Escrito por Daniel Araújo Vieira Lopes [*]
O aparato disciplinar da Lei de Execução Penal (LEP) segue operando com ampla discricionariedade, agravando a condição do preso por meio de sanções como isolamento, regressão de regime e perda de dias remidos. O poder disciplinar, exercido pela administração penitenciária, constitui um mecanismo de controle totalitárioi. As faltas disciplinares – graves, médias e leves – são tipificadas de forma vaga, permitindo enquadramentos abusivos. Exemplos incluem punições por gestos de resistência pacífica, como greve de fome ou recusa a cortes de cabelo, caracterizando violação ao princípio da taxatividadeii.
As sanções, previstas no art. 53 da LEP, vão desde advertências verbais até o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), este último comparado a um “regime fechadíssimo” que aprofunda a desumanizaçãoiii. A aplicação cumulativa de sanções e a comunicação tardia ao Judiciário perpetuam um ciclo de punição sobre punição, em claro desrespeito ao ne bis in idemiv.
E tudo isso ocorrendo em meio a um estado de coisas inconstitucional, declarado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF 347, que reconheceu violações massivas e persistentes de direitos fundamentais. Em cumprimento a essa decisão, foi elaborado o plano “Pena Justa”v que apresentou novos caminhos para a ampliação das possibilidades de alternativas ao cárcere, visando humanizar os processos de privação de liberdade e estimular a mudança na forma com que o Estado brasileiro lida com a resolução de conflitos sociais. E um dos meios recomendados pelo plano para atingir seus objetivos foi justamente a ampliação da utilização da justiça restaurativa como alternativa ao sistema penal.
A proposta da Justiça Restaurativa emerge como resposta a essa lógica punitiva. Baseada em valores como respeito, humildade e maravilhamentovi, ela prioriza a reparação de danos e o diálogo entre vítima, ofensor e comunidade, bem como a transformação de conflitos sociais. Suas práticas incluem mediação vítima-ofensor, conferências familiares e círculos restaurativos.
Aponta Howard Zehrvii que, a lente restaurativa enxerga o crime como uma violação de pessoas e relacionamentos, que cria a obrigação de corrigir erros, que junta a vítima, ofensor e comunidade na busca de soluções, enquanto a lente retributiva vê o crime como uma violação contra o Estado, definida pela desobediência da lei, que inflige dor num contexto de disputa do ofensor versus o Estado. O autor faz uma análise comparativa na forma de se enxergar situações e conceitos nas diferentes perspectivas: a justiça penal observa o crime como uma violação da lei, os danos são definidos de forma abstrata, o Estado é a vítima da relação, as necessidades das vítimas são ignoradas, a dimensão interpessoal não é relevante, e a aferição da culpa é o enfoque central. Já para justiça restaurativa, o crime é definido pelo dano à pessoa e ao relacionamento, os danos são definidos de forma concreta, existe uma preocupação na aferição de danos periféricos à relação central, a vítima e o ofensor são partes relevantes do processo, a necessidades das vítimas são o enfoque central, o dano causado a ambas as partes é importante, e o ofensor tem responsabilidade pela situação gerada.
Se engana quem pensa que na Justiça Restaurativa o ofensor não será responsabilizado, já que uma das suas principais características é a preocupação com a responsabilização dos ofensores, a reparação do dano e a transformação dos conflitos. Os encontros restaurativos fazem com que o ofensor perceba que o crime gera obrigações e assuma essas em busca de uma verdadeira reparação do dano causado. Para a perspectiva restaurativa, perceber as necessidades das vítimas é empoderá-las, fazendo com que sejam ouvidas e expressem suas visões, buscando torná-las protagonistas do conflito, diferentemente do que ocorre no processo penal, onde são afastadas do próprio conflito e no máximo são ouvidas no tribunal em audiência.
A ONU estabeleceu em sua Resolução n. 2002/12 do Conselho Econômico e Social, uma principiologia da justiça restaurativa intitulada de “Princípios Básicos para utilização de Programas de Justiça Restaurativa em Matéria Criminal”viii correlacionando os princípios da justiça restaurativa quando aplicados em convivência com o sistema penal. Essa resolução é considerada o primeiro marco normativo sobre a justiça restaurativa e é um guia para a realização de programas restaurativos. Para a resolução, a justiça restaurativa é todo aquele procedimento que vise atingir um resultado restaurativo, esse foco no resultado restaurativo é importante pois faz com que um resultado judicial (uma pena) não possa ser fruto de um processo restaurativo.
O facilitador, aquele que conduz as práticas restaurativas, deve ser imparcial e assegurar o respeito entre as partes. Também diz que os procedimentos restaurativos só devem ser usados quando houver provas suficientes para possibilitar que o indivíduo se voluntarie na posição de ofensor (princípio da presunção de inocência), e que o consentimento das partes é essencial para a realização das práticas restaurativas, existindo um princípio da voluntariedade. Outro princípio é o de que a admissão de culpa não pode ser usada em procedimentos judiciais, existindo um princípio da confidencialidade dos procedimentos e de não interferência do processo restaurativo no processo criminal. Também, as disparidades e desequilíbrios devem ser levadas em consideração no procedimento restaurativo. E por último, é previsto que o acordo restaurativo deve ser proporcional e razoável sempre visando resultados restaurativos.
No Brasil, a Justiça Restaurativa foi introduzida por meio de marcos normativos como a Lei 9.099/95, o Estatuto da Criança e do Adolescente e as Resoluções 125 e 225 do CNJ. No entanto, sua implementação tem sido marcada pelo protagonismo judicial e pela convivência com o sistema penal tradicional, o que limita seu potencial transformadorix.
Experiências como as desenvolvidas no Presídio Central de Porto Alegre e em Caxias do Sul (RS) ilustram a aplicação de círculos restaurativos no contexto prisional. Embora relatos apontem benefícios qualitativos – como alívio e satisfação das vítimas –, faltam sistematização e avaliação robustax. Críticas apontam para o netwidening (ampliação da rede punitiva) e o multiplesanctioning (sobrecarga de obrigações), que distorcem os princípios restaurativosxi.
Conforme Pallamollaxii, a Justiça Restaurativa no Brasil tende ao modelo maximalista, com forte influência estatal e risco de instrumentalização. Nas palavras de Vera Regina Pereira de Andrade, existiu uma verdadeira convivência muito próxima entre a justiça restaurativa e o sistema penal, na experiência brasileira houve enorme interferência do poder judiciário nos processos e na iniciativa da justiça restaurativa, podendo-se dizer que foi e é aplicado no Brasil uma verdadeira justiça restaurativa judicial, onde há um protagonismo personalizado do poder judiciário, caracterizado pela liderança de equipes e dependência da pessoa do juiz na introdução e continuidade dos programas restaurativosxiii.
Observa-se que, os programas de justiça restaurativa brasileiros não conseguiram implementar uma verdadeira alternativa ao sistema de justiça criminal, e nem conseguiram reduzir o poder punitivo existente. Na verdade, alargou o filtro punitivo Estatal, deixando de lado muitos princípios, elementos e valores existentes na justiça restaurativa.
Assim, se a justiça restaurativa na experiência brasileira falhou em reduzir poder punitivo, se falhou em ser uma alternativa ao sistema de justiça penal e se ela serviu como reprodutora do sistema punitivo, então por que a escolha dela como alternativa ao processo administrativo disciplinar prisional? Parece paradoxal falar de afastamento do sistema penal judicial dentro do cárcere. Contudo, é justamente no campo do processo administrativo disciplinar que a atuação do juiz é reduzida, existindo uma enorme discricionariedade da administração penitenciária na apuração e sanção das faltas disciplinares. Identifica-se um espaço interessante de manifestação da justiça restaurativa afastada do poder judiciário, o que já seria inovador dada a experiência brasileira que, em regra, teve a figura pessoal do juiz como protagonista dos programas restaurativos. A necessidade de promover a justiça restaurativa neste contexto está intrinsicamente ligada ao abuso punitivo existente no campo das sanções disciplinares e em suas consequências, e no autoritarismo e arbitrarismo de suas causas, devendo adentrar em tal espaço de forma a reduzir a dor na experiência do cárcere.
Entende-se existir uma verdadeira potencialidade da justiça restaurativa em tal campo. A linguagem restaurativa pode transformar a experiência da prisão ao reduzir o autoritarismo da ordem e disciplina, que como visto, é utilizada de maneira amplamente arbitrária pela administração penitenciária. Deve ser buscado uma real solução dos conflitos carcerários por meio de práticas restaurativas e uma abolição da atual política disciplinar que não consegue resolver os problemas e conflitos existentes nos presídios, servindo apenas para piorar a experiência do indivíduo que já cumpre a pena em razão da prática de um crime. Destaca Toewsxiv que uma prisão que se utiliza de práticas para solução de conflitos e fortalecimento dos laços sociais não é uma “prisão restaurativa”, sendo impossível a existência de um lugar assim. Por isso, a autora sugere a nomenclatura “espaços restaurativos” com fim de delimitar aqueles que entram de forma emergente em ambientes retributivos e que promovem valores da justiça restaurativa.
Por óbvio, a proposta possui vários desafios na sua implementação, principalmente se ela propõe manter os princípios e valores restaurativos e reduzir a dor na experiência carcerária. Ao tentar impor programas restaurativos em tal contexto, é impossível desconsiderar que está se lidando com o ambiente essencialmente punitivo e hierarquizante, devendo o programa se preocupar com a real aplicação dos princípios da voluntariedade e do equilíbrio das partes. É recomendável a inexistência de ameaças de processo disciplinar nos encontros restaurativos, devendo os programas restaurativos ser uma total alternativa aos procedimentos administrativos disciplinares.
Daí a preocupação com o multiplesanctioning, o resultado do encontro restaurativo não pode ocasionar em mais obrigações ao preso do que aquelas decorrentes da própria pena privativa de liberdade, devendo ser respeitado o princípio do ne bis in idem. Existe também uma preocupação em relação ao netwidening, a justiça restaurativa não pode servir de pretexto para a ampliação dos poderes da administração penitenciária, na verdade, é justo o oposto, os programas devem filtrar o poder arbitrário existente da administração com a substituição do regime da ordem e disciplina por práticas restaurativas.
Dessa maneira, identifica-se algumas potencialidades significativas na aplicação da justiça restaurativa como substituto do regime das sanções disciplinares dos presídios:
- Redução do arbítrio administrativo;
- Transformação de conflitos por meio do diálogo;
- Respeito à voluntariedade e ao equilíbrio entre as
Entretanto, identifica-se alguns entraves significativos para a sua aplicação:
- O fato do ambiente prisional ser intrinsecamente coercitivo;
- Risco de reprodução do poder punitivo;
- Interferência de órgãos e autoridades estatais vinculados ao poder punitivo nos procedimentos
Recomenda-se que a Justiça Restaurativa seja implementada como política pública autônoma, com base comunitária e afastada da lógica judicializante. Entende-se que a modificação legislativa do regime disciplinar da LEP é passo crucial para essa transição. A Justiça Restaurativa oferece um caminho viável para humanizar a execução penal e conter os abusos do poder disciplinar. No entanto, sua efetividade depende da superação dos vícios punitivistas que marcaram sua trajetória no Brasil.
i ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Direito e prática histórica da execução penal no Brasil/ Rodrigo Duque Estrada Roig – Rio de Janeiro: Revan, 2005, 1ª reimpressão, novembro de 2013
ii MENDONÇA, Jeniffer. Presos não podem ser punidos por causa de corte de cabelo e barba, diz Defensoria de SP. Ponte, 23/05/2022. Disponível em: https://ponte.org/presos-nao-podem-ser-punidos-por-causa-de-corte-de- cabelo-e-barba-diz-defensoria-de-sp/. Acessado em 28 de maio de 2025.
iii MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. Notas sobre a Inconstitucionalidade da Lei 10.792/2003,
que criou o Regime disciplinar diferenciado na Execução Penal. In: CARVALHO, Salo de (Coord.). Crítica à execução penal. 2. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
iv MACHADO, Maíra Rocha; PINTO, Patrícia Bocardo Batista. A punição na punição na punição: as múltiplas sanções aplicadas em caso de falta grave nas decisões do TJSP. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 27, n. 152, p. 117-143, fev.. 2019. Disponível em:
http://200.205.38.50/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=149821. Acesso em: 27 mai. 2025.
v CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA; MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Plano
Pena Justa: Plano Nacional para o Enfrentamento do Estado de Coisas Inconstitucional nas Prisões Brasileiras. Brasília: CNJ/MJSP, 2025.
vi ZEHR, Howard. Trocando as Lentes: justiça restaurativa para o nosso tempo/ Howard Zehr; tradução de Tônia Van Acker – São Paulo: Palas Athena, 2008.
vii Ibidem.
viii ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolução 2002/12: PRINCÍPIOS BÁSICOS PARA UTILIZAÇÃO DE PROGRAMAS DE JUSTIÇA RESTAURATIVA EM MATÉRIA CRIMINAL, 24 de Julho de 2002.
ix DE ANDRADE, Vera Regina Pereira (Coord.). Relatório Analítico Propositivo Justiça Pesquisa Direitos e Garantias Fundamentais Pilotando a Justiça: O papel do poder judiciário. CNJ.
x Ibidem.
xi ACHUTTI, Daniel Silva. Justiça Restaurativa e abolicionismo penal/ Daniel Silva Achutti. – São Paulo:
Saraiva, 2014
xii PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula, 1982- Justiça restaurativa : da teoria à prática / Raffaella da Porciuncula Pallamolla. -1.ed. – São Paulo : IBCCRIM, 2009
xiii DE ANDRADE, Vera Regina Pereira (Coord.). Relatório Analítico Propositivo Justiça Pesquisa Direitos e Garantias Fundamentais Pilotando a Justiça: O papel do poder judiciário. CNJ.
xiv TOEWS, Barb. Justiça Restaurativa para pessoas na prisão: construindo as redes de funcionamento/ Barb Toews: tradução Ana Sofia Schmidt de Oliveira. – São Paulo: Palas Athena, 2019.
[*] É advogado criminalista formado na PUC-Rio e pós graduando na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro

