OS IMPACTOS DA REFORMA TRIBUTÁRIA NO PLANO SAFRA E NA COMPETITIVIDADE DO AGRONEGÓCIO BRASILEIRO: UMA ANÁLISE JURÍDICO-TRIBUTÁRIA

por TAXUnB

Rian Correia de Almeida [*]

Victor Gabriel França Matos [**]

 

Resumo: O presente artigo analisa as implicações da Reforma Tributária, instituída pela Emenda Constitucional nº 132/2023, sobre o agronegócio brasileiro, com foco especial em sua interação com o Plano Safra e os reflexos na competitividade do setor. A pesquisa, de natureza teórica e documental, explora as alterações no sistema de tributação sobre o consumo, notadamente a criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), e os regimes diferenciados para o setor agropecuário. Avalia-se, sob a ótica do Direito Tributário, se as novas regras fiscais potencializam ou restringem os objetivos do Plano Safra e de que forma impactam a posição do agronegócio no mercado internacional, considerando os princípios da não cumulatividade plena, da seletividade e da desoneração das exportações.

Introdução

O agronegócio consolida-se, historicamente, como um dos pilares de sustentação da economia brasileira, ostentando participação expressiva no Produto Interno Bruto (PIB)[3] e sendo grande responsável pelas exportações brasileiras. Sua cadeia produtiva, que se estende da “porteira para dentro” (insumos, produção) e da “porteira para fora” (armazenagem, logística, industrialização e exportação), sempre esteve sujeita a um dos mais intrincados sistemas tributários do mundo, caracterizado pela multiplicidade de tributos (PIS, COFINS, ICMS, IPI, ISS), cumulatividade residual, “guerra fiscal” entre os entes subnacionais, dentre outros.

Nesse contexto, a Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023, promoveu uma alteração para além de estrutural no Sistema Tributário Nacional. Trata-se de uma alteração que impactará uma quebra de paradigmas em todo o sistema econômico, e por óbvio, no agronegócio, visando simplificação, racionalidade e transparência na tributação sobre o consumo, por meio da instituição de um Imposto sobre Valor Adicionado (IVA) de base ampla e modelo dual, pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), em substituição aos tributos federais, e pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), em substituição ao Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e ao Imposto Sobre Serviços (ISS).

Diante de tal transformação, surge o seguinte problema: de que maneira o novo sistema tributário, em especial a unificação de tributos sobre o consumo, dialoga com os instrumentos de política agrícola do Plano Safra? Como isso afeta, efetivamente, a competitividade do agronegócio nacional? A pergunta que devemos fazer é, como fica o mercado que impacta diretamente na mesa de todos os brasileiros? A questão é de suma importância, pois o setor opera com margens sensíveis e depende tanto de incentivos creditícios quanto de uma estrutura fiscal que não onere a produção e a exportação, para além disso, não há segredos de que o agronegócio representa uma parcela significativa do Produto Interno Bruto do País, e por conseguinte, seu crescimento figura como essencial para o crescimento econômico nacional.

O objetivo deste artigo é, portanto, abordar as principais mudanças trazidas pela reforma tributária com impacto no agronegócio, com atenção à manutenção de tratamentos favorecidos, às discussões em torno da tributação de insumos e aos possíveis efeitos sobre a competitividade do setor. Por fim, propõe-se uma análise dos desafios e perspectivas envolvidos nesse novo cenário

1. O Agronegócio no Sistema Tributário Nacional pré-Reforma

1.1. A Tributação do Agronegócio antes da EC nº 132/2023

Observa-se que o principal problema era, e continua sendo, enquanto ainda não se implementa de forma plena o disposto na reforma, a caótica tributação sobre o consumo. Com os emaranhados de impostos e contribuições que se sobrepunham de forma confusa e desordenada, gerava-se insegurança jurídica no produtor e um desnecessário aumento de custos na produção. No campo das exportações, a Lei Kandir (LC nº 87/1996), que garantia a não incidência de ICMS sobre produtos destinados ao exterior, trazia uma promessa que não se cumpria na prática. De fato, o exportador não pagava o imposto na venda, mas pagava em todas as suas compras internas (máquinas, peças, energia elétrica) e deveria reaver, conforme a lei, esse valor em forma de créditos. Ocorre que os entes federados, dada a dificuldade do sistema e da complicação contábil de se identificar os valores dos créditos devidos, acabava por gerar um acúmulo de créditos de difícil recuperação, além de que tais créditos muitas vezes não são honrados pelos entes federados, seja por ausência de possibilidade de ressarcir em dinheiro, seja pela ausência de débitos de ICMS com os quais compensar.

Se a situação nos estados era complexa, no âmbito federal não era diferente. A tributação do PIS e da COFINS era um universo à parte, marcado pela insegurança jurídica. A principal batalha travada por anos nos tribunais era para definir o que poderia ser considerado “insumo” para fins de creditamento no regime não cumulativo. Nesse ponto, a lei nunca foi clara. De fato, essa incerteza é reiteradamente mitigada, apesar de forma lenta e gradual, pela jurisprudência dos tribunais e do CARF. Importante foi o julgado, em 2018, que o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em um julgamento histórico (REsp 1.221.170), decidiu que o conceito de insumo deveria abranger tudo aquilo que for dotado de essencialidade ou relevância para o processo produtivo, além de estabelecer alguns produtos que entendeu que, sem dúvida, cumprem esse papel. A decisão foi uma vitória para os contribuintes, mas o fato de um tribunal superior ter definido algo tão basilar apenas em 2018, demonstra a fragilidade e a complexidade do sistema. Essa combinação de guerra fiscal, créditos não recuperados e insegurança jurídica constante formava o cenário sobre o qual o agronegócio brasileiro era forçado a operar em um ambiente que clamava por uma reforma estrutural.

2. A Reforma Tributária (EC nº 132/2023 e LC n° 214/2025) e suas Inovações para o Agronegócio

2.1. A Nova Arquitetura Tributária: O IVA Dual e seus Princípios Fundamentais

 

A Reforma Tributária no Brasil, formalizada pela Emenda Constitucional nº 132/2023, promove uma reestruturação fundamental do sistema fiscal, substituindo o complexo arranjo de tributos existentes por um modelo de Imposto sobre Valor Adicionado (IVA) de formato “dual”. Este novo arcabouço é composto pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência da União, e pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), com competência compartilhada entre Estados e Municípios, com a gestão deste último realizada por um Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços, visando a uniformidade e a racionalização do sistema, bem como dos seus regimes diferenciados e a fixação de alíquotas (EC 132, Art. 134, § 4º, 156-A, 195, V; LC 214, Art. 126, 366). Essa transformação busca corrigir as falhas históricas do sistema anterior, que gerava um “confuso mosaico” de tributos e alta litigiosidade, e implica que impostos como IPI, ICMS, ISS, PIS e COFINS não integrarão a base de cálculo dos novos tributos (EC 132, Art. 133). Um dos princípios mais importantes do novo sistema é a não cumulatividade plena, que visa eliminar o “efeito cascata” e garantir que apenas o valor agregado em cada fase da cadeia produtiva seja efetivamente tributado.

 

Na prática, isso significa que, em tese, todo tributo pago na aquisição de bens e serviços necessários à atividade produtiva – desde o combustível do trator, as sementes e os sistemas digitais de gerenciamento, até bens do ativo imobilizado e bens de uso e consumo do estabelecimento – se transformará em crédito[4] para ser descontado do imposto a pagar na etapa seguinte, em uma sistemática de crédito financeiro que abrange amplamente custos e despesas indiretas, inclusive despesas financeiras em operações de crédito e arrendamento mercantil (LC 214/2025, Art. 194, 203, 366, V, 383, 385, 406).

 

Aliado a isso, o princípio da tributação no destino, elemento central da reforma tributária formalizada pela Emenda Constitucional nº 132/2023, redefine completamente a lógica do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e, ao ser expandido para o novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), põe um fim à danosa “guerra fiscal” entre os estados.

 

Anteriormente, a arrecadação do imposto, especialmente em operações interestaduais destinadas a consumidores finais não contribuintes, pertencia integralmente ao estado de origem. Com a posterior criação do Diferencial de Alíquota do ICMS (DIFAL), por meio da Emenda Constitucional nº 87/2015, buscou-se promover uma repartição mais equitativa da receita entre os entes federativos. Após diversas reformas, foi convencionado que o DIFAL é a diferença entre a alíquota interna do ICMS do Estado de destino e a alíquota interestadual do ICMS aplicada pelo Estado de origem. Ele incide nas vendas e prestações interestaduais destinadas a consumidor final contribuinte ou não do imposto. Seu cálculo é simples: subtrai-se a alíquota interestadual da alíquota interna do Estado de destino e aplica-se essa diferença sobre o valor da operação.

 

Apesar do DIFAL tentar equilibrar essa disparidade, ainda existe certa complexidade operacional e insegurança jurídica. Com a criação do IBS e da CBS, ambos estruturados com base no princípio do destino, a arrecadação passa a ocorrer no local onde efetivamente se dá o consumo do bem ou serviço, de forma automática e uniforme. Será como recolher o ICMS, sem maiores complicações. Isso elimina a necessidade de mecanismos como o DIFAL, pois o próprio sistema tributário passa a assegurar a distribuição das receitas entre os entes federados. Além disso, a reforma busca simplificar a apuração e o recolhimento dos tributos, reduzir a cumulatividade e os litígios, e tornar o sistema mais transparente e eficiente, corrigindo de maneira estrutural os problemas que o DIFAL apenas mitigava parcialmente.

2.2. Tratamentos Favorecidos e o Imposto Seletivo

 

A Constituição, em sua conformação pós-reforma, reconhece a importância de se estabelecer tratamentos tributários diferenciados para setores específicos, visando promover o desenvolvimento socioeconômico e reduzir desigualdades, o que se manifesta, por exemplo, na concessão de incentivos fiscais para regiões menos desenvolvidas. No âmbito dos novos tributos sobre bens e serviços (IBS e CBS), foram instituídos regimes diferenciados com alíquotas reduzidas ou concessão de créditos presumidos, de forma uniforme em todo o território nacional, com o objetivo de reequilibrar a arrecadação.

 

A lógica por trás desta premissa é que, ao tributar quase tudo e adotar a não cumulatividade plena; que permite o creditamento abrangente de todo o imposto pago na aquisição de bens e serviços necessários à atividade, desonerando a cadeia produtiva; a alíquota necessária para manter a arrecadação pode ser menor do que a soma das alíquotas atuais, contribuindo para a neutralidade econômica e a competitividade dos preços. É sobre essa regra geral de ampla incidência que se constroem as exceções e os tratamentos específicos, considerados vitais para a sustentabilidade e o desenvolvimento de setores essenciais da economia brasileira.

 

Para bens e serviços essenciais, a LC 214/2025 prevê uma redução de 60% nas alíquotas do IBS e da CBS em operações que envolvam, entre outros, alimentos destinados ao consumo humano (com exceção daqueles já com alíquota zero), serviços de transporte coletivo rodoviário, ferroviário e aquaviário, produtos e serviços de saúde, bem como serviços de educação.[5] Adicionalmente, com um claro alcance social e em observância ao direito fundamental à alimentação, foi criada a Cesta Básica Nacional de Alimentos, cujos produtos, definidos em lei complementar, terão suas alíquotas de IBS e CBS reduzidas a zero. Quanto aos produtores rurais, a legislação estabelece que aqueles que sejam pessoas físicas ou jurídicas, que auferirem receita anual inferior a R$ 3.600.000,00 e os produtores rurais integrados, não serão considerados contribuintes do IBS e da CBS. Para estes produtores não contribuintes, a sistemática prevê a suspensão do pagamento do IBS e da CBS no fornecimento de produtos agropecuários in natura para contribuintes do regime regular que os industrializem para exportação, e o adquirente desses produtos adquire o direito à apropriação de créditos presumidos.[6] Essa abordagem visa manter a não cumulatividade da cadeia produtiva, que busca tributar a riqueza nova e evitar a dupla incidência, repassando o ônus econômico ao consumidor, ao mesmo tempo em que oferece uma solução para evitar a oneração e a complexidade burocrática para o pequeno e médio produtor rural, ao não os tornar contribuintes diretos dos novos tributos.

 

Contudo, a reforma tributária também instituiu o Imposto Seletivo (IS), conforme previsto no art. 153, VIII, da Constituição Federal, incidente sobre a produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. Este tributo possui um claro objetivo extrafiscal, que se manifesta na utilização da tributação como instrumento de política econômica e social para desestimular ou estimular determinadas condutas ou consumos. A incidência do Imposto Seletivo, ainda pendente de maiores regulamentações específicas, ocorre na produção, extração, comercialização ou importação, e o pagamento na importação, por exemplo, deve ocorrer no registro da declaração de importação. É neste ponto que reside um potencial desafio para o agronegócio, caso o tributo venha a incidir sobre insumos agrícolas como defensivos, devido à sua classificação como “prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente”.

 

Tal cenário criaria uma situação juridicamente contraditória: enquanto o IBS e a CBS sobre esses insumos teriam alíquotas reduzidas (visando proteger a produção e a competitividade, conforme o regime diferenciado do IBS e da CBS que prevê alíquotas reduzidas ou créditos presumidos para reequilibrar a arrecadação e se aplica, no que couber, à importação), o Imposto Seletivo imporia uma tributação “punitiva” sobre o mesmo item para desestimular seu uso.

 

A calibração das alíquotas do Imposto Seletivo caberá ao legislador complementar, que por meio de lei ordinária, estabelecerá a alíquota aplicável a cada um dos produtos tributos que onerará. Deverá o legislador ponderar cuidadosamente o equilíbrio entre o desestímulo ao uso de produtos considerados nocivos e o objetivo de não anular os benefícios concedidos ao setor produtivo, evitando um aumento indesejado nos custos da produção agrícola nacional, e assegurando, ao mesmo tempo, a efetiva diminuição do uso de agrotóxicos. É fundamental que essa calibração respeite os princípios constitucionais, incluindo o da não confisco, que, embora não se oponha necessariamente à tributação extrafiscal elevada quando esta busca fins específicos, exige que a carga tributária total suportada pelo contribuinte seja razoável e não absorva toda a renda ou patrimônio.

3. Análise Crítica dos Impactos da Reforma no Plano Safra e na Competitividade

3.1. O Fim do “Custo Brasil” e os Ganhos de Competitividade Sistêmica

Um dos maiores benefícios prometidos pela Reforma Tributária é o ataque direto a um dos mais antigos e persistentes vilões da economia nacional: o “Custo Brasil”. Para o agronegócio, isso se materializa de formas muito concretas, a começar pela efetiva desoneração das exportações. Embora a Constituição já previsse que não se deveria exportar impostos, por meio da interpretação do art. 149, § 2º, inciso I, o sistema antigo com seu acúmulo de créditos de ICMS e a complexa apuração de PIS/COFINS, dificultava a implementação desse princípio na prática. Importante salientar que o preço do produto brasileiro no exterior carregava um resíduo tributário que nos tornava menos competitivos. Com a não cumulatividade plena e a promessa de um mecanismo ágil para a devolução dos créditos acumulados[7], a tendência é que o produto finalmente saia do país “limpo” de tributos, permitindo que ele concorra em igualdade de condições no mercado internacional. É uma mudança estrutural que potencializa a vocação exportadora do setor.

Outro ganho sistêmico de enorme relevância é o fim da “guerra fiscal”. A tributação no destino, como vimos, elimina a competição predatória entre os estados, trazendo racionalidade e, acima de tudo, segurança jurídica para os investimentos. As decisões sobre onde construir um novo silo, uma planta de processamento ou um centro logístico passarão a ser tomadas com base em eficiência, infraestrutura e acesso a mercados, e não mais em instáveis/políticos benefícios fiscais que poderiam ser questionados judicialmente a qualquer momento. Somado a isso, a unificação de cinco tributos em dois (IBS e CBS) representa uma simplificação radical. A redução do chamado “custo de conformidade”, ou seja, os gastos com advogados, contadores e horas de trabalho dedicadas a decifrar a legislação e preencher incontáveis obrigações acessórias libera recursos e energia para o que realmente importa: produzir com mais qualidade, inovação e proteção ao meio ambiente. Essa simplificação não é um mero detalhe, mas um pilar da nova competitividade, agora expressamente elevado ao patamar de princípio constitucional[8].

3.2. A Calibragem da Carga Tributária e os Desafios para o Fluxo de Caixa

Apesar dos benefícios estruturais, o sucesso da reforma para o produtor rural dependerá crucialmente da calibragem final da carga tributária e da gestão de novos desafios financeiros. O ponto mais sensível é a definição da alíquota e das listas de bens e serviços que terão tratamento favorecido. A promessa de que a carga total não aumentará depende de uma legislação complementar que seja abrangente ao classificar o que é “insumo agropecuário” com direito à alíquota reduzida. Qualquer item essencial que fique de fora dessa lista, e muitas vezes que, embora não sejam produtos agropecuários, são fulcrais para sua manutenção e inovação, como um software específico, um equipamento moderno. Esses itens, caso não se tenha o devido cuidado, poderão ter sua tributação elevada, impactando diretamente o custo de produção. Ademais, o Imposto Seletivo ainda agrava essa insegurança jurídica, uma vez que ainda não se sabe ao certo os parâmetros para se considerar se determinado bem é nocivo ou não ao meio ambiente, ou à saúde.

O desafio mais imediato, contudo, será a gestão do fluxo de caixa. O modelo do IVA opera em uma lógica de débito e crédito: o produtor pagará o imposto “cheio” (IBS/CBS) em todas as suas aquisições, gerando um desembolso imediato de caixa, para só depois reaver esse valor como crédito em suas vendas futuras. O tempo decorrido entre o pagamento do imposto na compra e a sua efetiva recuperação será um fator crítico para a saúde financeira do negócio, especialmente para produtores de menor porte e com menor capital de giro[9]. Se o sistema de devolução de créditos não for extremamente ágil e desburocratizado, como promete a Emenda Constitucional, os produtores poderão se ver em uma situação de “empréstimo compulsório” para o governo, com seu capital de giro preso em créditos tributários.

3.3. A Relação com o Plano Safra e as Futuras Controvérsias Jurídicas

A nova dinâmica de fluxo de caixa se conecta diretamente com a principal política de fomento do setor: o Plano Safra. Uma eventual demora no ressarcimento dos créditos do IBS/CBS pode aumentar a pressão sobre as linhas de crédito de custeio. Ou seja, o produtor poderá precisar de mais recursos do Plano Safra não necessariamente porque seu custo de produção aumentou, mas porque seu capital de giro está temporariamente imobilizado em créditos tributários a receber do governo. Isso exigirá uma recalibragem da política agrícola, que precisará considerar essa nova realidade financeira para dimensionar os recursos e as condições do crédito rural, sob o risco de se tornar insuficiente para atender à demanda gerada pelo próprio sistema tributário.

Do ponto de vista jurídico, é certo que a regulamentação da reforma abrirá novas frentes de litígio. A principal delas será, sem dúvida, a discussão sobre o enquadramento de bens e serviços nas listas de alíquotas reduzidas. Veremos empresas recorrendo ao Judiciário para provar que seu produto é um “insumo agropecuário” e, portanto, essencial, buscando o direito ao benefício fiscal. Outra grande fonte de controvérsia será a constitucionalidade da aplicação do Imposto Seletivo sobre determinados produtos, onde se argumentará a violação de princípios como o da essencialidade e o da proporcionalidade. Por fim, o próprio direito ao ressarcimento rápido dos créditos, se não for cumprido, dará origem a uma avalanche de ações judiciais, como Mandados de Segurança, para forçar o Estado a cumprir o prazo estabelecido na Constituição e devolver os recursos que, por direito, pertencem ao contribuinte[10]. O sucesso da reforma dependerá, portanto, não apenas de seu desenho constitucional, mas da qualidade de sua regulamentação e da eficiência da máquina administrativa em torná-la realidade.

Ademais, como a LC 214/2025, em seu artigo 128, prevê a redução de 60% nas alíquotas do IBS e da CBS para operações com produtos agropecuários, aquícolas, pesqueiros, florestais e extrativistas vegetais, essa redução de carga tributária tende a diminuir o custo de produção no campo, contribuindo para ampliar o alcance dos financiamentos ofertados pelo Plano Safra, uma vez que os produtores terão mais margem operacional e poderão investir com maior segurança econômica.

Nesse sentido, isso significa que os produtores passam a dispor de maior liquidez e capacidade de autofinanciamento. Embora que, de fato, o Plano Safra seja uma política pública de crédito rural subvencionado, cuja oferta de recursos depende do governo e dos agentes financeiros credenciados, o fato de os produtores apresentarem melhores condições financeiras, menor risco de inadimplência e maior capacidade de investimento torna o ambiente mais favorável à concessão e à ampliação do crédito rural.

Em outras palavras, com maior solidez econômica, os produtores se tornam mais aptos a acessar as linhas de financiamento do Plano Safra, seja porque atendem mais facilmente aos critérios exigidos pelas instituições financeiras, seja porque têm mais confiança para assumir novos compromissos financeiros, o que tende a elevar a demanda qualificada por crédito.

Destaca-se que o sucesso da reforma tributária, no tocante ao agronegócio, dependerá da harmonização entre os comandos da LC 214/2025 e das outras normas reguladoras da EC 132/23 e os objetivos do Plano Safra. Caso bem regulamentado, o setor pode experimentar avanços importantes em competitividade e sustentabilidade fiscal. Contudo, a ausência de clareza normativa, e uma provável insegurança jurídica e complexidade do novo sistema podem transformar as promessas de desoneração em obstáculos à efetiva aplicação da política agrícola nacional.

Conclusão

A Reforma Tributária instituída pela EC nº 132/2023 representa a mais profunda reestruturação do sistema fiscal brasileiro em décadas. A transição de um modelo caótico e cumulativo para um IVA moderno, pautado na não cumulatividade plena, transparência e neutralidade, tende a ser estruturalmente positiva, o que deve impulsionar a competitividade do setor agropecuário no cenário global.

Contudo, o sucesso da reforma para o agronegócio não está garantido a priori. Ele dependerá criticamente da regulamentação a ser estabelecida por leis complementares. A definição de uma lista abrangente de insumos e produtos com alíquotas favorecidas, a não incidência do Imposto Seletivo sobre insumos essenciais e a implementação de um mecanismo verdadeiramente ágil e eficiente de ressarcimento de créditos acumulados são condições sine qua non para que os benefícios teóricos se materializem.

A interação com o Plano Safra exigirá uma recalibragem das políticas de crédito para se adequar a uma nova estrutura de custos. Em suma, o agronegócio brasileiro encontra-se diante de uma oportunidade histórica de se libertar de amarras tributárias seculares, mas o caminho entre a promessa constitucional e a realidade operacional demandará um acompanhamento atento e uma regulamentação técnica e equilibrada.

 

Referências

Legislação.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 12 jul. 2025.

BRASIL. Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023. Altera o Sistema Tributário Nacional previsto na Constituição Federal para instituir a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e o Imposto Seletivo (IS). Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc132.htm. Acesso em: 12 jul. 2025.

BRASIL. Lei Complementar nº 214, de 16 de janeiro de 2025. Institui o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto Seletivo (IS); cria o Comitê Gestor do IBS e altera a legislação tributária. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp87.htm. Acesso em: 12 jul. 2025.

BRASIL. Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996. Dispõe sobre o imposto dos Estados e do Distrito Federal sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, e dá outras providências. (Lei Kandir). Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp87.htm. Acesso em: 12 jul. 2025.

BRASIL. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. (Código Tributário Nacional). Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172compilado.htm. Acesso em: 12 jul. 2025.

Jurisprudência.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.221.170/PR. Relatora: Ministra Regina Helena Costa. Primeira Seção. Julgado em 22 de fevereiro de 2018. DJe de 24 de abril de 2018. (Define o conceito de insumo para fins de creditamento de PIS e COFINS). Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/ac/acordao-pis-stj.pdf Acesso em 05 ago. 2025.

Doutrina

COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.

TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 20. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2013.

Fontes Institucionais e Dados Diversos.

CENTRO DE ESTUDOS AVANÇADOS EM ECONOMIA APLICADA (CEPEA). PIB do Agronegócio. Esalq/USP. Disponível em: https://www.cepea.esalq.usp.br/br/pib-do-agronegocio-brasileiro.aspx. Acesso em: 12 jul. 2025.

CONFEDERAÇÃO DA AGRICULTURA E PECUÁRIA DO BRASIL (CNA). Publicações e Dados do Setor. Disponível em: https://www.cnabrasil.org.br/. Acesso em: 12 jul. 2025.

MINISTÉRIO DA AGRICULTURA E PECUÁRIA (MAPA). Plano Safra. Governo Federal. Disponível em: https://www.gov.br/agricultura/pt-br. Acesso em: 12 jul. 2025.

CNA vê alta de 5% do PIB do agro do Brasil em 2025 e surpreendente aumento em 2024. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/reuters/2024/12/11/cna-estima-aumento-de-5-do-pib-do-agronegocio-do-brasil-em-2025./>. Acesso em: 4 ago. 2025. ‌

[3] Segundo analistas da Confederação Nacional de Agricultura e Agropecuária e da Reuters, o PIB do Agronegócio, que corresponde por mais de 20% do PIB nacional, deverá crescer ainda mais em 2025.

[4] Observadas as restrições legais previstas no Art. 47 e expressas no Art. 57 da LC 214/2025 para os bens de uso ou consumo pessoal. As operações com documentação fiscal inidônea, em regra, também não integram esse regime de creditamento. Como exceção à regra, a súmula 509 do Superior Tribunal de Justiça, pacificou o entendimento de que em notas fiscais, caso demonstrado, boa-fé e veracidade de compra e venda, é lícito o creditamento. Para além, vale destacar também outra restrição, que está disposta no Art. 49 da lei complementar, referente às operações imunes, isentas ou sujeitas à alíquota zero.

[5] Conforme o artigo 128 da Lei Complementar nº 214, de 16 de janeiro de 2025 (BRASIL, 2025), as alíquotas do IBS e da CBS serão reduzidas em 60% para diversos setores essenciais.

[6] Segundo o art. 164 da Lei Complementar nº 214/2025 (BRASIL, 2025), produtores rurais que auferir receita anual inferior a R$ 3.600.000,00 não serão considerados contribuintes do IBS e da CBS, cabe ressaltar, que no § 1º do mesmo dispositivo, o legislador delimita à figura: produtor rural.

[7] O art. 156-A, § 5º, V, da Constituição Federal, assegura que lei complementar disporá sobre os “prazos para o creditamento do imposto e para o ressarcimento de créditos acumulados”. A celeridade desse ressarcimento é condição essencial para a eficácia do princípio da não cumulatividade e para a desoneração real das exportações.

[8] A Emenda Constitucional nº 132/2023 incluiu o § 3º no art. 145 da Constituição, estabelecendo que “O Sistema Tributário Nacional deve observar os princípios da simplicidade, da transparência, da justiça tributária, da cooperação e da defesa do meio ambiente”. A elevação da simplicidade e da transparência a princípios constitucionais confere maior força normativa a esses objetivos.

[9] A questão do capital de giro é um dos pontos centrais no debate sobre a implementação do IVA. A necessidade de financiar o imposto embutido nas compras até sua posterior recuperação pode exigir que empresas, especialmente as de menor porte, busquem mais capital de terceiros, aumentando seu custo financeiro.

[10] O Mandado de Segurança (art. 5º, LXIX, CF) é o instrumento processual adequado para proteger direito líquido e certo não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública. A demora injustificada no ressarcimento de um crédito tributário é, pacificamente, um ato que pode ser contestado por esta via.

 

[*] Graduando em Direito pela Universidade de Brasília – Membro do Grupo de Competições em Direito Tributário da UnB (TaxUnB).

[**]Graduando em Direito pela Universidade de Brasília – Membro do Grupo de Competições em Direito Tributário da UnB (TaxUnB).

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