Escrito por Maurílio Henrique Silveira Leite [*]
INTRODUÇÃO
O Estado, em sua complexidade e múltiplas atribuições, necessita de uma sólida infraestrutura financeira para operar. Ao longo da história, diferentes modelos de financiamento estatal surgiram, cada um moldado pelas concepções sociais e econômicas de sua época. Este artigo busca oferecer uma visão panorâmica desses modelos de arrecadação, procurando refletir não apenas sobre a forma como o poder público obtém recursos, mas também sobre as concepções dominantes de liberdade e propriedade, de modo a lançar luz sobre a maneira como a arrecadação estatal foi historicamente legitimada e como foram equacionadas as tensões que envolvem a relação entre os direitos individuais e os interesses coletivos.
DESENVOLVIMENTO
O Estado, dotado de obrigações e objetivos, é detentor de uma infraestrutura complexa que está organizada para viabilizar o exercício de suas atribuições. Portanto, mostra-se incontornável a necessidade de construir meios para assegurar o seu financiamento. Diante dessa questão, comumente se apresentam quatro arranjos estatais distintos: Estado Patrimonial, Estado Empresário, Estado Fiscal e Estado Tributário[1].
Esses modelos estatais são frutos de seus respectivos momentos históricos, especialmente no que diz respeito às concepções de liberdade, cidadania e igualdade, como pode ser observado na transição da Antiguidade para a Idade Média.
Na Antiguidade, comumente os cidadãos estavam dispensados do pagamento de tributos, pois, sendo considerados livres, não deveriam sujeitar-se a esse ônus, o qual era exigido de escravos e estrangeiros. Arcar com tributos era interpretado como uma consequência da falta de liberdade[2].
Essa posição teve que ser reinventada durante a Idade Média, em razão do avanço do cristianismo medieval. Nesse período, a tributação deixou de ser interpretada como um ato de submissão imposto contra a vontade do contribuinte e passou a ser vista pela ótica do consentimento, pois, como aponta o Professor Dr. Schoueri, “o homem era livre e apenas no exercício de sua liberdade é que havia espaço para contribuições”[3], uma vez que, ao menos formalmente, a doutrina cristã não comportava a ideia de submissão ou escravidão. Esse novo arcabouço teórico alcançou até as relações do senhor feudal com seus servos, pois, apesar de estes viverem em condições próximas à subsistência, distanciavam-se dos escravos da Antiguidade, uma vez que suas obrigações decorriam do juramento feudal, que era um ato livre, embora permanente e irresolúvel[4].
No entanto, apenas essa dimensão não explica toda a dinâmica da sociedade feudal, que, relacionada à escassez de mão de obra escrava no Baixo Império Romano[5], encontra raízes ainda no século III, com o surgimento dos colonus: rendeiros livres e pequenos proprietários que, de forma voluntária e mediante a entrega de todos os seus bens[6], buscavam proteção dos grandes proprietários[7], tornando-se seus dependentes. Está aí o embrião do que viria a ser o senhorialismo característico do feudalismo, legitimando a autoridade que o senhor detinha sobre os habitantes e as suas terras, a qual extrapolava a mera propriedade, alcançando áreas da justiça, da defesa militar e da arrecadação tributária[8].
Nessa conjuntura, a cobrança de tributos pelo senhor feudal sobre seus dependentes — pagos com trabalho ou com o produto final[9] — era legitimada por ele ser o proprietário, o chefe, que cedia frações do feudo (as tenures rurais) para cultivo[10]. O tributo não era devido ao Estado, mas ao senhor da própria terra que, nesse momento, aferia sua receita por meio do exercício da propriedade[11]. Configura-se, assim, o Estado Patrimonial, em que a figura do Estado se confundia com a do soberano, e o exercício do poder equivalia ao exercício de seus atos privados, submetidos apenas aos limites da tradição[12].
Com a ruptura da unidade cristã, o crescimento demográfico e a ampliação da atividade comercial, o sistema feudal entrou em crise. Friedrich Engels aponta que os burgueses, ao restabelecerem o dinheiro como principal meio de troca e ao acumularem riquezas, deterioraram o poder dos senhores feudais, de tal forma que “muito tempo antes dos canhões abrirem as brechas nos muros dos castelos, o cimento que os sustentavam foram minados pelo dinheiro”[13].
Como consequência, observou-se o surgimento dos primeiros Estados modernos: monarquias absolutas, inicialmente de caráter mercantil. Nesse novo arranjo, os burgueses conquistam acesso a um mercado amplo e estável, garantido pelos monarcas que enfrentavam as ameaças que o sistema feudal representava para o comércio, lançando assim os pilares da revolução capitalista. No entanto, essas novas instituições absolutistas e centralizadoras não substituíram os arranjos feudais, mas originaram-se sobre eles, como se nota, por exemplo, na perpetuação da administração patrimonial[14].
Em síntese, o patrimonialismo financeiro tem como principal fonte de receita os rendimentos proporcionados pela exploração de seus bens (sobretudo imóveis) e de suas atividades comerciais e industriais[15]. Como consequência, não se vislumbra uma separação entre a economia e o Estado, já que este é um poderoso agente econômico que atua ao lado do particular[16]. Convém apontar que, apesar de remontar às eras feudais e às monarquias absolutas, a ideia de um Estado cuja a principal fonte de financiamento reside em sua atividade econômica encontra exemplos recentes, como os Estados Empresariais, tendo como maiores expoentes as economias socialistas[17].
Entretanto, esse acordo hobbesiano estava atravessado por conflitos nos quais a nobreza e a Igreja se opunham à burguesia, que aspirava a maior capital político e à superação dos entraves da ordem jurídica ao desenvolvimento econômico, o que serviu de substrato para as ideias liberais[18].
John Locke, pai do liberalismo, compreendia que os indivíduos nasciam plenamente livres, regidos apenas pela lei natural. No entanto, o desrespeito a essa lei — como atentar contra a propriedade alheia — levava a sociedade a um Estado de Guerra, no qual a liberdade estava em constante risco, exigindo um contrato social em que os indivíduos concordavam em submeter-se a um governante cuja a principal atribuição seria a conservação da propriedade, requisito essencial para uma liberdade duradoura[19].
Paralelamente, os liberais também defendiam que o Estado deveria afastar-se da economia, limitando-se a observar o seu curso em sua autorregulação (a chamada mão invisível), tornando-se, em contraste com o mercantilismo, um ente improdutivo, a fim de deixar a maior quantidade possível de recursos nas mãos do setor privado, pois, acreditava-se que, por meio da plena liberdade econômica, seria possível alcançar a harmonia e a justiça social[20].
Nesse contexto, surge o Estado Fiscal, consagrando-se como o principal modelo de financiamento dos Estados modernos, tendo nos impostos a sua principal fonte de receita, já que perdeu a primazia como gerador direto de riqueza[21]. A cobrança de tributos unilaterais revelou-se como a técnica que permitiu ao Estado retirar-se da economia, conferindo ao indivíduo maior liberdade econômica, sem, contudo, abrir mão de suas obrigações como garantidor da ordem social, assegurando a liberdade e o direito à propriedade.
Por fim, convém abordar o Estado Tributário, que tem como principal fonte de arrecadação os tributos bilaterais, comumente denominados como taxas, os quais atuam como ressarcimento ao erário pelos serviços prestados. No entanto, trata-se apenas de uma possibilidade teórica, incompatível com os Estados modernos[22].
Esse impedimento decorre da existência de serviços estatais que, por sua natureza, não permitem a individualização de suas vantagens ou benefícios, inviabilizando a cobrança por meio de taxas, devendo, assim, ser custeados por toda a coletividade por meio dos impostos, uma vez que possuem caráter de bens públicos e visam satisfazer necessidades coletivas — como os serviços de segurança pública, política externa, regulação econômica e defesa.
Concomitantemente, há serviços que, embora atendam a necessidades individuais e, portanto, tenham custos passíveis de repartição entre os usuários, devem ser financiados por toda a sociedade por determinação do legislador e, por isso, também devem ser custeados por impostos. São os chamados bens públicos por imposição constitucional, como a saúde (arts. 196 e 198, §1º) e a educação pública (arts. 205 e 206, IV).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscou-se demonstrar, neste breve texto, como os modelos de financiamento estatal estão intimamente relacionados às concepções de liberdade, propriedade e organização social de cada época, seja no Estado Patrimonial, em que o financiamento do Estado ocorria majoritariamente por sua atuação na economia, suprimindo qualquer liberdade econômica, seja no Estado Fiscal, que surge como resposta à inadequação do Estado Patrimonial diante do florescimento das ideias liberais. Este novo arranjo, ao se abster da atividade econômica direta, encontrou no imposto a ferramenta para conciliar a liberdade econômica e individual sem renunciar ao seu papel de garantidor da ordem social.
- NABAIS, 2014, p. 96-97; ROCHA, 2024, p. 15; SCHOUERI, 2025, p. 6-8. 12.
- SCHOUERI, 2025, p. 3-4.
- SCHOUERI, 2025, p. 4.
- SCHOUERI, 2025, p. 6.
- ALMEIDA, 2010, p. 3.
- SARTIN, 2011, p. 52.
- ALMEIDA, 2010, p. 3.
- ALMEIDA, 2010, p. 9; COELHO, 2024, § 3º.
- ENGELS, 2012, p. 118.
- ALMEIDA, 2010, p. 8 e 12; SERFDOM, 2025.
- SCHOUERI, 2025, p. 6.
- PORTELA JÚNIOR, 2012, p. 14 e 15.
- ENGELS, 2012, p. 119.
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- NABAIS, 2002, p. 23; 2014, p. 96.
- SCHOUERI, 2025, p. 7.
- NABAIS, 2002, p. 23, 2014, p. 96.
- VÁRNAGY, 2006, p. 46.
- VÁRNAGY, 2006, p. 59-66.
- SCHOUERI, 2025 p. 10.
- SCHOUERI, 2025, p. 8.
- NABAIS, 2002, p. 26; 2014, p. 97-99.
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[*] Estudante da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, participante do grupo de extensão TaxUnB. E-mail: mauriliohsleite@gmail.com.