ENTRE A VERDADE E A VITÓRIA: A DIMENSÃO LÚDICA DA RETÓRICA JURÍDICA

por PET Direito UnB

Escrito por Maria Eduarda Castro de Castro[1]

 Introdução

No cenário dos tribunais contemporâneos, desenrola-se diariamente um espetáculo que se revela, sob o olhar de Johan Huizinga, como uma das mais sofisticadas manifestações do homo ludens, o homem que joga. O ser humano centra sua essência no “brincar” – formas humanas de aquisição de conhecimento e de compreensão do mundo se fundamentam em um processo lúdico. Do mesmo modo, o procedimento judicial, caracterizado pelo formalismo ritualístico e pela natureza agonística, carrega elementos que o aproximam intrinsecamente da atividade lúdica (Huizinga, 2000).

A aproximação entre o jogo e o direito oferece uma perspectiva reveladora sobre como a retórica argumentativa opera no campo judicial. Ao enfrentarem-se em tribunal, os advogados participam de um jogo regrado, no qual a vitória frequentemente depende mais da habilidade persuasiva do que da correspondência absoluta entre argumentos e realidade factual. ​​A relevância desta investigação reside em seu potencial de desnaturalização de práticas discursivas que, embora enraizadas na cultura jurídica, raramente são objeto de reflexão crítica. Compreender o caráter lúdico da argumentação jurídica permite não apenas desvelar mecanismos retóricos frequentemente invisibilizados, mas também questionar em que medida o “jogo” judicial contemporâneo serve efetivamente aos ideais de justiça que alegadamente o fundamentam.

Nesse sentido, propõe-se a exploração da tensão que emerge da conexão fundamental entre as características do jogo e a evolução da prática jurídica, que não deixa de manifestar as particularidades da atividade lúdica (Huizinga, 2000). A noção descrita funciona como ponto de partida para investigação sobre a dicotomia entre a busca pela verdade e o impulso pela vitória no contexto da argumentação jurídica, além de como a dimensão lúdica da retórica jurídica se manifesta nos tribunais contemporâneos. Assim, parte-se da concepção de Huizinga do direito como fenômeno intrinsecamente ligado ao jogo, que molda não apenas as estratégias argumentativas dos operadores do direito, mas também a própria construção da realidade jurídica e de sua manifestação em tribunais contemporâneos.

O direito como jogo

A cultura humana, em suas mais diversas manifestações, emerge do jogo e se desenvolve em formas lúdicas, o que chega à natureza do direito, que não é uma esfera puramente abstrata e racional, mas um campo ligado à atividade lúdica. Nessa perspectiva, o jogo não é mera frivolidade ou passatempo, mas uma “função significante”, uma atividade voluntária exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, assim como o fenômeno judicial, que funciona a partir de regras consentidas, no entanto, absolutamente obrigatórias. Dotado de um fim em si mesmo, o direito enquanto jogo é acompanhado de uma consciência diferente da estabelecida na vida quotidiana (Huizinga, 2000).

O caráter agonístico se fixa em uma competição regulada, presente tanto no jogo quanto no direito, que, nesse sentido, tornam-se parte de uma mesma classificação. O litígio não é a suposta busca pela verdade, mas a luta formal entre as partes: um combate em que o objetivo é vencer, ao seguir regras preestabelecidas. A natureza adversarial persiste nos sistemas processuais contemporâneos, nos quais a lógica “ganhar ou perder” frequentemente se sobrepõe à busca pela justiça fundada na verdade material.

Outro elemento crucial é a delimitação de um espaço sagrado onde o jogo se desenrola (Huizinga, 2000). O tribunal é um espaço quase apartado do mundo comum, regido por normas específicas – adentrá-lo significa que os participantes concordam em se submeter às regras do “jogo” judicial, inclusive no que diz respeito às vestimentas e ao modo de se comunicarem. Desse modo, o formalismo e o ritualismo que caracterizam os procedimentos jurídicos são manifestações da dimensão lúdica do direito.

As vestimentas solenes, os procedimentos rígidos, a construção silogística e a linguagem arcaica não são meros adornos, são componentes que marcam a distinção entre a “brincadeira séria” do direito e a vida cotidiana (Huizinga, 2000). Assim como as regras de um jogo, essas formalidades criam uma realidade própria e um universo simbólico em que as regras da disputa são claras e a autoridade da decisão é reforçada. O aparato ritualístico é fundamental para a legitimação do poder judicial e para a construção da crença na justiça (Garapon, 1997).

As estruturas mais elementares do direito estão enraizadas em comportamentos humanos essencialmente compartilhados com a atividade lúdica. Dessa forma, a retórica e a argumentação se inserem nesse “jogo” do direito, o qual se torna mera competição, na qual a busca pela vitória, muitas vezes, se torna o principal objetivo dos jogadores. No entanto, o que se afasta dessa disputa é o compromisso com o objeto fundamental do direito: a promoção da justiça a partir da análise crítica das múltiplas narrativas, por meio da qual se  concluiria a realidade dos fatos.

A dimensão retórica do discurso jurídico

A retórica mantém relação íntima com o direito desde suas origens na Grécia Antiga: o gênero judiciário já se manifestava como vertente do discurso persuasivo, o que denota o papel central que o discurso jurídico ocupa na reflexão sobre a retórica e a persuasão. No entanto, é apenas no século XX, após séculos de desvalorização, que a retórica volta a ganhar força a partir de sua dimensão argumentativa. A “Nova Retórica” de Chaïm Perelman resgata sua conexão com a busca pelo razoável, e a associa com o direito, uma vez que, no campo jurídico, não se lidam com verdades absolutas, mas com o plausível e o verossímil – o domínio da argumentação: narrativas razoáveis (Perelman, 2005).

O reconhecimento de que a retórica argumentativa jurídica visa à persuasão de um auditório específico permite alinhar essa perspectiva à concepção de Huizinga do direito como jogo. A noção de auditório é central, visto que é no contexto judicial que o orador precisa adaptar seu discurso a múltiplos auditórios simultaneamente: ao juiz, à parte adversária, à comunidade jurídica e à opinião pública. Essa multiplicidade transforma a argumentação jurídica em um jogo complexo, no qual diferentes estratégias retóricas precisam ser mobilizadas para conquistar a vitória frente aos diferentes públicos.

Técnicas argumentativas constituem o arsenal retórico dos jogadores no campo jurídico, as dissociações de noções e os argumentos quase-lógicos ou os apenas baseados na estrutura do real são empregados para construção de narrativas persuasivas (Perelman, 2005). No jogo judicial, o domínio destas técnicas é frequentemente mais decisivo para a vitória do que a correspondência entre os argumentos e uma suposta verdade objetiva. O discurso jurídico não se pauta em discurso sobre a verdade, mas sobre a verossimilhança (García Amado, 1999). A argumentação jurídica não busca a descrição de uma realidade factual, e sim a construção de uma narrativa coerente e persuasiva a partir dos fatos disponíveis, e é inevitavelmente seletiva e interpretativa – destaca certos aspectos e obscurece outros, em conformidade com os interesses em disputa no jogo judicial.

O caráter agonístico do procedimento judicial se destaca. Então, se a “verdade”, no campo jurídico, é uma construção retórica, o processo se assemelha mais a uma competição de narrativas do que a uma investigação objetiva. Os advogados, como jogadores habilidosos, manipulam as regras da argumentação para apresentar a versão mais favorável aos interesses que defendem, não a mais verdadeira – ou justa.

 O jogo argumentativo nos tribunais contemporâneos

       A dimensão lúdica do direito aparece claramente quando a argumentação jurídica manifesta a utilização de estratégias retóricas como techné, direcionada a vencer o jogo judicial. O discurso jurídico mobiliza três principais – e recorrentes – tipos de estratégias comunicativas: ethos, pathos e logos, visto que a retórica não persuade somente por meio da razão, mas também pelo do caráter do orador e pela mobilização emocional do auditório (Leach, 2002). Estratégias observadas com clareza a partir de análise empírico-retórica das dinâmicas de sessões em tribunais contemporâneos, que, muitas vezes, são transmitidas ao vivo, o que denota uma publicização responsável por modificar a audiência e, consequentemente, as estratégias utilizadas pelos oradores, que se adaptam ao novo auditório (Reis, 2017).

A oralidade nos tribunais intensifica a dimensão lúdica: os discursos são construídos centrados em um objetivo específico. O jogo jurídico, então, não aparece como uma forma de descobrir e de apresentar a realidade, mas de direcionar, persuasivamente, o auditório para a narrativa que se mostra pertinente ao interesse de quem a cria e a defende nos tribunais. Essa construção narrativa é um jogo de perspectivas, no qual a habilidade retórica determina a versão que será aceita como “verdadeira”, o que muito depende das habilidades do orador, e não de seu comprometimento com a transparência da realidade dos fatos.

Na medida em que o processo judicial se assemelha a um jogo, são levantadas questões acerca do real cumprimento dos fins sociais do direito, que não pode ser resumido a uma simples disputa com totalidade de jogadas permitidas (Perelman, 2005). Apesar de sua dimensão profundamente lúdica, o direito não é um fim em si mesmo, é, na verdade, instrumento para concretização de valores como justiça, segurança e bem-estar social.  Reconhecer a dimensão lúdica do direito corrobora maior transparência acerca dos mecanismos retóricos que efetivamente operam nos processos em tribunais, os quais podem ser compreendidos como uma competição regulada entre narrativas concorrentes, e não uma investigação neutra, comprometida com a veracidade dos fatos e consequente produção de justiça.

Nesse sentido, a formação de profissionais do direito deve incorporar esse reconhecimento, uma vez que juristas precisam, não apenas serem capazes de “jogar o jogo jurídico”, mas de refletir criticamente sobre seus objetivos (Roesler, 2018). Deve-se evitar a naturalização da busca pela vitória em detrimento da justiça, que afasta a dimensão lúdica do direito ao reduzi-lo a um mero jogo de habilidades técnicas. Como todo jogo sério, o processo jurídico apresenta regras e objetivos que transcendem a simples competição. O verdadeiro desafio ético é garantir que, no jogo judicial – de natureza ritualística e retórica -, a busca pela vitória não se sobreponha à busca pela verdade e pela justiça.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A dimensão lúdica da retórica jurídica não é um aspecto dispensável, é, na verdade, elemento constitutivo da estrutura judicial contemporânea. Mesmo a tecnicidade e racionalização do campo jurídico não afastam os elementos lúdicos identificados por Huizinga. O caráter agonístico, o espaço delimitado e o formalismo ritualístico – característicos do jogo – continuam a estruturar profundamente a prática judicial.

A tensão entre a busca pela verdade e o impulso pela vitória se revela como dilema central da prática do direito. Reconhecer essa tensão permite uma compreensão mais realista da esfera jurídica. Além de reflexão acerca do direito, de seus mecanismos e de suas limitações, bem como possibilita ferramentas analíticas valiosas para compreender fenômenos na prática jurídica que priorizam a vitória em relação aos seus fins sociais.

O desafio contemporâneo consiste em preservar os aspectos positivos da dimensão lúdica do direito – a capacidade de canalizar conflitos de forma civilizada e sua abertura à pluralidade de perspectivas – enquanto se estabelecem limites éticos que impeçam a subordinação completa da justiça à lógica da vitória argumentativa em uma competição entre habilidades retóricas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXY, Robert. Theorie der juristischen Argumentation: die Theorie des rationalen Diskurses als Theorie der juristischen Begründung. 2. Ed. Frankfurt a.M: Suhrkamp, 1991.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

GARCÍA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madrid: Civitas, 1999.

GARAPON, Antoine. Bem julgar: ensaio sobre o ritual judiciário. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.

HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000.

KENNEDY, Duncan. A Critique of Adjudication. Cambridge: Harvard University Press, 1997.

LEACH, Joan. Análise Retórica. In: BAUER, Martin W.; GASKELL, George (Org.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2002.

PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

REIS, Isaac. Análise empírico-retórica do discurso: fundamentos, objetivos e aplicação. Revista de Estudos Empíricos em Direito, v. 4, n. 2, p. 85-108, 2017.

ROESLER, Claudia. A análise da argumentação judicial em perspectiva crítica: o que fazemos quando analisamos decisões judiciais? Revista Direito & Práxis, v. 8, n. 3, p. 2168-2195, 2017.

[1]Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília e integrante do Programa de Educação Tutorial em Direito da Universidade de Brasília (PET Direito/UnB).

 

 

você pode gostar

Deixe um comentário

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Vamos supor que você está de acordo com isso, mas você pode optar por não participar, se desejar. Aceitar

Privacy & Cookies Policy