Escrito por Grégori Lucas Dias da Silva [*]
Nesta semana, por coincidência do destino e por agrura ínsita ao zeitgeist do processo penal brasileiro, o meu texto ressaltando a importância do habeas corpus foi publicado[1] ao mesmo tempo que o Superior Tribunal de Justiça atingiu a marca de 1 milhão de habeas corpus no seu acervo processual[2].
Em um sistema penal que frequentemente falha em garantir a efetividade de direitos fundamentais elencados no texto constitucional, o habeas corpus permanece como um dos últimos bastiões contra arbitrariedades. No entanto, seu uso massivo — como revelado pelo marco de 1 milhão de writs impetrados no STJ — expõe uma crise estrutural que exige reflexão crítica.
Relator do HC 1.000.000/SE, o Ministro Ribeiro Dantas anotou um breve comentário[3] que instigou uma necessária reflexão tanto do subscritor deste texto quanto de doutrinadores infinitamente mais qualificados que se debruçam sobre o tema do habeas corpus como sucedâneo inconformado de um sistema que se mantém a duras penas[4].
O Ministro Ribeiro Dantas, ao analisar o HC 1.000.000/SE, destacou o que considera ser um desvirtuamento do instituto:
[…] Todavia, antes da análise de eventual manifesta ilegalidade no acórdão impugnado, impõe-se o registro de uma preocupante constatação: como dito acima, atingimos o número antinatural de 1.000.000 de habeas corpus distribuídos perante o Tribunal da Cidadania. Remontando às origens do habeas corpus que, para a maioria dos doutrinadores, deriva da Magna Charta Libertatum, de 1215, imposta ao monarca inglês João Sem Terra, somos obrigados a reconhecer que, no Brasil, a garantia constitucional perdeu quase totalmente sua essência de regulação do direito ambulatório, sendo utilizada como remédio para tudo que envolve o processo penal. Esta Corte, no presente momento, por causa de tal excessiva demanda, conta com auxílio de Juízes de 1ª Instância ― infelizmente não mais neste Gabinete ―, para que os Ministros que integram a Terceira Seção consigam cumprir à importante tarefa de prestar a jurisdição de forma célere, como determina a Constituição da República, sem prejuízo ao jurisdicionado. Tal é o resultado da utilização desmedida de um instituto criado para impedir violações imediatas ou mediatas ao direito de ir e vir, mas que se volta, na atualidade, para temas como nulidades, dosimetria e outras questões que só muito longínqua e indiretamente se referem ao direito de ir e vir. De quem é a culpa? Creio de uma estrutura recursal ultrapassada e não revista devidamente pelo legislador, mas também de todos os operadores do Direito, os quais demoraram a perceber que o desvirtuamento da garantia constitucional, aliada ao enfraquecimento dos institutos próprios do processo penal, tumultuariam de tal maneira o andamento deste Tribunal a ponto de ser necessária a convocação de 100 juízes para auxiliar na missão que pertence aos Ministros desta Casa, qual seja, o julgamento de processos. Fundamental, neste momento marcante, que todos os que vivem do Direito reflitam sobre sua postura e sobre o quanto podem contribuir para mitigar as consequências do excesso de impetrações mandamentais, a fim de que, resolvidos os problemas legais envolvidos ― como se fez no Cível, reforçando os recursos, em especial o agravo de instrumento, que passou a ser interposto diretamente nos tribunais e com a possibilidade de conter as mais variadas formas de tutela de urgência, o que fez parar o abuso dos mandados de segurança já em meados da década de 1990 ― se consiga devolver o habeas corpus a seu devido lugar de garantia constitucional que obsta comportamentos ilegais ou ameaças perpetradas contra o direito de liberdade.”
Embora o Ministro aponte o excesso de HCs como sintoma de esvaziamento do instituto, cabe questionar: seria o problema o uso ‘indevido’ do writ ou a falha contumaz do sistema em oferecer alternativas eficazes?
A despeito do fato de que o Brasil foi o fomentador de uma doutrina inovadora que concerne o habeas corpus, produzindo o writ à moda brasileira que versaria sobre o combate de ilegalidades lato sensu que transcendem a mera configuração de um direito à liberdade ambulatorial, o habeas corpus tornou-se um instrumento que incorpora os contornos de um remédio constitucional voltado à liberdade de locomoção, seja em seu aspecto direto (prisão[5] ou ameaça de prisão[6]) ou indireto (quebra de sigilo fiscal, bancário[7], etc.)[8].
O problema, no entanto, reside na realidade observável que mesmo restringindo o cabimento do HC a algumas hipóteses de cunho ambulatorial, isso não impede a sua multiplicação no acervo do STJ e do STF por uma circunstância que é impossível de negar hoje em dia: os tribunais de instância ordinária ignoram solenemente os entendimentos fixados pelos tribunais superiores, especialmente quando são entendimentos que favorecem o réu.
Essa é uma realidade, inclusive, reconhecida publicamente por Ministros do Superior Tribunal de Justiça.
O Ministro e professor Rogerio Schietti Cruz criticou publicamente o Tribunal de Justiça de São Paulo em seminário organizado pelo IDP por desrespeitar a jurisprudência iterativa da Corte Superior e do próprio Supremo Tribunal Federal[9]. A crítica persistiu em 2023, quando o Ministro Schietti apontou um menosprezo da Corte bandeirante sobre jurisprudência já pacificada nos tribunais ad quem sobre crimes de traficância e seus minorantes, o que levou a um embate público e comentários sardônicos de um desembargador paulista[10].
Se tribunais como o TJ/SP ignoram jurisprudências consolidadas, não surpreende que o HC seja usado como mecanismo de correção necessário e efetivo — ainda que isso o distancie de sua finalidade ambulatorial original.
Não é objetivo deste texto imbuir alguma conduta típica de crime de hermenêutica aos magistrados[11]. Os juízes têm a prerrogativa de dizer o Direito a partir de um livre convencimento motivado, porém a situação posta é que, muitas das vezes, esse livre convencimento motivado opera a partir da ótica de prejudicialidade do réu.
Seja por meio de um exame judicante que vislumbra o direito constitucional ao silêncio como desabonador do caráter do réu[12], seja rejeitando a redução de pena a réu que tenha mantido a primariedade e não tenha condenação penal transitada em julgado contra si[13], seja olvidando a jurisprudência da Corte Cidadã sobre reconhecimento fotográfico do art. 226 do CPP[14], a Justiça brasileira movimenta as suas engrenagens em desprestígio a pilares que não podem ser sonegados no processo penal: a hipossuficiência presumida do réu perante o Estado-acusador e Estado-juiz.
O habeas corpus, desde a sua consolidação nos tempos pós-Rui Barbosa, tem um propósito maior de conferir ao réu um poder mandamental que pode ser invocado a partir de uma ilegalidade que, sim, pode e deve ser estendido a temas que tangenciam a liberdade ambulatorial.
Concessa vênia ao entendimento do douto ministro, o habeas corpus não perde a sua essência pela sua densidade temática e volume prolífico nos acervos dos gabinetes. O habeas corpus só se desvia de seu âmago fundante quando, corretamente utilizado para remediar uma ilegalidade praticada pelo Poder Público, acaba barrado por súmulas ou jurisprudências defensivas criadas justamente para restringir seu acesso à jurisdição estatal[15] ou na própria morosidade do Poder Judiciário em extirpar as irregularidades do processo penal.
O tempo do julgador não é o tempo daquele que se vê o alvo da vez da persecução penal e em um país como o Brasil, que tem um estado de coisas inconstitucional declarado pelo Supremo Tribunal Federal no sistema penitenciário (ADPF 347), este tempo encarcerado por uma dosimetria equivocada, por exemplo, deve e pode ser repelida com a celeridade que é característica inerente do HC[16].
De fato, o Ministro Ribeiro Dantas está correto ao elencar a precariedade dos recursos penais que conseguem expurgar ilegalidades. O fato de o Código de Processo Penal ser um corpo normativo arcaico, de os Ministros do STJ contarem com somente 2 turmas de 5 magistrados e uma seção para julgar recursos criminais e ações de impugnação que vem do Brasil todo, de os operadores do Direito contribuírem para a reprodução desenfreada de writs no STJ também são vicissitudes que merecem reparo.
A questão é que, infelizmente, enquanto não houver uma profunda e duradoura reforma no Código de Processo Penal e na mentalidade de alguns operadores do Direito (juízes, desembargadores, membros do Parquet, delegados, etc.), o habeas corpus seguirá sendo o remédio cabível para coibir a manutenção de injustiças no processo penal. A recalcitrância do próprio sistema afoga os tribunais superiores com HCs que urgem legitimamente a adequação dos moldes processuais penais que se perpetuam nos rincões nacionais aos precedentes qualificados do STJ e do STF[17].
Não se pode culpar o sintoma de um processo penal anômalo como se fosse a causa do abarrotamento processual no STJ. Se alguns alegam que o HC perdeu sua essência pelo volume de impetrações, é preciso lembrar que sua expansão doutrinária no Brasil surgiu justamente para compensar falhas do sistema recursal e do sistema de justiça — não por má-fé dos operadores do Direito.
Parafraseando o professor Aury Lopes Jr., o jurista tem o compromisso ético e epistêmico com a legalidade estrita no processo penal. Se o Estado-juiz e o Estado-acusação olvidam o seu papel de controle de legalidade dos atos processuais, não cabe ao hipossuficiente deixar de usar o remédio cabível para forçar a conformação dos agentes estatais ao parâmetro legalmente definido.
A essência do habeas corpus, quer se repute aprazível ou não, é justamente essa: incomodar o Poder Público quando uma injustiça segue posta. O writ, tanto o preventivo quanto o repressivo, é uma ação mandamental de impugnação, sendo, portanto, totalmente adequado o seu emprego ampliado para tornar efetivo de direitos e garantias fundamentais que foram preteritamente desconstituídos no processo penal.
[1] Silva, Grégori Lucas Dias da. Não é Possível Conceber Um Estado Democrático de Direito Sem Um Habeas Corpus Efetivo. Portal Jurídico dos Estudantes de Direito da UnB. Disponível em: https://www.pjed.com.br/nao-e-possivel-conceber-um-estado-democratico-de-direito-sem-habeas-corpus-efetivo/
[2] Metzker, David. 1 milhão de habeas corpus no STJ: O que isso realmente revela? Portal Migalhas. https://www.migalhas.com.br/depeso/429410/1-milhao-de-habeas-corpus-no-stj-o-que-isso-realmente-revela
[3] Habeas Corpus perdeu a sua essência, afirma o ministro Ribeiro Dantas. Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-mai-01/habeas-corpus-perdeu-sua-essencia-diz-ministro-do-stj-ribeiro-dantas/
[4] Em vídeo no seu perfil do Instagram, o professor Aury Lopes também se debruçou sobre o tema. Disponível em: https://www.instagram.com/reel/DJFkV3lPETl/
[5] RHC n. 212.836/RS, relator Ministro Og Fernandes, Sexta Turma, julgado em 20/3/2025, DJEN de 27/3/2025.
[6] HC 783927, Relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 14 de março de 2023.
[7] “O habeas corpus é medida idônea para impugnar decisão judicial que autoriza a quebra de sigilos fiscal e bancário em procedimento criminal, haja vista a possibilidade destes resultarem em constrangimento à liberdade do investigado.” (AI 573623 QO/RJ, rel. Min. Gilmar Mendes, 31.10.2006)
[8] “A liberdade de locomoção há de ser entendida de forma ampla, não se limitando a sua proteção à liberdade de ir e vir diretamente ameaçada, como também a toda e qualquer medida de autoridade que possa afetá-la, ainda que indiretamente. Daí serem comuns as impetrações de habeas corpus contra instauração de inquérito criminal para tomada de depoimento, contra o indiciamento de determinada pessoa no inquérito policial, contra o recebimento de denúncia, contra decisão de pronúncia no âmbito do processo do Júri, contra a sentença condenatória.” (BRANCO, Paulo Gustavo G.; MENDES, Gilmar. Curso de Direito Constitucional – Série IDP – 19ª Edição 2024. 19. ed. Rio de Janeiro: Saraiva Jur, 2024. E-book. p. 441.)
[9] Ministro Schietti critica TJ/SP por não seguir jurisprudência: “ignoram STJ e STF”. Portal Migalhas. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/330944/ministro-schietti-critica-tj-sp-por-nao-seguir-jurisprudencia—ignoram-stj-e-stf
[10] Vital, Danilo. Seção Criminal do TJ-SP rebate críticas de ministro Schietti, do STJ. Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-fev-25/secao-criminal-tj-sp-rebate-criticas-ministro-stj/
[11] “Para fazer do magistrado uma impotência equivalente, criaram a novidade da doutrina, que inventou para o Juiz os crimes de hermenêutica, responsabilizando-o penalmente pelas rebeldias da sua consciência ao padrão oficial no entendimento dos textos. Esta hipérbole do absurdo não tem linhagem conhecida: nasceu entre nós por geração espontânea. E, se passar, fará da toga a mais humilde das profissões servis, estabelecendo, para o aplicador judicial das leis, uma subalternidade constantemente ameaçada pelos oráculos da ortodoxia cortesã.” (Obras completas de Rui Barbosa, Trabalhos Jurídicos, Ministério da Educação e Saúde. Biblioteca Digital do STF, Rio de Janeiro, Vol. XXIII, Tomo III, 1896)
[12] Schietti diz que TJ/SP cometeu injustiças e STJ absolve réu de tráfico. Portal Migalhas. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/387881/schietti-diz-que-tj-sp-cometeu-injusticas-e-stj-absolve-reu-de-trafico.
[13] STJ adverte TJ/SP por descumprir precedentes; desembargador rebate. Portal Migalhas. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/409921/stj-adverte-tj-sp-por-descumprir-precedentes-desembargador-rebate
[14] Pesquisa no STJ mostra ainda resistências à jurisprudência sobre reconhecimento de pessoas. STJ Notícias. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/17052024-Pesquisa-no-STJ-mostra-ainda-resistencias-a-jurisprudencia-sobre-reconhecimento-de-pessoas.aspx.
[15] Campagnani, Arnaldo Lares. Súmula 7 do STJ, jurisprudência defensiva e seus custos. Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-fev-20/sumula-7-do-stj-jurisprudencia-defensiva-e-seus-custos/.
[16] Oliveira, Diego Renoldi Quaresma de. Habeas Corpus como substitutivo de revisão criminal. Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-dez-13/habeas-corpus-como-substitutivo-de-revisao-criminal/
[17] Valente, Fernanda. Tribunais ainda resistem a aplicar precedentes do STJ, dizem ministros. Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-mai-28/tribunais-resistem-aplicar-precedentes-stj-dizem-ministros/
[*] Graduando em Direito na Escola de Direito do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa em Brasília. Foi integrante da Clínica de Direitos Humanos do IDP. É membro da Liga LGBT do IDP e fez parte da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). É membro ouvinte da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/DF (2025-2027). É integrante do Grupo de Pesquisa sobre Direito do Trabalho e Processo do Trabalho da EDAP/IDP e do (R)existir – Núcleo LGBT+ da Universidade de Brasília (UnB).
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Uma excelente texto, com relevância para os tempos atuais, por vezes vimos a justiça ser pisada por arbitrariedade de alguns magistrados mas os de relevância e apego as leis e a constituição estão sempre em defesa da justiça, parabéns!