A Guerra Que Nunca Acaba:

Arquétipos Heroicos e o Imaginário Penal No Brasil

por Revista Avant UFSC

Escrito por Janaina Regina S. Marcelino Francisco [*]

A expressão “combate ao crime” consolidou-se no vocabulário político brasileiro nas últimas décadas. Presente em campanhas eleitorais, manchetes e discursos oficiais, ela converte a segurança pública em um campo simbólico de guerra permanente. Nesse cenário, o Estado assume a figura do herói convocado a enfrentar o mal; o criminoso torna-se sua personificação mais imediata. O conflito penal deixa de ser fenômeno complexo para ser narrado como batalha moral entre personagens antagônicos.

Essa narrativa cumpre papel decisivo no imaginário jurídico contemporâneo: simplifica realidades estruturais, desloca causas profundas da violência para antagonismos fáceis e oferece respostas emocionais prontas, frequentemente tomadas como soluções políticas. Ao transformar a política criminal em enredo épico, o imaginário heroico reforça práticas irracionais, legitima ações violentas e produz a sensação ilusória de que o mal pode ser eliminado por meio de atos excepcionais de bravura estatal.

Esse fenômeno ultrapassa o debate jurídico e remete a dimensões simbólicas da vida coletiva. Carl Gustav Jung demonstrou que sociedades estruturam percepções por meio de arquétipos — formas psíquicas universais que moldam significados e emoções. Dois deles são fundamentais para compreender o cenário penal brasileiro: o herói, que encarna a promessa de ordem e salvação, e a sombra, que reúne conteúdos que a coletividade rejeita reconhecer em si mesma e que, projetados, são externalizados sobre o “outro”.

Joseph Campbell mostrou que o herói atravessa etapas recorrentes: chamado, travessia do limiar, provas, inimigo, clímax e retorno com o “elixir”. Narrativas políticas reproduzem esse roteiro com fidelidade surpreendente: crises funcionam como chamados; operações policiais convertem-se em provas; prisões espetaculares são celebradas como clímax moral; e discursos oficiais anunciam retornos triunfais, embora a segurança prometida raramente se concretize.

A teoria narrativa de Paul Ricoeur evidencia que discursos não apenas descrevem o mundo: eles o organizam, moldam identidades coletivas e orientam expectativas sociais. Michel Foucault, por sua vez, mostra que a punição moderna se tornou espetáculo discursivo, no qual o Estado exibe força e produz legitimidade. Walter Benjamin aprofunda essa discussão ao demonstrar que toda ordem jurídica se sustenta em violências fundadoras e conservadoras, muitas vezes recobertas por formas míticas de legitimação — mecanismo plenamente visível no discurso heroico do combate ao crime. Nietzsche reforça essa leitura ao evidenciar que a construção do inimigo moral nasce do ressentimento, processo pelo qual comunidades reafirmam uma suposta pureza ao projetar sobre o outro tudo aquilo que não toleram reconhecer em si.

A partir desse quadro teórico, o discurso do “combate ao crime” aparece como narrativa heroica articulada por arquétipos psíquicos, roteiros míticos e dispositivos de poder. Essa construção imaginária orienta expectativas sociais, legitima práticas violentas e dificulta o avanço de soluções complexas e estruturadas para a questão criminal. Essa chave interpretativa permite compreender as bases simbólicas do Estado-heroico, a figura do criminoso como projeção da sombra coletiva, o modo como a jornada do herói organiza o funcionamento do sistema penal brasileiro e as consequências jurídicas desse imaginário. Também possibilita enfrentar objeções recorrentes e repensar a política criminal em termos mais racionais e humanos.

A obra de Jung ilumina a lógica arquetípica do imaginário punitivo. O herói representa a força que enfrenta o caos, expõe-se ao perigo e restaura a ordem. A sombra reúne conteúdos incompatíveis com a autoimagem coletiva — impulsos agressivos, fragilidades, temores — que, ao serem projetados, transformam o “outro” em depósito simbólico dessas tensões, convertido em mal absoluto. No campo penal, o criminoso torna-se esse receptáculo privilegiado, sobretudo quando pertencente a grupos vulneráveis e marginalizados. A narrativa jurídica opera, assim, com símbolos tão potentes quanto seus dispositivos formais.
Nietzsche aprofunda esse diagnóstico ao demonstrar que a criação do inimigo moral é frequentemente efeito de ressentimento social. Antes de ser pessoa, o criminoso é transformado em função moral, necessária à manutenção de uma autoimagem coletiva que deseja crer-se justa e ordeira.

A jornada do herói descrita por Campbell reaparece na política criminal de maneira quase literal: crises são tratadas como chamados; endurecimentos legislativos, como travessias; operações, como provas; prisões espetaculares, como clímax; anúncios governamentais, como retornos triunfantes. Para o imaginário público, o herói é menos indivíduo que função simbólica, e o Estado incorpora esse papel com rapidez.

A leitura de Ricoeur evidencia que essas narrativas moldam moralidades públicas, redefinindo o que se espera das instituições: a polícia deve combater, o Judiciário punir, o Legislativo endurecer. Foucault mostra que o castigo moderno se tornou espetáculo, e Benjamin demonstra que essa teatralização encobre a violência fundadora do direito com um invólucro mítico, convertendo excessos em demonstrações performativas de autoridade.

A criminologia crítica acrescenta uma dimensão indispensável. Alessandro Baratta mostrou que o sistema penal não é neutro: opera como mecanismo de controle social que produz sensação de proteção enquanto reproduz desigualdades. Eugenio Raúl Zaffaroni evidenciou que a política criminal latino-americana depende da fabricação cotidiana do inimigo — invariavelmente um jovem pobre e racializado. A projeção da sombra coletiva encontra aí terreno fértil. Uma vez construído o vilão absoluto, práticas degradantes tornam-se aceitáveis, justificadas pela lógica bélica que transforma o outro em ameaça moral.

Salo de Carvalho demonstra que a inflação legislativa responde à necessidade de produzir “atos heroicos” diante de cada crise. Nesse ponto, a leitura de Giorgio Agamben torna-se crucial: a fabricação contínua de inimigos facilita a normalização do estado de exceção, que deixa de ser extraordinário para tornar-se técnica ordinária de governo. O populismo penal opera exatamente nessa chave, transformando o excepcional em rotina.

Algumas objeções recorrentes revelam a força dessa narrativa. A primeira afirma que “o Estado precisa combater o crime”. Precisa, mas não necessita converter esse combate em epopeia moral que naturaliza abusos. A segunda aponta que “a população pede medidas duras”. O clamor existe, mas deriva menos da eficácia das políticas públicas e mais de estruturas simbólicas que operam pelo medo. A terceira sustenta que essa abordagem “psicologiza o Direito”. Contudo, ignorar dimensões simbólicas é ignorar que toda política pública se sustenta em narrativas, metáforas e sentidos compartilhados.

O mito da jornada do herói tornou-se matriz dominante do discurso penal brasileiro. Ele organiza percepções, produz vilões, cria heróis e sustenta o punitivismo. Enquanto permanecermos presos a esse imaginário épico, políticas de segurança pública continuarão a falhar; não por falta de bravura, mas por falta de complexidade, realismo e compromisso com as causas estruturais da violência.

Superar esse paradigma exige deslocar o foco do heroísmo para a responsabilidade coletiva; abandonar metáforas bélicas; reconhecer a complexidade da criminalidade; e construir políticas públicas racionais, humanas e eficazes. Esta leitura interdisciplinar — que articula psicologia analítica, filosofia, teoria narrativa e criminologia crítica — ilumina uma dimensão pouco discutida do Direito: a força simbólica que molda políticas públicas. Compreender o imaginário heroico do “combate ao crime” é passo indispensável para superá-lo.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002.

BENJAMIN, Walter. Para uma crítica da violência. In: BENJAMIN, Walter. Documentos de cultura, documentos de barbárie. 1. ed. São Paulo: Cultrix, 1986.

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. 3. ed. São Paulo: Pensamento, 1995.

CAMPBELL, Joseph; MOYERS, Bill. O poder do mito. Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas Athena, 1990.

CARVALHO, Salo de. Pena e garantias: uma leitura do garantismo penal integral. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

JUNG, Carl Gustav. Aion: estudos sobre o simbolismo do Si-mesmo. Tradução de Dom Mateus Ramalho Rocha. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.

JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Tradução de Maria Luíza Appy, Dora Mariana R. Ferreira da Silva. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

JUNG, Carl Gustav. Sincronicidade: a dinâmica do inconsciente. Tradução de Mateus Ramalho Rocha. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Vol. 1. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Tradução M. F. Sá Correia. Porto – Portugal: Rés.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Tradução de Vania R. Pedrosa, Amir Lopez da Conceição. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

[*] Graduanda em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8255582387168435 . Email: janainarmf@gmail.com

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