Escrito por Jean Santana de Lima[i]
Introdução
O Poder Judiciário, ao exercer a jurisdição constitucional, cumpre seu papel de guardião da ordem constitucional e dos direitos fundamentais. No entanto, a ascensão da atuação do STF desafia as concepções tradicionais da separação de poderes e equilíbrio institucional. Este artigo analisa a emergência de um “parlamentarismo judicial”, fenômeno no qual o STF assume um papel político central, a partir da tese da “commonlawlização de uma nação de civil law“. A análise demonstrará como essa transformação, ao mesmo tempo que permite ao STF atuar na salvaguarda da ordem constitucional, gera riscos à responsabilidade política dos demais poderes e à separação de poderes. A partir das perspectivas de Luiz Vianna, Bourdieu, Commaille, Galanter, entre outros, o texto disseca essa evolução, identificando a prisão domiciliar de Fernando Collor como manifestação exemplar dessa dinâmica.
I. A Metamorfose do Sistema Jurídico
A transição do Brasil para um sistema jurídico híbrido pode ser vista como uma resposta institucional pragmática à crise de ineficiência e insegurança jurídica, em sintonia com transformações nas culturas jurídicas da América Latina (Pérez-Perdomo; Friedman, 2003). A litigância em massa e as decisões conflitantes expuseram os limites do civil law tradicional. Ao importar instrumentos de uniformização do common law, buscou-se eficiência, mas isso teve uma consequência política profunda: ao fornecer ao Judiciário as ferramentas do common law, conferiu-lhe também o poder dos juízes desse sistema. Assim, conferiu-se ao Judiciário um grau de autoridade interpretativa inédito em país de tradição romanista, inaugurando uma nova configuração de poder no Estado. Além de alterar a fonte primária do direito (lei vs. decisão judicial), outra diferença fundamental reside na metodologia do raciocínio: o civil law opera de forma dedutiva, enquanto o common law opera de forma indutiva.
Como será detalhado, a decisão no recente caso Collor não se caracteriza como dedução da Lei de Execução Penal (LEP), mas indução: a partir dos fatos específicos da saúde de Collor, um princípio constitucional (dignidade humana) foi invocado para criar uma solução que se sobrepôs à regra estatutária, solução não prevista em lei, mas aplicada pela Suprema Corte. Essa “commonlawlização” foi impulsionada por marcos como a Constituição de 1988; a súmula vinculante, criada pela emenda constitucional nº 45/2004, e a introdução do sistema de precedentes no Código de Processo Civil de 2015 (arts. 926 e 927). A busca por uma solução dos casos submetidos à decisão do STF gerou as condições para o que se pode chamar de fenômeno político do “parlamentarismo judicial”.
II. O STF como Arena Política e a Emergência do Parlamentarismo Judicial
A ascensão do Judiciário reflete uma complexa interação de fatores. Vianna (1999) destaca uma mudança gradual de preferência pública para o Judiciário, evidenciando sua crescente centralidade. Esse processo de “positivação do direito natural” aponta para a internalização do Estado pela sociedade civil, que se organiza em torno de novas postulações por direitos, reatualizando a relação entre direito e justiça por meio da inclusão de princípios normativos nas constituições. Esse novo legislar, mesmo que simbólico, legitima valores e impulsiona a desneutralização judicial e a judicialização da política, que se tornam globais.
A judicialização da política não deve ser confundida com o ativismo judicial. Enquanto a primeira decorre da provocação legítima do Judiciário em função de conflitos que exigem interpretação constitucional, o segundo implica uma atuação proativa que pode suscitar debates sobre a separação dos poderes, atuação esta relacionada ao alcance das decisões judiciais. Pérez-Perdomo e Friedman (2003) reforçam esse diagnóstico ao analisar a transformação das culturas jurídicas latinas. Historicamente, juízes na tradição romanista tinham um papel modesto, sendo meramente a “boca da lei”, com a expectativa de que preservassem o status quo por meio de uma interpretação formalista. Contudo, os autores observam uma mudança significativa no final do século XX: a perda relativa de poder do sistema político tradicional levou a um aumento da importância e do prestígio dos juízes. O uso crescente do sistema judicial para resolver conflitos políticos, especialmente contra o Estado, tornou-se notável, refletindo expectativas crescentes da população por uma justiça mais efetiva, intrinsecamente ligadas à democratização e à proteção de direitos por instituições eficazes. Pode-se sugerir que esse processo se relacione à busca pela concretização de direitos que outros poderes não corresponderam à expectativa.
Nessa arena, que Bourdieu (1986) define como um campo jurídico de poder simbólico, a interpretação judicial torna-se uma função de invenção. Decisões como o reconhecimento da união homoafetiva ou a criminalização da homofobia são atos de construção da realidade social, nos quais a Corte cria direito quando a lei é omissa. Esse fenômeno se agrava em um contexto de crise representativa, em que, como aponta Commaille (2007, p. 310), a justiça se torna um “substituto de um político incapaz”. Essa atuação do STF, embora responda a omissões legislativas, pode perpetuar um ciclo vicioso: ao resolver temas controversos, reforça a situação em que o Congresso se abstenha de seu papel, o que gera mais omissões e, consequentemente, mais intervenção judicial, enfraquecendo as instâncias representativas.
III. O Parlamentarismo Judicial na Prisão Domiciliar Humanitária de Fernando Collor (2025)
A concessão de prisão domiciliar humanitária a Fernando Collor, condenado na Ação Penal (AP) 1025 a regime fechado, é um microcosmo do novo sistema jurídico brasileiro. Embora a “letra da lei” — LEP (art. 117) e CPP (art. 318) — não preveja o benefício para condenados ao regime fechado, a jurisprudência criou a figura da prisão domiciliar humanitária, com base na ponderação de princípios constitucionais como dignidade da pessoa humana e direito à saúde. Princípios constitucionais, por estarem no topo da hierarquia normativa, podem sobrepor normas infraconstitucionais, desde que sua aplicação seja proporcional, fundamentada e voltada à proteção de direitos fundamentais.
A decisão, sustentada por laudos médicos e parecer favorável da PGR, seguiu essa lógica, priorizando a Constituição sobre a literalidade da lei ordinária. Isso, contudo, suscita questões sobre a isonomia dessa aplicação e a equivalência dos princípios a normas legisladas. Ironicamente, a medida, embora aparente ruptura com o civil law, revela sua “commonlawlização”, ao aplicar um precedente consolidado ao caso específico. O verdadeiro paradoxo está em até que ponto princípios constitucionais — pela sua abertura e abstração — podem ser utilizados para construir jurisprudência que se sobreponha à legislação vigente sem comprometer a previsibilidade e a segurança jurídica. Isso torna, em tese, qualquer decisão que deveria aplicar a lei penal direta em uma textura aberta mais ampla, a la Hart (2018), em que as decisões não seguem o estritamente positivado em lei.
IV. Implicações Críticas e Riscos para a Ordem Democrática
Essa proeminência crescente do Judiciário, embora percebida como uma resposta necessária a crises políticas e omissões legislativas, impõe profundos questionamentos sobre o equilíbrio democrático[i]. A intervenção judicial não apenas interpreta a lei, mas constrói a realidade social, arriscando-se a que suas decisões, pautadas por relações de força internas ao campo jurídico, resultem em novas imposições normativas. Essa expansão de atuação pode gerar uma dependência institucional, comprometendo a vitalidade da autonomia social. Embora a busca por uma justiça responsiva seja um ideal, sua implementação desequilibrada pode comprometer a previsibilidade e a certeza jurídica
A crítica mais contundente ao caso Collor é a percepção de uma “justiça seletiva”, que reforça a narrativa de que existem “duas justiças” no país: uma para os ricos e influentes, e outra para o cidadão comum. Essa percepção ecoa a parábola de Kafka (2020), em “Diante da Lei”. Na narrativa, um homem do campo busca incessantemente o acesso à Lei, mas é barrado por um porteiro que, no fim, revela que aquele portão era destinado exclusivamente a ele. A alegoria serve como metáfora para a seletividade do sistema: uma justiça que, em teoria, é para todos, mas cujos portões, na prática, parecem se abrir apenas para uma elite.
Essa dinâmica também é explicada por Galanter (1984), que distingue os litigantes entre “repeat players” (jogadores recorrentes) e “one-shotters” (jogadores ocasionais). Os “repeat players” são partes, como grandes corporações ou figuras políticas influentes, que têm recursos, experiência e um volume de litígios que lhes permite jogar a longo prazo, moldando as regras a seu favor e navegando com mais facilidade pelas complexidades do sistema. Em contraste, o “one-shotter”, o cidadão comum, tem recursos limitados e um interesse único e imediato, tornando-se mais vulnerável às barreiras formais da lei. O caso Collor, nesse contexto, materializa o acesso privilegiado de um “repeat player” a um portal que, para muitos outros, permanece fechado.
Conclusão: Navegando a Identidade Híbrida do Brasil
O desafio central reside em reconhecer que a salvaguarda da ordem constitucional pelo STF, embora essencial, não deve culminar em um governo dos juízes que desmonte a arquitetura democrática e a produção normativa a partir do Legislativo. A dinâmica da justiça em um cenário de constantes transformações requer um equilíbrio delicado: como garantir a efetividade dos direitos e a integridade constitucional, sem que a Corte se torne o palco exclusivo da deliberação sobre o futuro da democracia brasileira? A resposta reside em promover o diálogo interinstitucional e a corresponsabilidade dos poderes, assegurando que a legitimidade da ação judicial não se confunda com a suplência da representação política. Vale dizer, a superação desse parlamentarismo judicial não exige a diminuição do papel constitucional do Judiciário, mas o fortalecimento dos demais poderes e o engajamento de uma sociedade civil vigilante.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOURDIEU, Pierre. A Força do Direito: Elementos para uma sociologia do Campo Jurídico. In: BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. p. 209-254.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Penal 1025. Corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Réu: Fernando Collor de Mello. Relator: Min. Edson Fachin. Julgamento em 31 mai. 2023. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=508173&ori=1. Acesso em: 17 jun. 2025.
COMMAILLE, Jacques. La justice entre détraditionnalisation, néolibéralisation et démocratisation: vers une théorie de sociologie politique de la justice. In: COMMAILLE, Jacques; KALUSZYSNKI, Martine (dir.). La fonction politique de la justice. Paris: La Découverte/PACTE, 2007. p. 295-321.
GALANTER, Marc. A justiça não se encontra apenas nas decisões dos tribunais. In: HESPANHA, Antonio. Justiça e litigiosidade: História e prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. p. 59-117.
HART, H. L. A. O conceito de direito. Tradução de Antônio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018.
KAFKA, Franz. Diante da lei. In: KAFKA, Franz. O processo. São Paulo: Martin Claret, 2020.
PÉREZ-PERDOMO, Rogelio; FRIEDMAN, Lawrence M. (Eds.). Legal Culture in the Age of Globalization: Latin America and Latin Europe. Stanford: Stanford University Press, 2003.
STF Notícias. STF concede prisão domiciliar humanitária ao ex-presidente Fernando Collor. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-concede-prisao-domiciliar-humanitaria-ao-ex-presidente-fernando-collor/. Acesso em: 19 jun. 2025.
VIANNA, Luiz Werneck et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999
VIANNA, Luiz Werneck. Poder Judiciário, “positivação” do direito natural e história. Revista Estudos Históricos, v. 9, n. 18, p. 263-282, 1996. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/viewArticle/2033. Acesso em: 05 jun. 2025.
[i] Commaille, 2007.
[i] Aluno do 2 º semestre de semestre em Direito na UnB, membro do Veredicto Projeto de extensão. E-mail para contato: jeansantanadelima@gmail.com.