Entre a Rua e a Universidade: o Direito Achado na Rua como Fundamento das Assessorias Jurídicas Populares

por AJUP Roberto Lyra Filho

 Escrito por Catarina Pierdoná Wasilewski [1] e Amanda Vaz Tonhá [2].

 

  1. Introdução

O Direito Achado na Rua (DAR) representa uma das mais relevantes correntes críticas do pensamento jurídico brasileiro contemporâneo. Formulado a partir da década de 1980, em meio ao processo de redemocratização e à efervescência dos movimentos sociais, o DAR propõe uma ruptura com o formalismo e o elitismo que historicamente caracterizaram o ensino e a prática jurídica no país. Seu objetivo é resgatar o sentido emancipatório do direito, concebendo-o não como mero instrumento estatal de regulação, mas como prática social de libertação. 

Inspirado nas lutas populares e nas experiências de resistência coletiva, o DAR propõe um olhar que desloca o centro da produção do direito das instituições oficiais para o espaço público, as ruas e as comunidades, onde as normas sociais são vividas, reinterpretadas e criadas. Nesse contexto, a Teologia da Libertação e o pluralismo jurídico se consolidam como fundamentos teóricos essenciais para a compreensão do projeto. Além disso, o DAR encontra sua expressão prática nas Assessorias Jurídicas Populares (AJUPs), que materializam na universidade o ideal de um direito comprometido com a transformação social. 

 

  1. Marxismo nas proposições do Direito Achado na Rua

Um dos fundamentos teóricos do Direito Achado na Rua é a crítica marxista ao Direito positivo. Nesse sentido, Roberto Lyra Filho, ao capitanear a Nova Escola Jurídica Brasileira, foi fortemente influenciado pelos trabalhos de Marx na sua perspectiva “dialética” sobre o direito. (Sousa Júnior, 2008, p.64). Lyra, ao construir o “humanismo dialético”, procura ultrapassar a obra marxista, seguindo a crítica ao Direito positivo. Nota-se que, em Marx, Lyra diz encontrar inspiração para fundir o Direito supralegal a um direito positivo pluralista, uma vez que suas tentativas nesse sentido foram frustradas (Lyra, 1986, apud Sousa Júnior, 2008, p.117). 

Outra influência marcante de Marx nos estudos de Lyra se apresenta quando o alemão apresenta sua definição de essência de direito, a qual se encontra na estruturação da mediação coordenadora da coexistência de liberdades, e não em um conjunto de pretensões desgovernadas, caracterizadas por caprichos egocêntricos e anárquicos. Lyra atribui a Marx o conceito de “o Direito é a existência positiva da liberdade” (Lyra, 1986, apud Sousa Júnior, 2008, p.119). Sendo assim, a liberdade é um elemento central para a compreensão do DAR. 

Ademais, o trabalho desenvolvido por uma assessoria jurídica popular não se realiza de forma subordinada ou isolada, mas se constitui como prática dialógica e transformadora. Conforme destaca Marx na 3ª tese contra Feuerbach “são precisamente os homens que transformam as circunstâncias e que o próprio educador tem necessidade de ser educado”, evidenciando a dimensão recíproca e emancipatória das relações sociais. Nessa perspectiva, os projetos de intervenção jurídica, orientados pela proposta de uso emancipatório do direito, são concebidos como espaços de construção coletiva do saber e de efetivação da práxis transformadora. 

Sob a ótica do humanismo dialético de Lyra, compreende-se o homem como produto de uma relação dialética com a natureza, sendo ele o único sentido e a própria realidade da história (Chauí, 2003, apud Sousa Júnior, 2008, p. 187). Essa concepção reforça a centralidade do sujeito na produção histórica e na transformação das condições sociais. 

Dessa forma, a partir do juridicismo dialético de Lyra — fortemente influenciado pelo marxismo e em continuidade com a Nova Escola Jurídica Brasileira —, destaca-se a contribuição de José Geraldo de Sousa Júnior, cuja atuação foi fundamental para a formulação e implementação do projeto de pluralismo jurídico popular, consubstanciado em O Direito Achado na Rua. 

 

  1. O Pluralismo Jurídico e o Poder Criativo das Comunidades

O pluralismo jurídico constitui outro pilar teórico do Direito Achado na Rua. Em oposição ao monismo jurídico do positivismo kelseniano, que identifica o direito apenas com a lei estatal, o pluralismo reconhece a coexistência de múltiplos sistemas normativos na sociedade. Essa ideia remonta a Eugen Ehrlich (1986), para quem o centro de gravidade do desenvolvimento do direito não se encontra na legislação, mas na própria sociedade. 

Na América Latina, o pluralismo jurídico adquire contornos específicos, relacionados à presença de povos indígenas, comunidades tradicionais e movimentos sociais que produzem formas próprias de normatividade (Wolkmer, 2001). José Geraldo de Sousa Júnior (2019) desenvolve essa perspectiva ao associá-la ao projeto do Direito Achado na Rua, que, dessa forma, radicaliza o horizonte aberto por Lyra Filho (1982), reconhecendo a multiplicidade de fontes normativas que emergem das mobilizações coletivas. 

O pluralismo jurídico, assim, constitui um dos pilares decisivos do DAR. Nessa perspectiva, “apesar do direito estatal ser dominante, ele coexiste na sociedade com outros modos de resolução de litígios” (Sousa Júnior, 2008, p. 155), operando mais que uma descrição sociológica da coexistência de sistemas normativos — uma aposta ética e política no poder criativo das comunidades. 

Essa concepção desloca o eixo de reflexão do direito do Estado para a sociedade civil, valorizando as práticas jurídicas autônomas que emergem das lutas coletivas. Trata-se de reconhecer o potencial emancipatório das comunidades enquanto produtoras de normatividade legítima, desafiando o monopólio estatal do direito e abrindo espaço para uma concepção plural, democrática e participativa da justiça. 

 

  1. A  Teologia da Libertação como base teórica do Direito Achado na Rua

Nesse contexto, a Teologia da Libertação constitui-se como uma outra base teórica de grande influência para a formulação do Direito Achado na Rua, ao oferecer não apenas uma ética comprometida com os pobres, mas também um método de leitura crítica da realidade. Ela surgiu na América Latina na década de 1960, em meio às desigualdades estruturais agravadas por ditaduras militares e pelo modelo de desenvolvimento dependente. Sua originalidade esteve em deslocar o centro da reflexão teológica para a vida concreta dos pobres e oprimidos. Como afirma Boff (1986), trata-se de uma “opção preferencial pelos pobres”, um compromisso ético e espiritual que busca compreender o mundo a partir da perspectiva dos marginalizados e, sobretudo, transformar a realidade que gera opressão.  

Além da dimensão ética, a Teologia da Libertação trouxe uma concepção de historicidade que rompeu com a neutralidade tradicional atribuída ao conhecimento teológico e jurídico. Gutiérrez (1987) entende a libertação como um processo integral, que não se limita à dimensão espiritual, mas abrange a esfera econômica, política e cultural da vida. A realidade histórica é, portanto, o lugar teológico fundamental.  

Outro aspecto central dessa intersecção é a relação direta com os movimentos sociais. Tanto a Teologia da Libertação quanto o Direito Achado na Rua nasceram de um diálogo estreito com experiências concretas de organização popular. As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs),  impulsionadas pela Teologia da Libertação, foram fundamentais para estimular processos de educação popular, participação política e reivindicação de direitos. De modo semelhante, o Direito Achado na Rua se fortaleceu como discurso teórico a partir da observação e sistematização dessas práticas sociais, que evidenciam novas formas de produção do direito fora das estruturas tradicionais. 

A luta dos trabalhadores rurais sem terra, dos movimentos urbanos por moradia, das organizações de mulheres e dos coletivos negros,  são apenas alguns exemplos de uma dessa inspiração ética em ação. O Direito não se manifesta, portanto, como mero monopólio do Estado, mas também como expressão das práticas sociais de resistência. Essa perspectiva exerceu influência direta sobre o pensamento jurídico crítico brasileiro. A partir dela, o Direito Achado na Rua se propõe como um projeto de libertação social, que reconhece o povo como sujeito ativo da produção jurídica (Sousa Júnior, 2008).  

As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), impulsionadas pela Teologia da Libertação, demonstram a possibilidade de auto-organização popular e de construção de legitimidade fora das estruturas oficiais. Essas experiências inspiraram diretamente o DAR, ao revelar que o direito também nasce das práticas comunitárias e da luta por dignidade. Nesse sentido, o DAR e a Teologia da Libertação compartilham três dimensões fundamentais: uma ética, centrada na dignidade dos excluídos; uma metodológica, que propõe a leitura da realidade a partir dos sujeitos oprimidos; e uma política, que afirma a legitimidade da ação popular como instrumento de transformação social. 

 

  1. As Assessorias Jurídicas Populares: expressão prática do Direito Achado na Rua

As Assessorias Jurídicas Populares (AJUPs) surgiram no ambiente universitário, principalmente em cursos de Direito de universidades públicas, como desdobramento da prática extensionista e da militância estudantil. Elas têm como objetivo fundamental promover a articulação entre o saber jurídico e os saberes populares (Sousa Júnior, 2008), superando o modelo assistencialista e paternalista que tradicionalmente marcou a relação entre operadores do direito e comunidades. Em vez de atuar como representantes passivos, os assessores se colocam como parceiros, construindo com os movimentos sociais estratégias de resistência e emancipação. 

Essa perspectiva dialoga diretamente com a pedagogia crítica de Paulo Freire (2011), que enfatiza a necessidade de uma educação dialógica e transformadora. Assim como na educação popular, a assessoria jurídica popular parte da realidade concreta dos sujeitos, buscando problematizar as causas estruturais da opressão e estimular a consciência crítica. Nessa medida, o direito é compreendido como prática social libertadora (Sousa Júnior, 2008), e não apenas como ordenamento imposto de cima para baixo. 

A atuação das AJUPs é ampla e diversa: apoio jurídico em ocupações urbanas e rurais, acompanhamento de conflitos agrários, assessoria a cooperativas de trabalhadores, movimentos de moradia, coletivos feministas, organizações negras e povos indígenas. Em todos esses casos, a proposta é fortalecer a autonomia das comunidades, de modo que elas se apropriem do direito como ferramenta de luta. Como destacam Wolkmer e Leal (2013), trata-se de compreender o direito como um espaço de disputa, aberto à ressignificação a partir das práticas contra-hegemônicas. 

Outro ponto fundamental é a dimensão pedagógica das AJUPs no interior da universidade. Ao proporcionar aos estudantes de Direito a vivência prática junto a movimentos sociais, elas contribuem para uma formação crítica e cidadã. Faria (2009) observa que esse tipo de experiência tensiona o modelo tradicional de ensino jurídico, centrado em manuais e dogmática, ao aproximar os acadêmicos da realidade concreta dos conflitos sociais. Nesse sentido, a assessoria popular não é apenas serviço comunitário, mas também laboratório pedagógico para repensar o ensino do direito. 

Assim, pode-se afirmar que o Direito Achado na Rua constitui a base teórica indispensável para as Assessorias Jurídicas Populares. Ambas partem da mesma premissa: o reconhecimento de que os movimentos sociais são sujeitos produtores de direito e que a função do jurista crítico é colaborar, em pé de igualdade, na construção desses processos emancipatórios. Pois é nas ruas — onde a lei muitas vezes silencia, mas a vida clama — que o direito renasce. O Direito Achado na Rua é, portanto, mais que uma proposta acadêmica: é um gesto de insurgência, um grito coletivo que recorda à sociedade que o verdadeiro direito se faz de chão, de luta e de povo. 

 

Referências 

BOFF, Leonardo. Teologia da libertação e a opção pelos pobres. Petrópolis: Vozes, 1986.
EHRLICH, Eugen. Fundamentos da sociologia do direito. Rio de Janeiro: Revan, 1986.
FARIA, José Eduardo. O ensino do direito no Brasil: diagnósticos e perspectivas. São Paulo: Malheiros, 2009.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 50. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação: perspectivas. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 1987.
LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. São Paulo: Brasiliense, 1982.
SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de. O direito como liberdade: o Direito Achado na Rua – experiências populares emancipatórias de criação do direito. Brasília: Editora UnB, 2008.
SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de. O Direito Achado na Rua: condições sociais e fundamentos teóricos. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 178–198, 2019.
WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. São Paulo: Alfa-Omega, 2001.
WOLKMER, Antônio Carlos; LEAL, Rogério Gesta. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. 

 

 

[1] Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB); membra da Assessoria Jurídica Universitária Popular Roberto Lyra Filho (AJUP-UnB). 

[2] Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB); membra da Assessoria Jurídica Universitária Popular Roberto Lyra Filho (AJUP-UnB). 

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