Escrito por Letícia Ghizzo [*]
Muito além de comentários agressivos, o discurso de ódio produz efeitos concretos no âmbito individual, social e no campo jurídico, afetando diretamente a dignidade das pessoas e colocando em risco a convivência democrática. Nesse sentido, essa forma de violência levanta debates urgentes sobre os limites da liberdade de expressão no Brasil e o equilíbrio necessário entre o direito à livre manifestação e a proteção de outros direitos fundamentais, como a igualdade e o respeito à diversidade.
Para compreender melhor essa questão, é indispensável recorrer a pensadores que se dedicaram a analisar o papel estruturante da linguagem, evidenciando como ela participa da formação dos sujeitos, da organização das relações sociais e da própria construção da realidade.
Judith Butler, filósofa pós-estruturalista referência nos estudos de gênero, na obra O Discurso de Ódio: uma política do performativo (2021), destaca que a linguagem não é apenas um instrumento de comunicação, mas algo estruturante na formação dos sujeitos e na forma de enxergar a si e ao mundo. Em outras palavras, a autora aponta para a linguagem como o meio de enxergar as relações sociais, em que a construção das formas de reconhecimento que viabilizam a existência em sociedade se dão a partir do discurso e da possibilidade de nomear e classificar a realidade.
Essa perspectiva não é exclusiva da atualidade, uma vez que a autora utiliza das perspectivas de Michel Foucault e Pierre Bourdieu para argumentar sobre o poder do discurso na construção da percepção da realidade.
Além desses, Lévi-Strauss também deve ser mencionado, já que seus escritos também partem da noção de que o mundo social é construído discursivamente. Nesse sentido, o antropólogo destaca que a necessidade de ordenar o mundo por meio da linguagem independe do grau de desenvolvimento tecnológico de uma sociedade, pois cada grupo social cria sua própria rede de significados a partir de classificações e simbolismos (Lévi-Strauss, 1908).
É interessante notar, portanto, que esses autores têm em comum a perspectiva de que o discurso não apenas constitui o sujeito, mas também molda a forma como uma coletividade enxerga e interpreta a realidade.
Diante disso, é fundamental reconhecer a relevância da linguagem, especialmente no contexto do discurso de ódio, um fenômeno grave que ganhou novas dimensões com a popularização das redes sociais e a velocidade com que as informações são transmitidas, situação que cria novas maneiras de comunicação e de relações dentro do cenário digital.
Desse modo, é necessário reconhecer que, no caso do discurso de ódio, os principais alvos dessa violência discriminatória são as minorias sociais. Essa desigualdade que se expressa no discurso misógino, racista, homofóbico e outras manifestações inaceitáveis de preconceito, assumiu novos contornos na contemporaneidade, já que atualmente a intolerância se dissemina com facilidade no espaço digital, amparando-se em uma interpretação distorcida do direito à liberdade de expressão, como se este fosse um direito absoluto e irrestrito. Tal manipulação do conceito é especialmente perigosa, pois abre caminho para a legitimação da violência simbólica e pode acarretar graves consequências sociais.
Sobre essa questão, mais especificamente, Butler (2021) traz reflexões importantes quando destaca o poder da linguagem de ferir, pontuando que os seres humanos são, antes de tudo, seres linguísticos, que dependem do reconhecimento do outro para existir como sujeitos. Dessa forma, é essa dinâmica que torna o discurso de ódio tão destrutivo, dado que atua negando ou distorcendo esse reconhecimento, podendo potencializar as condições de exclusão das minorias sociais.
Ainda em sua obra livro, a autora destaca que as palavras podem ter efeitos concretos, produzindo sofrimento real e afetando diretamente a vida dos indivíduos (Piovezani, 2023). Essa concepção ajuda a compreender o discurso de ódio não como algo restrito a uma “ofensa passageira”, mas como uma forma de violência discriminatória que deve ser enfrentada de forma urgente. Nesse ponto, é importante reforçar que a discriminação discursiva não surge do nada; ao contrário, está enraizada em preconceitos e na exclusão de grupos historicamente oprimidos. É nesse contexto que se alimentam discursos marcados por pela violenta discriminação que é ao mesmo tempo resultado e mecanismo de perpetuação de desigualdades sociais estruturais.
Frente à isso, a liberdade de expressão deve ter seu conceito reforçado: esse direito, assegurado pela Constituição Federal de 1988, integra o rol de direitos e garantias fundamentais previstos na Lei Maior e sua positivação representou um marco da redemocratização, após os anos de Ditadura Militar, período marcado por uma violenta repressão à qualquer forma de expressão e pensamento que não se enquadrasse com o governo da época e seus ideais. Dessa forma, com o intuito de condenar a violação de direitos que ocorreu no período ditatorial e marcar um novo momento para a história do Brasil, a Constituição de 1988 garante a todos os indivíduos a livre manifestação de pensamentos, ideias, opiniões e convicções, sendo a liberdade de expressão, portanto, um pilar da democracia.
Entretanto, ainda que esse direito seja condição indispensável para a existência de uma sociedade democrática, ele não pode ser interpretado como absoluto e irrestrito, sobretudo quando seu exercício resulta na violação de outros direitos fundamentais igualmente assegurados pela Constituição. Nesse sentido, é essencial que os limites da liberdade de expressão sejam de conhecimento geral, a fim de proteger valores como a dignidade, a igualdade e o respeito à diversidade. No caso do discurso de ódio, tais limites são evidentemente ultrapassados, uma vez que não se trata de mera manifestação de pensamento, mas de conduta expressamente vedada pela Lei Maior. Assim, o que deve ser compreendido é que quando uma manifestação atinge a dignidade da pessoa humana e desrespeita os princípios fundamentais, ela deixa de ser expressão legítima de opinião e passa a configurar abuso da liberdade de expressão.
Nesse contexto, os limites à liberdade de expressão encontram respaldo na Constituição Federal, no Código Penal e no recente julgamento do Tema 987 pelo Supremo Tribunal Federal, que decidiu sobre a responsabilidade das plataformas digitais sobre os conteúdos publicados por terceiros, a fim de conter o discurso de ódio e demais crimes no cenário digital. Juridicamente, portanto, é posto que a restrição do direito de cada indivíduo de poder se expressar livremente se justifica, por exemplo, com a proteção de direitos individuais, evitando calúnia, difamação ou invasão de privacidade, conforme previsto nos princípios da dignidade da pessoa humana e do direito à honra. Também é legítimo estabelecer limites em nome da moralidade pública, regulamentando manifestações ofensivas ou obscenas. Ainda, podemos citar a proteção de menores que é outro fundamento essencial, posto que a Constituição assegura a prioridade absoluta à infância e à adolescência, justificando o controle de conteúdos violentos ou sexuais destinados a esse público. Por fim, a liberdade de expressão também pode ser restringida para garantir a segurança e a ordem pública, coibindo discursos que incitem violência, terrorismo ou ódio, em consonância com o dever do Estado de proteger a coletividade e assegurar a democracia.
Em vista disso, as discussões sobre os limites da liberdade de expressão, o discurso de ódio e o cenário digital no Brasil — que ainda se apresenta como um campo complexo de regulamentação e responsabilização jurídica, apesar dos avanços já alcançados — tornam-se cada vez mais necessárias. A discriminação deve ser combatida em todas as suas formas e é necessário lembrar sempre do poder do discurso de moldar estruturas sociais e de construir subjetividades, podendo contribuir para a perpetuação da opressão de determinados grupos sociais já historicamente marginalizados.
Assim, a dignidade da pessoa humana e a igualdade não podem ser relativizadas por uma leitura equivocada da liberdade de expressão como um direito absoluto. Reconhecer os limites desse direito não significa enfraquecê-lo, mas sim seguir a lógica constitucional, sem torná-lo instrumento de violação de outros direitos igualmente essenciais. Esse equilíbrio é imprescindível para a manutenção do Estado Democrático de Direito.
Referências Bibliográficas
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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tema 987: Limites da liberdade de expressão e responsabilidade civil. Recurso Extraordinário nº 1.037.396. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 2 ago. 2025. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/Informac807a771oa768SociedadeArt19MCI_vRev.pdf. Acesso em: 5 set. 2025.
BUTLER, Judith. Discurso de ódio: uma política do performativo. Tradução de Roberta Fabbri Viscardi. São Paulo: Editora Unesp, 2021.
LOBATO, Anderson Cavalcante. O reconhecimento e as garantias constitucionais dos direitos fundamentais. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 33, n. 129, p. 85–98, jan./mar. 1996. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/176384. Acesso em: 5 set. 2025.
LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus, 1990.
PIOVEZANI, Carlos. Resenha: BUTLER, Judith. Discurso de ódio: uma política do performativo. São Paulo: Editora Unesp, 2021. 2023.
[*] Graduanda da 10ª fase do curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Estagiou na 5ª Vara Cível da Comarca da Capital e participou do Núcleo de Pesquisa em Movimentos Sociais. Integra a equipe editorial da Revista Avant. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9013054650777697. E-mail: leticia.ghizzo5@gmail.com.