Bianca Miranda Soares[*]
Davi Sales Falcão Aquino[**]
Helena Tonial Nunes[***]
O conceito de arte e suas implicações não têm caráter unívoco. Desde a Antiguidade, diversos têm sido seus significados. Resguardado o devido anacronismo, Aristóteles defendeu a arte como mímese da realidade, com certo papel didático. Já na Idade Média, a arte foi concebida como representação do divino, enquanto, nos períodos renascentista e iluminista, destacou-se a ligação intrínseca entre a arte e seu sentido estético. Com o advento da sociedade contemporânea e a consolidação do modo capitalista de produzir e consumir, a arte assume um papel dual: na forma de indústria, funciona como elemento de alienação, introjetando ideais que sustentam o status quo e afastam os questionamentos do povo; ao mesmo tempo, pode se tornar uma ferramenta política emancipadora, capaz de questionar estruturas sociais e provocar reflexões.
Dessa forma, torna-se evidente que a arte constitui um campo de embate político, situado entre dominação e insubordinação, silêncio e denúncia das mazelas da classe trabalhadora e dos grupos marginalizados. Ela funciona também como um respiro em meio a momentos de repressão. Por exemplo, foi em meio ao Estado Novo varguista que surgiu o Teatro Experimental do Negro, movimento teatral fundado por Abdias do Nascimento, cujo corpo de atores era formado por operários, domésticas e outros trabalhadores urbanos. Por meio de iniciativas de alfabetização e cursos de introdução à cultura básica, o grupo buscava promover um entendimento crítico e emancipatório do lugar que a cultura afro-brasileira ocupava no contexto nacional, fazendo com que os indivíduos tomassem consciência de seu papel dentro dos mecanismos racistas da sociedade brasileira. Além disso, o grupo também atuou como agente de ação social: ao fim do Estado Novo, organizou o Comitê Democrático Afro-Brasileiro, com o objetivo de influir nas articulações nascentes do período pós-varguista, mobilizando-se em convenções e congressos para dar visibilidade às pautas do movimento negro do período.
No contexto brasileiro, outras manifestações, especialmente aquelas surgidas ao longo da ditadura militar, também ilustram o papel político da arte, como o Cinema Novo, a poesia marginal e o Teatro do Oprimido. Ademais, não se pode ignorar a importância da arte nos movimentos de base, que não apenas dissemina ideias políticas, mas também fortalece a união dos companheiros de luta em torno de uma causa comum. Em encontros e assembleias do MST, por exemplo, os trabalhos só se iniciam após a celebração da mística. Nesse momento, poemas são lidos e pequenas cenas representadas. Embora não haja intenção de espetáculo no sentido mais convencional da palavra, esses rituais cumprem um papel essencial: instigam o pensamento, levantam reflexões e promovem a coesão do grupo.
Sendo assim, a cultura é, por excelência, um terreno de disputa simbólica, onde narrativas dominantes são questionadas e ressignificadas. Nesse campo, os sujeitos políticos não atuam apenas formalmente, mas também culturalmente: cantando, pintando, performando, disseminando símbolos. Esse ativismo cultural, ou militância cultural, é um campo de luta silenciosa, porém potente, onde se disputam sentidos e identidades. É por isso que práticas artísticas e culturais frequentemente funcionam como armas de resistência, permitindo que diferentes grupos expressem sua visão de mundo e reivindiquem seu espaço social.
Em estudos com movimentos afro-culturais na Bahia, constatou-se que os conceitos de “cultura” e “política” são entendidos de forma semelhante pelos próprios atores, isto é, não há uma separação rigorosa entre os dois. Ser militante não é só fazer política institucional; é fortalecer laços culturais, produzir memória coletiva e articular práticas simbólicas com demandas materiais. Nesse sentido, a cultura deixa de ser apenas um ornamento neutro e se torna política. Assim, cada expressão cultural carrega consigo um posicionamento, ainda que implícito, e contribui para a formação de uma consciência crítica sobre a realidade social.
No ambiente brasileiro, o chamado “midiativismo” exemplifica isso de forma contemporânea. Coletivos como Mídia NINJA articulam linguagens estéticas próprias em redes digitais, construindo uma disputa direta com as narrativas dominantes e criando uma visibilidade política estética, na prática, transformando estética em militância. Essas iniciativas mostram como as novas mídias se tornaram centrais na construção de disputas simbólicas, permitindo que vozes antes marginalizadas tenham maior alcance e impacto.
Nesse sentido, entende-se a estética para além de um mero enfeite. Quando pensamos em comunicação política, seja em cartazes, vídeos, performances ou redes sociais, a estética tem um peso decisivo na forma como a mensagem é percebida, entendida e aceita. Por exemplo, movimentos políticos na Argentina foram analisados, mostrando como suas imagens e encenações visuais constroem sentidos políticos e estabelecem modos de imaginar a política, narrando, em certa medida, as relações com o cidadão. Esse “campo visual” não é neutro: ele carrega consigo subjetividades que influenciam a disputa política real. Isso revela que a dimensão estética não apenas acompanha a política, mas participa ativamente da forma como ela é sentida, vivida e lembrada.
Além disso, no mundo digital contemporâneo há uma fusão nítida entre estética e política de identidades. Influenciadores e plataformas mesclam estilo, linguagem visual e causa política de tal modo que formar uma opinião e apreender uma causa torna-se um processo predominantemente estético. Nesse cenário, os recursos visuais e expressivos não só reforçam a mensagem, mas também moldam a maneira como indivíduos se engajam e, principalmente, a maneira como os sujeitos políticos se reconhecem em comunidades políticas.
Percebe-se, portanto, que a arte militante constitui um potente instrumento de transformação, capaz de tornar concretas questões antes percebidas de forma abstrata, ao retratar e expor problemáticas sociais presentes no cotidiano. Ela promove a conscientização, incentivando o questionamento das estruturas de poder, das desigualdades e das injustiças, ao mesmo tempo em que estimula a mobilização coletiva em torno de causas sociais. Ao dar voz a grupos marginalizados, a arte militante amplia a visibilidade de pautas historicamente silenciadas, preservando a memória das lutas e das formas de resistência e contribuindo para a construção de uma consciência coletiva mais crítica e engajada.
Entretanto, a cultura, enquanto forma de militância, enfrenta desafios constantes. Um dos principais obstáculos é a perseguição direcionada às manifestações artísticas que questionam a ordem vigente e os grupos dominantes. Frequentemente, essas produções tornam-se alvo de censura, em uma tentativa de silenciar as vozes militantes e preservar a alienação social, garantindo a continuidade de estruturas de poder que se beneficiam da falta de criticidade da maioria das pessoas, sobretudo entre aquelas com menor acesso à educação e à cultura.
Outro obstáculo relevante é a desigualdade no acesso à arte e à cultura, que compromete o cumprimento da função provocadora e transformadora da militância cultural. Esse problema é agravado pelo crescimento de desinformações e fake news, que fragilizam e distorcem o sentido do discurso militante. Além disso, a dinâmica das redes digitais cria um paradoxo: ao mesmo tempo em que amplia a circulação das produções, restringe os diálogos a “bolhas sociais”, fazendo com que o conteúdo alcance majoritariamente apenas aqueles que já compartilham valores semelhantes, em vez de promover um debate efetivo com diferentes realidades.
Por fim, no cenário contemporâneo, outro desafio evidente é a mercantilização da arte. Muitas vezes, a estética é valorizada em detrimento da mensagem, e a obra é reduzida a um produto voltado ao lucro e à manutenção de ideais dominantes. O capitalismo, nesse sentido, demonstra grande capacidade de absorver discursos de resistência e transformá-los em mercadorias vendáveis, dificultando ainda mais as lutas sociais. Paralelamente, existe ainda o risco inverso: o de a obra engajada perder o lado artístico e focar somente na mensagem; a criação perde sua complexidade, tornando-se didática e esteticamente empobrecida.
Com todos esses desafios, torna-se evidente que a arte militante vive em um constante tensionamento entre sua potência transformadora e os limites impostos pelo contexto social, político e econômico em que se insere. Ainda assim, é justamente nesse cenário complexo e desafiador que a arte reafirma sua relevância, pois, ao resistir a tais pressões, mantém viva a possibilidade de provocar reflexões, desconstruir hegemonias e ampliar horizontes de consciência coletiva.
Diante desses desafios, torna-se evidente que a arte militante vive em um constante tensionamento entre sua potência transformadora e os limites impostos pelo contexto social, político e econômico em que se insere. Ainda assim, é justamente nesse cenário complexo e desafiador que a arte reafirma sua relevância. Ao resistir a tais pressões, mantém viva a força de provocar reflexões, desconstruir hegemonias e ampliar a consciência crítica. Dessa forma, a arte militante não apenas denuncia e questiona, mas também cria espaços de diálogo, engajamento e resistência, consolidando-se como um instrumento essencial na construção de sociedades mais críticas, inclusivas e pluralistas.
Em síntese, a trajetória histórica da arte demonstra que ela sempre transitou entre múltiplos sentidos e funções, ora como instrumento de expressão estética, ora como veículo de crítica social e política. No contexto contemporâneo, a arte militante evidencia seu papel singular ao promover a conscientização, o engajamento e a reflexão crítica. Apesar dos desafios vivenciados na atualidade, a arte engajada continua a funcionar como espaço de resistência e mobilização, fortalecendo vozes historicamente marginalizadas e preservando memórias de lutas sociais. Dessa forma, a militância cultural deve ser compreendida não apenas como instrumento de denúncia, mas também como espaço de criação e reinvenção de sentidos, capaz de desafiar a ordem estabelecida e projetar alternativas para a construção de sociedades mais críticas, inclusivas e pluralistas.
Referências:
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MARINHO, Gustavo. A arte nos torna mais sensíveis e criativos para pensar nossas formas de luta. Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, 2019. Disponível em: https://mst.org.br/2019/02/14/a-arte-nos-torna-mais-sensiveis-e-criativos-para-pensar-nossas-formas-de-luta/. Acesso em: 6 set. 2025.
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NASCIMENTO JUNIOR, J. Como ser militante de esquerda no campo cultural hoje. Rede em Defesa da Democracia, 2025. Disponível em: https://red.org.br/noticias/como-ser-militante-de-esquerda-no-campo-cultural-hoje-para-reflexao/. Acesso em: 6 set. 2025.
PINTO, João Rodrigues. A palavra enquanto preenchimento ideológico: arte e cotidiano na mística do MST. [S.l: s.n.], [s.d.]. Disponível em: https://semiosfera.wordpress.com/wp-content/uploads/2010/12/a-palavra-enquanto-preenchimento-ideolc3b3gico-arte-e-cotidiano-na-mc3adstica-do-mst_joao-rodrigues-pinto.pdf. Acesso em: 6 set. 2025.
SANTORO, Fernando. Arte no pensamento de Aristóteles. In: PESSOA, Fernando (Org.). Arte no pensamento. 1. ed. Vitória: Museu Vale do Rio Doce, 2006. p. 72–88.
SILVA, Ana Claudia Cruz da. Militância, cultura e política em movimentos afro-culturais. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 52, n. 1, p. 161–200, 2009.
[*]Graduanda em direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membra do projeto de extensão AJUP Roberto Lyra Filho (Assessoria Jurídica Universitária Popular) da Faculdade de Direito da UnB.
[**]Graduando em direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membro do projeto de extensão AJUP Roberto Lyra Filho (Assessoria Jurídica Universitária Popular) da Faculdade de Direito da UnB.
[***]Graduanda em direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membra do projeto de extensão AJUP Roberto Lyra Filho (Assessoria Jurídica Universitária Popular) da Faculdade de Direito da UnB.