Escrito por Sofia Lopes Rodrigues [*]
Introdução
Em julho de 2025, após ser aprovado no Senado Federal e na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei (PL) nº 2.159/2021[i], que institui a nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental (LGLA), foi encaminhado para sanção presidencial[ii]. Apresentada sob o argumento de promover o desenvolvimento sustentável, simplificar procedimentos e garantir segurança jurídica para empreendimentos, a proposta legislativa gerou intensa mobilização de movimentos sociais, organizações ambientalistas e povos indígenas, que a classificam como o “PL da Devastação”
De acordo com seus defensores, o PL busca “desburocratizar” o processo de licenciamento ambiental para pequenos e médios empreendimentos, ou seja, de “baixo impacto”. Segundo o senador Wellington Fagundes, relator do PL no Senado, a proposta visa “destravar o Brasil”. Já a senadora Tereza Cristina (PP-MS) identifica que a “urgência de votar esse projeto de lei é porque os empreendimentos maiores precisam. Nós precisamos de modernização, agilidade, sem perder a eficiência e sem precarizar nada”. Por sua vez, o senador Confúcio Moura (MDB-RO) ressalta que “não se trata de uma norma perfeita, definitiva, fixa e imutável, mas sim de um marco inicial, apresentado com o melhor texto possível diante do cenário dos debates”[iii].
Contudo, em julho de 2025, a tramitação do Projeto provocou uma intensa mobilização da sociedade civil. Protestos foram organizados em diversas capitais, como Manaus, São Paulo, Brasília e Porto Alegre, por uma frente de movimentos sociais, pescadores, indígenas, sindicatos e organizações ambientalistas, sob o lema “Sem território não tem vida”[iv]. Desse modo, mais de 350 organizações, como Apib, MST, CUT, SBPC e Observatório do Clima, assinaram um manifesto público classificando o PL como “juridicamente insustentável”[v].
A principal crítica é que a busca por agilidade processual se sobrepõe à proteção ambiental e aos direitos de comunidades tradicionais. Ao flexibilizar regras e restringir mecanismos de participação, a nova lei aprofunda um histórico de invisibilidade e exclusão, representando uma grave ameaça aos territórios e à existência dos povos originários no Brasil. Este artigo analisa os pontos mais críticos da LGLA e seus impactos diretos sobre os direitos indígenas.
A violação do direito à consulta prévia
Um dos retrocessos mais evidentes da nova lei é o esvaziamento do direito à consulta prévia, livre e informada, assegurado pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, e que possui status supralegal. A Convenção determina que os povos interessados devem ser consultados sempre que medidas legislativas ou administrativas possam afetá-los diretamente, por meio de suas instituições representativas.
Art 6° [..] a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-Ios diretamente; b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em todos 4 os níveis, na adoção de decisões em instituições efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas e programas que lhes sejam concernentes; [..][vi].
Da mesma forma, a Constituição Federal de 1988 estabelece como pilar fundamental a proteção e do reconhecimento dos povos indígenas no Brasil. Segundo o art. 231, “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”[vii].
O PL 2.159/2021 contraria diretamente esses preceitos. O texto restringe a manifestação de órgãos como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) apenas a terras indígenas já homologadas, ignorando os territórios que estão em processo de demarcação. Além disso, mesmo nesses casos, a manifestação da “autoridade envolvida” não é vinculante, ou seja, pode ser simplesmente desconsiderada pela autoridade licenciadora na decisão final. Na prática, institucionaliza-se um procedimento que permite ao Estado decidir sobre o destino de territórios sem o consentimento ou a participação efetiva daqueles que os habitam. São ilustrativos os seguintes dispositivos do PL:
Art. 39. [..]a autoridade licenciadora encaminhará o TR para manifestação da respectiva autoridade envolvida nas seguintes situações[..] a) terras indígenas com a demarcação homologada.
Art. 40. [..] a manifestação das autoridades envolvidas sobre [..]ocorrerá nas seguintes situações[..] a) terras indígenas com a demarcação homologada[..]
§ 6º [..] a manifestação das autoridades envolvidas deve ser considerada pela autoridade licenciadora, mas não vincula sua decisão quanto ao estabelecimento de condicionantes ambientais e à emissão de licenças ambientais[..]
§ 8º Findo o prazo referido no § 7º deste artigo, com ou sem recebimento da resposta da autoridade envolvida, a autoridade licenciadora avaliará e decidirá motivadamente sobre a proposta apresentada pela autoridade envolvida.[viii]
Como se observa, o PL 2.159/2021, em seu artigo 40, determina que a manifestação de órgãos como a FUNAI não vincula a decisão da autoridade licenciadora. Por sua vez, o art. 39 restringe essa manifestação a terras indígenas com demarcação já homologada.
Mecanismos de Flexibilização e o Risco Ampliado
A nova lei proveniente do PL introduz modalidades de licenciamento que fragilizam o controle técnico e social sobre os empreendimentos. A Licença por Adesão e Compromisso (LAC), conhecida como “autolicenciamento”, permite que empreendimentos de baixo ou médio impacto sejam licenciados com base em uma autodeclaração do empreendedor, que apenas adere a compromissos preestabelecidos pelo órgão ambiental, sem análise técnica prévia.. Para os territórios indígenas, o risco é imenso, pois atividades como a expansão de pastagens em áreas adjacentes a terras não homologadas poderiam ser autorizadas automaticamente. Veja-se:
Art. 21. O licenciamento ambiental simplificado pela modalidade por adesão e compromisso pode ocorrer se forem atendidas, cumulativamente, as seguintes condições[…]
§ 3º As informações apresentadas pelo empreendedor no RCE devem ser conferidas e analisadas pela autoridade licenciadora por amostragem, incluída a realização de vistorias, estas também por amostragem […][ix]
Nesse sentido, a Licença Ambiental Especial (LAE), proposta via emenda parlamentar pelo senador Davi Alcolumbre, cria um rito prioritário e monofásico para empreendimentos classificados como “estratégicos” por decreto do Conselho de Governo. Esse procedimento acelerado, baseado em análise documental e dispensando vistorias prévias obrigatórias, abre caminho para a aprovação de grandes projetos de infraestrutura, como hidrelétricas e mineração em áreas sensíveis, com pouca ou nenhuma transparência e participação social. Em seus termos:
Seção II-1 Do licenciamento ambiental especial para atividades ou empreendimento estratégicos
Art. 21-2. O procedimento especial se aplica a atividades ou empreendimento estratégicos, assim definidos em decreto mediante proposta bianual do Conselho de Governo. Parágrafo único. A autoridade licenciadora dará prioridade à análise e decisão dos respectivos pedidos de licença ambiental das atividades ou empreendimento definidos como estratégicos na forma do caput.
Art. 21-3. O licenciamento ambiental especial será conduzido em procedimento monofásico, observadas as seguintes etapas: [..]
II – requerimento de licença ambiental especial [..]sob a responsabilidade do empreendedor[..];
III – apresentação à autoridade licenciadora das manifestações das autoridades envolvidas, quando for o caso;
IV – análise pela autoridade licenciadora dos documentos, projetos e estudos ambientais apresentados e, se necessário, solicitação de informações adicionais e complementações, uma única vez [..][x].
Considerações finais
A Lei Geral do Licenciamento Ambiental, embora justificada por uma retórica de modernização e crescimento econômico, representa um grave retrocesso socioambiental. Para os povos indígenas, ela significa a institucionalização de um modelo de desenvolvimento que perpetua a exclusão e a violação de direitos constitucionais e internacionais.
Ao limitar a participação a um ato meramente protocolar e criar mecanismos que facilitam a aprovação de projetos sem a devida análise de seus impactos, o Estado brasileiro abdica de seu dever de proteger os territórios e as culturas originárias. Em tempos de colapso climático e crise civilizatória, o que os povos indígenas oferecem não é resistência, apenas é projeto de mundo. Como afirma Davi Kopenawa: “A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em destruí-la”[xi].
Referências bibliográficas
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 2.159, de 2021. Disponível em: …. Acesso em:
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
BRASIL. Senado Federal. Emenda nº 198 ao Projeto de Lei nº 2.159, de 2021. Disponível em: … Acesso em: ….
BRASIL DE FATO. Mobilização nacional de pescadores protesta contra PL da Devastação: “Sem território não tem vida”. Brasil de Fato, São Paulo, 7 jul. 2025. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2025/07/07/mobilizacao-nacional-de-pescadores-protesta. Acesso em: 10 jul. 2025.
EXTRA CLASSE. Na iminência de ser votado, PL da Devastação é alvo de protestos. Extra Classe, Porto Alegre, 8 jul. 2025. Disponível em: https://www.extraclasse.org.br/ambiente/2025/07/na-iminencia-de-ser-votado-ate-18-julho-pl-da-devastacao-e-alvo-de-protestos/. Acesso em: 12 jul. 2025.
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. 350 organizações assinam manifesto contra o “PL da Devastação”. ISA, Brasília, 8 jul. 2025. Disponível em: https://www.socioambiental.org/noticiassocioambientais/350-organizacoes-assinam-manifesto-contra-o-pl-da-devastacao. Acesso em: 20 jul. 2025.
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução Beatriz Perrone-Moisés; prefácio Eduardo Viveiros de Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
MATTOS FILHO. Congresso aprova o PL 2159/2021, que institui a Lei Geral do Licenciamento Ambiental. Mattos Filho, 22 jul. 2025. Disponível em: https://www.mattosfilho.com.br/unico/congresso-licenciamento-ambiental/. Acesso em: 24 jul. 2025.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT). Convenção nº 169 sobre os Povos Indígenas e Tribais. Genebra, 1989.
SENADO FEDERAL. Licenciamento ambiental: CMA e CRA recebem relatório único. Agência Senado, 07 maio 2025. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2025/05/07/licenciamento-ambiental-cma-e-crarecebem-relatorio-unico. Acesso em: 24 jun. 2025.
SINPRO-RS. Sinpro/RS Ambiental convida professores para ato contra PL da Devastação. Porto Alegre, 07 jul. 2025. Disponível em: https://www.sinprors.org.br/sinproambiental/. Acesso em: 08 jul. 2025.
[*] Estudante do 3º semestre em Direito na UnB. É membro do Veredicto Projeto de Extensão e estagiária na Defensoria Pública da União. E-mail de contato: sofialopesrodrigues66@gmail.com.
[i] Brasil, 2021.
[ii] Conforme o andamento do Projeto de Lei nº 2159/2021 no Senado Federal, o projeto foi aprovado em Plenário em 21 de maio de 2025 e remetido à Câmara dos Deputados em 26 de maio de 2025. Posteriormente, foi encaminhado para sanção presidencial, com prazo entre 21 de julho e 8 de agosto de 2025.
[iii] Agência Senado, 2025.
[iv] Brasil de fato, 2025; Sinpro-RS, 2025.
[v] Instituto socioambiental, 2025.
[vi] Organização internacional do trabalho, 1989, art° 6.
[vii] Brasil, 1988, art° 231.
[viii] Brasil. 2021.
[ix] Brasil. 2021.
[x] Brasil, 2021. Emenda nº 198, de 21de maio de 2025.
[xi] Kopenawa; Albert, 2010.
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