Por: Maria Clara de Pádua Carvalho[*]
Introdução
A partir da análise da relação do Estado português com os indígenas no Brasil, percebe-se a constante intenção de incorporá-los à colonização por meio de projetos que visavam à assimilação desses povos. Nesse contexto, foi frequente o estabelecimento de representações tutelares que, de modos distintos, intervieram na vida indígena. Diante disso, o presente artigo visa verificar se, no período pós-independência, ocorre a perpetuação de tais violências aos povos indígenas. Para tanto, serão analisadas e comparadas as políticas indigenistas do Brasil Colônia e do Brasil Imperial, a partir de revisão bibliográfica.
Política indigenista no Brasil colonial
A Lei de 26 de julho de 1596, uma das mais antigas na política indigenista do Brasil colonial, atribuiu tutoria aos missionários da Companhia de Jesus, aos quais cabia, por exemplo, a direção dos descimentos, originalmente operações de captura de indígenas para escravidão[ii]. Além disso, foi criado o “procurador do gentio”, figura tutelar financiada pelo Estado e associada aos governadores à qual incumbia “servir a cada aldeia ao longo de três anos”[iii]. Desse modo, a referida lei demonstra o estabelecimento, ainda que de forma incipiente, de um exercício de tutela sobre os grupos indígenas, característica constante das políticas indigenistas que a seguiram.
Sob esse prisma, nota-se que a presença dos jesuítas guiou algumas das normas que tratavam das condições do trabalho indígena no Brasil colônia. Assim, o Regimento de primeiro de abril de 1680 reproduziu as recomendações presentes nas cartas de Padre Antônio Vieira, visto que promoveu a liberdade da escravidão dos indígenas e atribuiu à Companhia de Jesus a catequese dos indígenas localizados no rio Amazonas[iv]. Desse modo, a fixação de missões em meio aos grupos indígenas conferiu um “cunho colonizador aos trabalhos missionários”[v], no sentido de que promovia os objetivos coloniais portugueses de expansão sobre novas terras[vi].
Outrossim, em meio ao estabelecimento da política indigenista colonial, ocorreu a dinamização de diversas forças sociais, especialmente distribuídas entre padres missionários, moradores locais e autoridades coloniais. Diante disso, o Regimento das Missões, de 1º de dezembro de 1686, vigente no Estado do Maranhão e Grão-Pará, demonstrou a realidade de disputas com relação ao controle sobre os indígenas. O regimento representa um compromisso firmado entre colonos, religiosos e autoridades quanto à mão de obra indígena, reputada como imprescindível para os empreendimentos coloniais[vii]. Assim, o regimento expandiu o poder dos jesuítas, que passaram a ter o governo espiritual, político e temporal sobre os agrupamentos indígenas[viii]. Ademais, incumbia aos missionários reunir e separar aldeias, com a recomendação de que se juntassem em freguesias, fato que revela “preocupações de cunho urbanizador”[ix]. Além disso, por meio deste instrumento normativo, os moradores se beneficiaram da bipartição da mão de obra indígena masculina entre os moradores e os aldeamentos, cenário que também favorecia as autoridades metropolitanas, uma vez que promovia o “desenvolvimento estável de sua possessão amazônica”[x]. Dessa maneira, foi estruturada a administração, especialmente por parte de missionários, sobre a vida diária dos indígenas em todos os seus aspectos, com o fito de atender às demandas coloniais.
Esse Regimento das Missões, vigente durante quase sete décadas, foi substituído pelo Diretório dos Índios de 1757, implementado pelo Ministro Marquês de Pombal no reinado de D. José I em meio a um movimento reformista. Essa política indigenista foi aplicada inicialmente ao Grão-Pará e ao Maranhão e posteriormente obteve abrangência geral no Brasil Colônia. Nessa ocasião, é perceptível um remanejamento no poder, à medida que a figura dos jesuítas, proeminente nos regimentos anteriores, deu lugar aos “diretores”, servidores seculares nomeados pelo governador do Estado[xi], aos quais incumbia a “civilização” dos indígenas. Tal fato decorreu de um contexto no qual os trabalhos dos jesuítas não mais se adequavam ao projeto colonizador português. Nesse sentido, alegava-se que os jesuítas demonstravam resistência a dar cumprimento à lei que havia restituído a liberdade aos indígenas[xii]. Outrossim, argumentava-se que o uso de uma “língua geral” pelos jesuítas, em vez da língua portuguesa, havia impossibilitado a consecução dos objetivos do colonizador português. Portanto, a figura religiosa dos jesuítas perdeu forças para uma figura secular de representação tutelar, que administrava a vida dos indígenas nos aldeamentos, com o emprego da língua portuguesa.
A esse respeito, Rita de Almeida[xiii] afirma que o Diretório é um plano de povoamento, um modelo da tutela exercida pelo Estado, um regimento de trabalho e um projeto colonizador. Nesse sentido, o Diretório visava assegurar conquistas territoriais em áreas de fronteira após o Tratado de Madri, por meio de povoamento[xiv]. Com o Diretório, foram estabelecidos “laboratórios de aprendizados e vivências próprios da cultura do colonizador”[xv], perceptíveis, por exemplo, na proposta de construção de casas com padrão europeu para os indígenas (parágrafo 12) e na “secularização das aldeias missionadas”[xvi] que imitam a administração de cidades aos moldes europeus (parágrafo 74). Ademais, com o fito de impedir o esvaziamento populacional, foram utilizados os “descimentos” – provendo de indígenas a população das aldeias – e introduzidos não-indígenas nas povoações[xvii]. Portanto, a política indigenista estabelecida no Diretório respondia a demandas relacionadas à soberania de Portugal, de tal modo que a questão indígena era vista, novamente, como um assunto de Estado.
Assim, nota-se o objetivo de estabelecimento da cultura do colonizador, cujos eixos principais eram o de “cristianização” e o de “civilização”, tarefas que eram exercidas, respectivamente, pelos párocos da Diocese e pelos diretores[xviii]. Com isso, a grande mudança com relação ao Regimento de 1686 era que agora a administração dos aldeamentos cabia ao diretor, o qual intervia nos costumes habitacionais, controlava a atividade de comércio e atuava sobre as dinâmicas de trabalho[xix]. O Diretório previa, também, que este servidor estimularia a prática agrícola pelos indígenas e formalizaria a admissão de entrada de não-indígenas nos agrupamentos[xx]. Por meio desses mecanismos, suprir-se-iam as demandas da metrópole portuguesa.
Como consequência do estabelecimento de tal representação tutelar, os diretores se tornaram “representações únicas de poder” nos aldeamentos, visto que exploravam a mão-de-obra indígena e dispunham de suas terras[xxi]. Assim, a Carta Régia de 12 de maio de 1798 aboliu o Diretório, visando minar a tirania dos diretores. Em decorrência disso, a representação tutelar associada ao Estado foi enfraquecida, à medida que, com o fim do Diretório, qualquer um poderia exercer a comunicação e o comércio com povos indígenas, sem dependência de intermediação pelos “representantes tutelares instituídos”[xxii]. Posto isso, o vazio de legislação indigenista só foi preenchido em 1845, em um Brasil já independente, de tal modo que não é possível encontrar política indigenista colonial posterior com a mesma abrangência que o Diretório.
Assim, a política indigenista no Brasil colônia visou à transposição da cultura do colonizador. Com isso, foram disseminados conceitos de “civilização”, que o associavam à ideia de cristianização e de estímulo ao comércio. Claramente, trata-se de um conjunto de dinâmicas europeizantes, que visavam à assimilação da cultura portuguesa. Ao longo desse período, percebe-se que as políticas indigenistas apresentam, como semelhança, a criação de representantes tutelares: inicialmente, autoridades religiosas e, posteriormente, figuras seculares. Esse processo engendrou a interferência no modo de vida indígena durante todo o período colonial.
Política indigenista no Brasil Império
Há indícios de que, mesmo após sua abolição formal em 1798, o Diretório dos Índios tenha sido aplicado até a independência do Brasil. O principal indicativo disso é o fato de que, durante a sessão nº 16, em 23 de setembro de 1822, o imperador, e seu Conselho de Procuradores, mandou extinguir a Diretoria dos índios. Com efeito, é possível que o Diretório dos Índios tenha sido abolido definitivamente somente em 1822, logo após a independência. Dessa forma, desde o início do Brasil império até 1845, a legislação indigenista foi flutuante e pontual[xxiii], visto que o Diretório dos Índios já não estava mais em vigor.
Diante disso, esse vácuo legal foi preenchido apenas com o ‘Regulamento acerca das Missões de Catechese e Civilização dos Índios’ (Decreto nº 426, de 24 de julho de 1845), o “único documento indigenista geral do império” [xxiv]. O diploma normativo traçava diretrizes administrativas de uma política que se centrava nos aldeamentos indígenas, dinamizados pelo diretor de aldeia e pelo diretor-geral de índios. Ao diretor de aldeia cabia o “contato direto com os índios”[xxv], ou seja, tratava-se de um intermediador com a sociedade. Este diretor seria o responsável pela “civilização” dos indígenas, enquanto que o missionário seria um catequizador: novamente, conjuga-se a noção de “civilização” com “cristianização”. Enquanto isso, o diretor-geral de índios nomeava o diretor de aldeia e poderia deliberar acerca do trabalho dos indígenas. O diretor-geral poderia, também, reunir, remover, arrendar ou aforar os aldeamentos da província, demonstrando o fato de que a questão indígena esteve associada à política de terras no Brasil imperial.
Dessa forma, o Regulamento das Missões de 1845 dá continuidade ao projeto de aldeamento dos indígenas, que já havia sido iniciado no período colonial. Assim como no período colonial, os aldeamentos serviam a um propósito alheio aos interesses dos indígenas, pois serviam de “infraestrutura, fonte de abastecimento e reserva de mão de obra” [xxvi]. Nesse viés, o aldeamento é visto implicitamente como “transição para a assimilação completa dos índios” [xxvii]. A exemplo disso, a organização espacial tem novamente como referencial uma povoação europeizada, com igrejas, oficinas e cadeias públicas[xxviii]. Desse modo, há o estabelecimento de estruturas de poder hierarquizantes e de espaços alheios às dinâmicas culturais dos povos indígenas, configurando um projeto assimilacionista herdeiro daquele estabelecido pelo colonizador português.
Conclusão
Verificam-se semelhanças nas políticas indigenistas estabelecidas nos períodos colonial e imperial. Exemplo disso é a criação de representantes tutelares que poderiam dispor das terras de ocupação indígena e de seu trabalho. Posto isso, a conjuntura pós-independência do Brasil, ao contrário de significar ruptura completa com o ordenamento jurídico português e suas respectivas violências, reproduz as práticas colonizadoras. De fato, deu-se continuidade a processos nocivos à existência, tanto física, quanto cultural, dos povos indígenas. Isso vem a ser superado apenas nos séculos seguintes, especialmente com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que garante uma série de direitos e proteções aos povos originários, de modo a preservar e garantir suas existências.
Referências
ALMEIDA, Rita Heloísa de. O diretório dos índios: um projeto de civilização dos índios do século XVIII. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.
ARENZ, Karl Heinz; CHAMBOULEYRON, Rafael. Um compromisso frágil: A Companhia de Jesus e o Regimento das Missões no Estado do Maranhão e Grão-Pará (1684-1688). In: Dossiê n. 50 (2023/1): A Companhia de Jesus e sua dinâmica relacional nos Impérios coloniais ibéricos, séculos XVI – XVIII, n. 50, 20 jul. 2023. Disponível em: https://doi.org/10.47456/dim.v50i50.40273 . Acesso em: 10 mar. 2025.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: história, direitos e cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 2012.
SAMPAIO, Patrícia Melo. Política indigenista no Brasil Imperial. In: GRINBERG, Keila e SALLES, Ricardo (orgs.): O Brasil Imperial. Volume I – 1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009 pp. 175-207.
[ii] Descimentos, no início do período colonial, eram operações de resgate de indígenas para fins de escravidão (Almeida, 1997, p. 32). A partir da década de 1680, os descimentos adquiriram uma conotação positiva: passaram ser vistos como operações de resgate para fins de povoamento (Almeida, 1997, p. 43).
[iii] Almeida, 1997, p. 37.
[iv] Almeida, 1997, p. 41 e 42.
[v] Almeida, 1997, p. 42.
[vi] Almeida, 1997, p. 44.
[vii] Arenz; Chambouleyron, 2023.
[viii] Almeida, 1997, p. 42.
[ix] Almeida, 1997, p. 44.
[x] Arenz; Chambouleyron, 2023, p. 125.
[xi] Almeida, 1997.
[xii] Almeida, 1997, p. 153.
[xiii] Almeida, 1997, p. 152.
[xiv] Almeida, 1997.
[xv] Almeida, 1997, p. 45.
[xvi] Almeida, 1997, p. 45.
[xvii] Almeida, 1997, p. 46.
[xviii] Almeida, 1997, p. 169.
[xix] Almeida, 1997.
[xx] Almeida, 1997.
[xxi] Almeida, 1997, p. 168-169.
[xxii] Almeida, 1997, p. 47.
[xxiii] Cunha, 2012, p. 65.
[xxiv] Sampaio, 2009, p. 178.
[xxv] Almeida, 1997, p. 48.
[xxvi] Cunha, 2012, p. 76.
[xxvii] Cunha, 2012, p. 68.
[xxviii] Almeida, 1997, p. 48.
[*] Graduanda do 5o semestre da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília e membra da área de Pesquisa Jurídica do Veredicto Simulações, Pesquisa e Extensão. Bolsista de Pesquisa no Programa PIBIC da UnB. E-mail: mariaclara.paduacarvalho@gmail.com.