça: um olhar retrospectivo. Revista Estudos Históricos, v. 9, n. 18, p. 389-402, 1996.

MANGABEIRA UNGER, Roberto. Law in modernsociety: toward a criticismof social theory. Nova Iorque, NY: Free Press, 1976.

PARSONS, Talcott. Law as anintellectualstepchild. SociologicalInquiry, v. 47, n. 3-4, p. 11-58, jul. 1977.

SANTOS, Boaventura de Sousa, MARQUES, Maria Manuel L., PEDROSO, João, FERREIRA, Pedro L. Os tribunais nas sociedades contemporâneas, Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 30, 1999.

SCKELL, Soraya Nour. Os juristas e o direito em Bourdieu: a conflituosa construção histórica da racionalidade jurídica. Tempo Social, v. 28, n. 1, p. 157-178, 2016.

TREVIÑO, A. Javier. Introduction. In: TREVIÑO, A. Javier (org.). Talcott Parsons on Law andthe Legal System. Newcastle: Cambridge Scholars Publishing, 2008. p. 1-18.

VERONESE, Alexandre. Projetos Judiciários de Acesso à Justiça: entre assistência social e serviços legais. Revista Direito GV, v. 3, p. 13-33, 2007.

VERONESE, Alexandre. A judicialização da política na América Latina: panorama da teoria contemporânea. Revista Escritos, Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, 2009.

[*] Graduanda da Universidade de Brasília e integrante do Programa de Educação Tutorial em Direito da Universidade de Brasília (PET Direito/UnB).

você pode gostar

Deixe um comentário

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Vamos supor que você está de acordo com isso, mas você pode optar por não participar, se desejar. Aceitar

Privacy & Cookies Policy