Sociologia Jurídica entre a Teoria e a Prática

Tensões e Diálogos na Construção do Direito Contemporâneo

por Veredicto

Escrito por Giovanna Carvalho Araújo Mendes Daia[i]

A Sociologia Jurídica configura-se como um campo primordial para a compreensão do Direito não apenas como um sistema normativo autônomo, mas como um fenômeno social dinâmico, permeado por disputas, transformações e práticas culturais e econômicas. Nas sociedades contemporâneas, marcadas pelo pluralismo e complexidade, as tensões entre a teoria e a prática jurídica tornam-se cada vez mais perceptíveis. Essa dinâmica exige um diálogo constante entre abordagens teóricas e a realidade empírica do Direito no cotidiano social, buscando desenvolver uma justiça que melhor atenda às necessidades da sociedade.

O tema central deste artigo é a relação entre o campo jurídico – entendido como um espaço de disputas simbólicas e institucionais – e a eficácia social do Direito, ou seja, sua capacidade de impactar práticas, valores e estruturas sociais. Para explorar essa relação, são mobilizadas as perspectivas de Pierre Bourdieu e Max Weber, cujas teorias são fundamentais para analisar as disputas internas ao campo jurídico e a conexão do Direito com a sociedade.

O campo jurídico e a eficácia social do Direito

A Sociologia Jurídica busca compreender o Direito para além de seus aspectos formais e normativos, analisando sua inserção nas interações sociais, suas funções, restrições e consequências.

Pierre Bourdieu, em sua obra “O poder simbólico”, propõe o conceito de campo jurídico como um espaço social com relativa autonomia, possuindo regras e estruturas próprias. Nesse campo, os agentes, como juristas e magistrados, competem pelo monopólio da autoridade para definir o que é “Direito” e legitimar suas interpretações. O capital jurídico (saber, prestígio, poder) é o recurso mais importante em disputa. Para Bourdieu[ii], o Direito representa uma forma de violência simbólica que naturaliza e legitima as relações de dominação social, perpetuando desigualdades e exclusões. Ele critica o formalismo jurídico por separar o Direito da realidade social, ignorando as condições materiais e simbólicas que influenciam sua produção e aplicação, enfatizando a necessidade de compreendê-lo como uma prática social em constante disputa.

Por sua vez, Max Weber aborda a eficácia social do Direito como a capacidade do sistema jurídico de regular a vida em sociedade através de normas consideradas legítimas e racionais[iii]. Segundo Trubek[iv], a validade jurídica vai além da formalidade, fundamentando-se na aceitação dos indivíduos e na probabilidade de coerção institucional para assegurar o cumprimento das normas. A racionalização do Direito, marcada pela formulação de normas gerais, abstratas e sistemáticas aplicadas de forma impessoal e previsível (racionalidade formal), é essencial para a organização das sociedades capitalistas, garantindo segurança jurídica e estabilidade. Weber reconhece que, na ausência de aceitação subjetiva, o Direito perde sua força coercitiva e capacidade de regulação. O sociólogo examina ainda os tipos de dominação, sendo a dominação racional-legal a base do Direito moderno, apoiada em regras e procedimentos formais.

Em síntese, pode-se ressaltar que, enquanto Bourdieu destaca o caráter conflituoso e simbólico do campo jurídico, enfatizando as relações de poder e violência simbólica, Weber foca na racionalização e legitimidade como fundamentos da eficácia social do sistema jurídico. Ambas as abordagens teóricas são cruciais para a sociologia jurídica moderna, oferecendo uma compreensão das disputas internas do campo jurídico e da relação do Direito com a sociedade como um todo. Suas abordagens se inter-relacionam, evidenciando que o Direito é, simultaneamente, um sistema normativo racionalizado e um espaço social de disputas simbólicas e relações de poder, complementares para uma compreensão abrangente.

A sociologia jurídica em diálogo com os processos sociais contemporâneos

Na sociedade atual, globalizada e com pluralismo cultural, as tensões entre teoria e prática do Direito se acentuam, e a sociologia jurídica contribui para a compreensão dessas dinâmicas. Um exemplo disto é o fenômeno da judicialização da política, com o campo jurídico expandindo-se e interferindo em decisões políticas, consequentemente gerando debates sobre o papel do judiciário e a legitimidade das decisões. Isso pode ser analisado pela teoria de Bourdieu[v], que destaca as disputas simbólicas e o capital jurídico acumulado pelos atores judiciais, e pela abordagem weberiana, que examina a racionalização e a burocratização do sistema jurídico.

Outro aspecto relevante é o acesso à justiça, que aponta para a necessidade de políticas públicas que ampliem a efetividade do Direito para grupos sociais marginalizados. A sociologia jurídica empírica é fundamental para avaliar essas políticas e compreender as práticas jurídicas cotidianas, buscando superar o formalismo e revelar as desigualdades e conflitos que permeiam o campo jurídico, o que dialoga com a abordagem de Bourdieu[vi]. A integração de teoria e empiria é essencial para analisar temas como o acesso à justiça e a produção social do Direito, visando a construção de um sistema jurídico mais inclusivo e eficiente.

A sociologia jurídica contemporânea também enfatiza o papel político dos juristas como agentes históricos na transformação social. Jacques Commaille, em “La fonction politique de la justice”, destaca três processos de transformação da justiça: a destradicionalização (desvalorização ou abandono de normas sagradas ou “destradicionalização”), o neoliberalismo (lógica de mercado e eficiência nos sistemas judiciais) e a democratização (expansão do acesso e participação social), que transformam a justiça em um cenário de intensas disputas políticas.

A teoria social clássica também problematiza o Direito. Para Karl Marx, o Direito é uma expressão das relações de produção e um meio de dominação de classe[vii]. Émile Durkheim o vê como reflexo da solidariedade social. Max Weber, por sua vez, o entende como um sistema racionalizado que sustenta a burocracia e o capitalismo contemporâneo. Essa visão permite o surgimento de uma sociologia crítica do Direito, reconhecendo-o como campo de disputa e mudança. A análise da relação entre Direito, economia e capitalismo em Weber é aprofundada por autores como Richard Swedberg, Maria Tereza Leopardi Mello e David Trubek, que destacam o Direito racional como essencial para o capitalismo, estabelecendo previsibilidade e segurança jurídica para o cálculo econômico. O Direito, assim, não apenas reflete, mas constitui ativamente as instituições capitalistas.

Desafios e o caráter crítico da sociologia jurídica

O debate atual na sociologia jurídica explora o campo jurídico como um espaço de disputas simbólicas e políticas, onde as práticas judiciais são influenciadas por tensões entre autonomia e heteronomia, bem como entre racionalidade formal e pressões sociais externas. A racionalidade formal, conforme Bourdieu[viii], em diálogo com Weber, busca previsibilidade e calculabilidade nas decisões, distinguindo o Direito moderno dos costumes. No entanto, essa dimensão não pode ser dissociada da análise das relações de poder e dominação simbólica que atravessam o campo jurídico.

A sociologia jurídica contemporânea enfatiza a necessidade de uma abordagem que articule teoria e prática, crítica e empirismo. O empirismo crítico nos estudos jurídicos, conforme Trubek e Esser[ix], possibilita a revelação de paradoxos e tensões que questionam visões tradicionais do Direito, contribuindo efetivamente para a transformação social.

A sociologia jurídica deve atuar de maneira crítica e ativa, indo além da mera observação para contribuir com a compreensão e a transformação das práticas e instituições jurídicas. Isso demanda reconhecer o Direito contemporâneo como um espaço plural e dinâmico, que dialoga com diversas perspectivas, incorpora desafios e abrange lutas sociais e princípios jurídicos fundamentais. Tal atuação exige uma combinação de rigor técnico com sensibilidade empírica para captar a complexidade das práticas jurídicas e as disputas simbólicas que as cercam. É fundamental potencializar a dimensão ética e política da sociologia jurídica, enfatizando sua contribuição para a democratização do acesso à justiça e a criação de um sistema mais inclusivo e equitativo. Isso implica críticas permanentes às estruturas de poder e a promoção de um diálogo interdisciplinar e intercultural, visando construir uma justiça que efetivamente satisfaça as necessidades sociais.

Considerações Finais

Ao examinar o Direito na intersecção entre teoria e prática, a sociologia jurídica se mostra fundamental para a compreensão do fenômeno jurídico na sociedade atual. Ela demonstra que as leis e instituições não são neutras ou estáticas, mas produtos de disputas, negociações e adaptações constantes. Se, por um lado, o sistema jurídico busca estabilidade e previsibilidade por meio de normas racionais, por outro, ele é constantemente tensionado por demandas sociais, desigualdades e mudanças culturais.

Essa dinâmica revela um paradoxo fundamental: o Direito precisa ser ao mesmo tempo autônomo, para garantir sua credibilidade, e sensível às realidades sociais, para manter sua legitimidade. Quando essa relação se desequilibra, surgem crises de eficácia, onde as leis formais não correspondem às necessidades concretas da população. A judicialização da política, as lutas por acesso à justiça e as críticas ao formalismo excessivo são exemplos de como o Direito é desafiado a se reinventar em meio a sociedades cada vez mais complexas.

Mais do que um conjunto de regras, o Direito é um campo em permanente construção, em que se debatem visões de justiça, igualdade e poder. Para que ele cumpra seu papel social, é essencial reconhecer suas limitações e potencialidades, buscando um equilíbrio entre técnica jurídica e sensibilidade às realidades humana.

Referências Bibliográficas

BOURDIEU, Pierre. A força do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico. In: BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. p. 209-254.

COMMAILE, Jacques. La justice entre détraditionnalisation, néolibéralisme et democratization: vers une théorie de sociologie politique de la justice. In: COMMAILE, Jacques; KALUSZYNCKI, Martine (dir.). La fonction politique de la justice. Paris: La Découverte, 2007. p. 295-321.

HUNT, Alan. The problematisation of law in classical social theory. In: BANAKAR, Reza; TRAVERS, Max (ed.). Law and social theory. 2. ed. Oxford: Hart Pub, 2013. p. 17-33.

MELLO, Maria Tereza Leopardi. Direito e Economia em Max Weber. Revista Direito GV, v. 2, n. 2, p. 45-65, jul./dez. 2006.

SCHLUCHTER, Wolfgang. La sociologie du droit comme théorie empirique de la validité. In: HEURTIN, Jean-Philippe; MOLFESSIS, Nicolas (org.). La sociologie du droit de Max Weber. Paris: Dalloz, 2006. p. 3-26. Tradução de Marina Amaral.

SWEDBERG, Richard. Max Weber e a ideia de sociologia econômica. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005.

TRUBEK, David Max; ESSER, John. “Empirismo crítico” e os estudos jurídicos críticos norte-americanos: paradoxo, programa ou caixa de Pandora? Revista de Estudos Empíricos em Direito, v. 1, n. 1, 2014.

TRUBEK, David. Max. Max Weber sobre direito e ascensão do capitalismo (1972, orig.). Revista Direito GV, v. 3, n. 1, p. 151-186, jan./jun. 2007.

[i]  Aluna do 3o Semestre da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, membro do Veredicto – Simulações, Pesquisa e Extensão. E-mail de contato: daia.giovanna18@gmail.com.

[ii] Bourdieu, 2001.

[iii] Trubek, 2007.

[iv] Trubek, 2007.

[v] Bourdieu, 2001.

[vi] Bourdieu, 2001.

[vii] Trubek, 2007.

[viii] Bourdieu, 2001.

[ix] Trubek; Esser, 2014.

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